segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mais do nunca a França precisa de uma esquerda unida



Sabia-se que, depois da decisão, em 20 de outubro, teria de se interromper ou continuar a greve na França. Sabe-se também que uma lei como a do corte de aposentadorias não será a última que um governo conservador venha a aprovar, sob o pretexto de sanear o orçamento e repartir os encargos. Um olhar ao que ocorre do outro lado do Canal da Mancha mostra já aos franceses tudo o que pode ocorrer. Mais do que nunca se precisa, na França, de uma esquerda unida: para o movimento grevista atual e para tudo o que dele possa advir. O artigo é de Michael Krätke.

Milhões de franceses perderam a paciência nestes últimos dias e se puseram na ofensiva, protestando contra a reforma das aposentadorias.

Por duas vezes, já – em 1995 e em 2003 -, atrevimentos parecidos, camuflados de projetos de reforma naufragaram no rompante dos protestos de massas nas ruas. Várias cabeças representativas da classe política rodaram pela arena. Agora Sarkozy também tem de temer por sua sobrevivência política. O cenário não oferece dúvida: se ele perde esta batalha pode ir se despedindo de sua reeleição em 2012. Se o movimento de protesto triunfa a esquerda terá melhores perspectivas do que teve até agora para ganhar as presidenciais.

A idade de aposentadoria legal teria de passar de 65 para 57 e de 60 a 62 para uma aposentadoria antecipada, não integral. Nestes últimos casos, o número de anos de contribuição para conseguir uma aposentadoria máxima passou já de 37, 5 para 41. Uma das consequências, segundo estatísticas da União Européia é que 13% dos aposentados se encontram hoje, na França, abaixo da linha da pobreza (na Alemanha, essa quantia é de 17% e na Grã Bretanha, 30%). Trabalhar durante mais tempo para ter uma aposentadoria mais baixa, como ocorre aos alemães ou aos britânicos? De maneira alguma: a maioria dos franceses quis vetar esse excesso.

A onda de manifestações, a série de greves e bloqueios massivos, longe de minguar, não pararam de crescer, dia após dia. Até o começo da semana passada, lançaram-se às ruas diariamente mais de 3 milhões de pessoas. Os estudantes do ensino médio e universitário se uniram num movimento de greve. Mais de 1200 centros de ensino médio e muitas universidades fizeram greve. A classe política francesa tem, desde maio de 1968 um pânico inveterado da aliança entre estudantes e operários. Pois agora somaram-se os aposentados...

Os caminhoneiros confluem no movimento grevista. Antes como agora, eles se aposentam aos 55 anos. Sua operação padrão paralisou estradas francesas: o acesso aos depósitos de combustível e petróleo, a distritos industriais inteiros, deixou muitos estabelecimentos fechados. É evidente: na França houve e segue havendo solidariedade entre quem chamamos de trabalhadores assalariados.

Sarkozy intransigente
Inimaginável na Alemanha, apesar de todos os inconvenientes de tráfego, apesar da ameaça de suspensão do fornecimento de energia elétrica, apesar da previsível escassez na provisão de alimentos, apesar alvoroços e algazarras, uma folgada maioria de franceses apóia o movimento grevista nacional. Todas as pesquisas coincidem: entre 70% e 75% da população total rechaçam a reforma de Sarkozy e defendem o protesto. Para 84% dos jovens entre 18 e 24 anos, a aposentadoria se converteu numa promessa enganosa de uma futuro nebuloso. Além disso, dois terços dos franceses acreditam que as greves deveriam ter ocorrido desde o princípio de uma maneira mais radical. Por que não passar a uma greve geral indefinida? 50% dos franceses apoiariam.

É verdade que a esquerda estava dividida, mas pôde colocar-se, junto aos sindicatos, na cabeça do movimento. No Senado, os socialistas manobraram para ganhar tempo, apresentando centenas de emendas à lei de reforma, para adiar a votação final. Isso ajudou aos que protestavam nas ruas, sobretudo a comunistas e trotskistas, que exigiam um referendum sobre a questão das aposentadorias.

Nicolas Sarkozy se manteve duro até o final. Tratou por vários meios de dividir o movimento, apontando sobretudo aos poucos sindicatos homogêneos. Houve pequenas concessões – por exemplo, para mães com mais de três filhos -, para desprender algumas centrais sindicais da frente grevista. No fim das contas, todas essas manobras deram em nada, embora François Chérèque, chefe da central socialista CFDT tenha chegado a entrar em negociações. Mas quando se viu que o primeiro ministro Fillon não tinha outra coisa a oferecer senão cosméticos do projeto de reforma, não tardaram a dissipar as dúvidas. O Ministério do Interior fez das suas e manipulou sem escrúpulos as cifras e as informações. Três milhões e meio de grevistas e manifestantes foram reduzidos, como na semana anterior, a menos de um milhão. Mas não se pode negar que o corte de pensões afeta a todos. A paz e a ordem deixaram de ser o primeiro dever cidadão.

Um olhar através do canal da Mancha
Há que se enfrentar a verdade, arguía o governo: se a expectativa de vida segue aumentando, também há que se trabalhar mais tempo. Compare-se com o que ocorre nos outros países da União Européia e dêem-se conta do que fazem. Mas isso de pouco adianta a Sarkozy e a Fillon, porque mais de dois terços dos franceses consideram simples desfaçatez a pretensão de converter as aposentadorias em bode expiatório do déficit orçamentário. Se a caixa estatal está vazia, algo terá a ver com os atos de conciliação e com o resgate dos grandes bancos afetados, com as isenções fiscais às empresas e às entidades financeiras, muitas das quais causaram a crise financeira. Fala-se num “hiato geracional”; é claro que não se entende por que não se fala de um “hiato de justiça”.

Até agora as greves vinham se decidindo no dia a dia, e isso também por causa da certeza de que, depois de sua votação no Senado, as coisas seriam muito diferentes e a reforma iria se tornar lei. Independente do que a maioria dos franceses pensa. Sabia-se que, depois da decisão, em 20 de outubro, teria de se interromper ou continuar a greve. Sabe-se também que uma lei como a do corte de aposentadorias não será a última que um governo conservador venha a aprovar, sob o pretexto de sanear o orçamento e repartir os encargos. Um olhar ao que ocorre do outro lado do Canal da Mancha mostra já aos franceses tudo o que pode ocorrer. Mais do que nunca se precisa, na França, de uma esquerda unida: para o movimento grevista atual, e para tudo o que dele possa advir.

(*) Michael R. Krätke, membro do Conselho Editorial de SINPERMISO, é professor de política econômica e direito tributário na Universidade de Amsterdã. É pesquisador associado ao Instituto Internacional de História Social desta mesma Universidade e é catedrático de economia política e diretor do Instituto de Estudos Superiores da Univesidade de Lancaster no Reino Unido.

Tradução: Katarina Peixoto

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