Enquanto os olhares do mundo se distraiam voltados para as disputas
eleitorais brasileiras, o soturno – e nem um pouco sorrateiro – fantasma
das ditaduras se preparava para nos assombrar, mais uma vez. Pouco
mais de um ano após o golpe que solapou a democracia em Honduras, na
tarde de ontem, 30 de setembro de 2010, a América Latina viveu mais um
episódio de atentado contra um governo em exercício.
O alvo dessa vez foi o progressista e democraticamente eleito governo
de Rafael Correa, presidente do Equador. Essa contradição é no mínimo
pedagógica. É um balde de água fria no otimismo cego que em época de
eleições toma conta da parca democracia que conquistamos. Otimismo que
também nos impede de enxergar no que realmente estamos metidos.
O que sabemos até o momento é que o estopim da crise – que,
felizmente, parece já estar sendo controlada – foi o protesto realizado
pela Polícia Nacional do Equador contra um projeto de lei aprovado na
quarta-feira (28/9) pela Assembleia Nacional. Um dos artigos da
legislação prevê reduções nos benefícios salariais da categoria. Para o
governo e a ampla maioria dos movimentos sociais daquele país, o rechaço
à lei foi usado como um pretexto para uma truculenta tentativa de golpe
de Estado.
Por mais que os poderosos veículos de imprensa do Brasil e de outros
países de nosso continente se esforcem para afastar a ideia de golpe,
colocando-a como mera especulação, as ações que se sucederam na
empreitada frustada de instauração de uma crise naquele país não
ocorreram gratuitamente.
O Equador vive hoje um processo de politização e mobilização popular
impulsionado, dentre outros diversos motivos, pela eleição do governo
Correa. Está também em curso um processo de mudanças profundas que está
afetando as oligarquias locais. Uma das ações desse processo foi a
instauração de uma auditoria da dívida pública daquele país, que
trabalhou em busca da verdade sobre o endividamento público e, assim,
levantou diversas irregularidades no pagamento das dívidas contraídas
com bancos privados e possibilitou a redistribuição dos gastos do Estado
equatoriano. A medida, que é defendia pelo candidato do Psol à
Presidencia da República do Brasil, Plínio Arruda Sampaio, também altera
os ânimos da elite de nosso país que, por isso mesmo, faz questão de
descredibilizar e destratar o candidato por todos os meios dos quais
dispõe.
Além disso, em 2009, contrariando os interesses dos EUA, o Equador
fez a opção de não renovar o acordo que mantinha em seu território a
base militar de Manta. É sabido que o governo de Correa não desperta a
simpatia de Washington. Ou seja, motivos existem de sobra.
As experiências de governos progressitas como o de Correa no Equador,
que resistem democraticamente em nosso continente, colocam-se como um
dilema para as elites nacionais e para a direita. Nesse contexto, os
golpes, o autoritarismo e o atropelo das instâncias democráticas
estabelecidas e em atividade voltam a ser uma aposta para os setores
reacionários mais atrasados. O que mais nos importa é questionar por
quais razões continuamos a testemunhar essa postura de truculência pela
qual as elites, quando contrariadas, insistem em se impor. A relação
dessa postura com as dívidas que colecionamos com o nosso passado é
grande e não diz respeito apenas à história de violação e assassinato
inaugurada pela colonização européia. Diz respeito também a um acerto de
contas mal feito com a ditadura militar. E nesse quesito, o Brasil é um
belo exemplo, afinal por aqui torturadores e mandantes continuam a
assombrar, vangando livres e gratos pela cumplicidade da Justiça.
Não podemos subestimar a força do passado, tampouco deixar ser
apagada nossa memória, pois é do esquecimento que ressurgem os
fantasmas. Há pouco vivenciamos a tragédia de Honduras, ontem foi o
Equador. As elites de nosso continente são as mesmas de ontem e seu
caráter também é o mesmo, basta que enterremos nossa memória para vermos
a palavra se realizar: golpe.
A verdade que nos resta é que a postura de truculência golpista
persiste em reaparecer em nosso continente. Não podemos aceitar que os
fantasmas das ditaduras militares continuem a passear livremente pela
América Latina e o Caribe, contra os ventos de mudanças sociais e
políticas em curso em muitos países do continente. É preciso termos tudo
isso vivo em mente, para que não estejamos sujeitos ao mesmo destino no
dia em que conquistarmos as mudanças sociais profundas e necessárias
que ainda não foram realizadas por nenhum governo em nosso país.
* Raul Marcelo é deputado estadual pelo PSOL em São Paulo, membro da
Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo e da
Frente Parlamentar de Solidariedade a Cuba e candidato à reeleição.
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