Escrito por Guga Dorea no Correio da Cidadania | |
Nessa série de artigos sobre os 100 anos da Revolução Mexicana estamos
chegando ao período em que as forças políticas em jogo demonstraram cada
vez mais quais projetos de futuro elas tinham para o México. A data
histórica que ficou oficialmente marcada como a da revolução – 20 de
novembro de 2010 – deixou, na prática, uma questão em aberto até os dias
de hoje.
Qual foi o real significado daquele acontecimento histórico e até que
ponto o denominado neozapatismo é uma tentativa de resgatar o passado em
um momento presente, tendo em vista transformar as atuais configurações
políticas, sociais, econômicas e culturais do México atual? É diante
dessas indagações que pretendemos, daqui para frente, buscar compreender
como o México pode ser um exemplo significativo de como o capitalismo
se desenvolveu entre o final do século XIX e início do XX, até a sua
entrada globalizada e supostamente vitoriosa no mundo do cyberespaço, em
que o passado é concebido como algo a ser velozmente ultrapassado e
desintegrado.
Mas vamos com calma. Como estava o México no ano de sua revolução?
Segundo Adolfo Gilly, entre muitos outros autores, algo em torno de 80%
de suas terras estavam nas mãos dos grandes fazendeiros, o que não
significava ausência de resistência dos camponeses e indígenas, aqueles
que foram alijados do que eles próprios intitulavam culturalmente como
"madre tierra", já mostrando com esse nome a sua forma diferenciada de
lidar e de "olhar" para a natureza.
Para o pensador, o quadro social, econômico, político e cultural do
México de 1910 era o de uma face dupla. De um lado, as reformas
capitalistas, iniciadas no governo de Benito Juárez e fortalecidas, de
forma autoritária, na era Porfírio Díaz, geraram um país marcado pela
entrada fulminante das ferrovias nas terras camponesas e indígenas, o
que correspondeu à utilização de áreas rurais para a produção de
matérias primas a serem exportadas, sobretudo aos mercados dos EUA e da
Grã-Bretanha.
No outro lado dessa instigante equação, apesar dos camponeses e
indígenas, diante dessa nova realidade, terem se transformado, em sua
maioria, em mão de obra útil para os interesses do sistema, foram eles
que revelaram o chamado "México profundo", um país que a subjetividade
capitalista não conseguiu contaminar e muito menos cooptar por completo.
E esse México permanece potencialmente vivo até os dias de hoje.
Luta pelo poder
De um ponto de vista político, Adolfo Gilly nos mostrou ainda como a
luta pela manutenção ou conquista do poder se desenvolveu nas vésperas
da revolução. No âmbito da situação, o receio de Porfírio Díaz era a de
que o avanço de seu opositor mais perigoso, Francisco Madero, viesse a
insuflar e a incentivar os camponeses e indígenas a radicalizarem seu
desejo por uma transformação verdadeira, que fizesse tremer, de fato, os
alicerces de um ainda incipiente, mas poderoso ideologicamente,
capitalismo.
Madero, por sua vez, tinha como principal preocupação realizar mudanças
pacíficas e burguesas de seu interesse antes que os movimentos
camponeses e indígenas radicalizassem a luta. O objetivo, portanto, era o
de conter as massas e promover uma "revolução" aos moldes da crença na
intitulada modernidade, seguindo caminhos já percorridos pelos grandes
centros "desenvolvidos" daquela época.
Foi nessa circunstância que no dia 5 de junho de 1910 Porfírio Díaz
venceu as eleições fraudulentas, apesar de seu anúncio de renúncia.
Resultado: Madero é preso, enfraquecendo o seu objetivo de realizar uma
revolução controlada e supostamente pacífica. Pouco tempo depois
(outubro desse mesmo ano), ele é posto em liberdade condicional, escapa
para os EUA e, logo na seqüência, retorna ao México para se proclamar
presidente provisório do México em San Luis de Potosi, que fica ao norte
do país, porém não na fronteira com os estadunidenses.
Nesse momento, Madero lançou o chamado Plano de San Luis em que, além de
consagrar-se presidente, negou tanto o princípio da reeleição como o
próprio governo de Porfírio Díaz. No artigo 3º do plano, em uma
estratégia política, garantiu também a devolução de terras a seus
antigos proprietários, sobretudo os indígenas, o que seria a sua única
promessa considerada realmente social.
No dia 20 de novembro de 1910, data oficial da revolução, conclamou a
"todos os cidadãos mexicanos" a se armarem e defenderem seu plano de
tomada de poder. No entanto, Madero só iria promover uma tentativa de
entrada definitiva no México em fevereiro de 1911, sendo derrotado no
dia 6 de março. Enquanto isso, os camponeses do estado de Morelos, tendo
o também camponês Emiliano Zapata à frente, pegam em amas e se apoderam
de algumas fazendas, o que assustou Madero, colocando em xeque sua
tentativa de promover a revolução burguesa.
Segundo já nos mostrou o próprio Adolfo Gilly, entre outros pensadores,
como Madero nunca deixou de acenar para um possível acordo de transição
com o governo de Porfírio Díaz, esse avanço camponês acelerou tal
processo, surgindo assim, nos bastidores da política, os Acordos da
Cidade Juarez (fronteira com os EUA), onde o então presidente Díaz mais
uma vez se comprometeu a renunciar e a entregar interinamente o cargo de
presidente para Francisco Leon.
Em linhas gerais, continuando na trilha de Adolfo Gilly, o intuito desse
acordo era tentar dizer que, com a queda de Porfírio Díaz, a revolução
mexicana estava concluída, o que levaria à necessidade e mesmo exigência
de os camponeses entregarem as armas, em uma falsa idéia de que, enfim,
a paz havia chegado ao México.
Zapata e Villa
A paz burguesa não se concretizou e o estado de Morelos, no sul do
México, foi se transformando em um dos eixos principais da resistência
aos acordos de Cidade Juarez. A conexão entre os camponeses que não
tiveram suas terras confiscadas e os novos proletários agrícolas,
cooptados e praticamente escravizados pelos engenhos do açúcar, levou à
criação do Exército Libertador do Sul, dirigido por Zapata.
Quando Madero assumiu o poder, logo veio a proposta para que entregasse
as armas, solicitação negada por ele. Zapata então exige a aplicação
imediata do Plano de Ayala. Firmado em 28 de novembro de 1911, o plano
declarou que o acordo da Cidade Juárez havia significado, na prática, o
descaso e abandono de Madero em relação ao lema dos movimentos
camponeses e indígenas: terra para quem nela trabalha.
Nesse contexto, camponeses e indígenas do sul entraram em guerra e
recuperaram parte de suas terras, mantendo viva a revolução. No entanto,
segundo Adolfo Gilly, o Exército Libertador do Sul era limitado do
ponto de vista da tomada do poder de Estado, não tendo conseguido,
portanto, impedir que a solução da revolução, naquele período, fosse
burguesa. De um lado, apontou ele, a ala mais à direita da burguesia
exigia que governo de Madero reprimisse o movimento camponês e indígena
com maior veemência.
De outro, os movimentos organizados e os pequeno burgueses mais
radicais, representados sobretudo pelo anarquismo de Ricardo Magón,
exigiam a imediata devolução das terras para os camponeses e indígenas.
Não acatando as duas exigências, Madero, no meio dessa artilharia
ideológica, foi obrigado a amargar um isolamento político, o que levou à
sua renúncia, em 25 de maio de 1911.
Apesar de apoiar estrategicamente Madero, na luta contra a ditadura
Porfirista, Zapata sempre foi independente em relação à proposta liberal
da revolução. Enquanto isso, a posição de Francisco Villa era
considerada bem menos politizada. No início, ele era de fato aliado à
direção burguesa. Acreditava nas propostas de Madero.
No entanto, esse alinhamento político não significava uma postura
pacífica e subalterna. Pelo contrário, internamente Villa preocupava,
tanto quanto Zapata, a elite burguesa com seu exército, a Divisão do
Norte, sempre atento às reivindicações camponesas e indígenas. A ligação
política entre Villa e Zapata, ao contrário, era uma garantia de que a
queda de Porfírio Diaz não iria se tornar o passo derradeiro da
revolução.
Explicando melhor o quadro político daquele efervescente momento
histórico do México, a ala mais conservadora da burguesia não estava
acreditando que Madero teria forças políticas suficientes para conter o
avanço tanto dos movimentos camponeses e indígenas como da pequena
burguesia mais radical. Segundo a interpretação de Adolfo Gilly,
entretanto, foi o assassinato de Madero e a subida ao poder do General
Victoriano Huerta, representando o grupo conservador e mais autoritário,
que incendiou definitivamente a luta da esquerda pela radicalização da
revolução. Isso porque caiu por terra o que restava do prestígio de
Madero em relação aos movimentos camponeses e indígenas.
Por conta disso, o General Venustiano Carranza foi logo se proclamando
seguidor de Madero, acusando Huerta de "usurpador" do poder. Luta entre
generais pelo poder, ambos, cada um à sua maneira, querendo alijar ou
submeter as massas a seus interesses. Nesse jogo político, Zapata
permaneceu independente politicamente, enquanto Villa se alinhou, no
início, ao General Carranza. Esse, por sua vez, sabia que sem o apoio
logístico das massas organizadas não teria acesso ao poder.
Foi só chegar ao poder, entretanto, para ele recuar em sua posição e
passar a reprimir os movimentos sociais organizados de forma
contundente, desagradando ao grupo pequeno-burguês desenvolvimentista,
representado por Alvaro Obregón, outro general que até então havia
atuado como elo de ligação entre a liderança burguesa da revolução e as
reivindicações de Zapata e Villa. O projeto político de Obregón era o de
garantir o desenvolvimento capitalista, mas com a visão estratégica de
que era importante promover concessões aos camponeses e indígenas,
sempre tendo em mente o enfraquecimento político dos movimentos
revolucionários.
No outro lado dessa realidade extremamente desfavorável para os setores
mais oprimidos da sociedade mexicana, o trator capitalista não conseguiu
devastar o que Adolfo Gilly denominou como "memória coletiva",
sobretudo da cultura indígena, do que aparentemente estava sendo
substituído pela crença no progresso e na homogeneização das relações
humanas e culturais.
Podemos dizer, nesse entrelaçar de idéias, experiências e projetos
políticos, revolucionários e reformistas, que novembro de 1910 sempre
esteve bem mais próximo do que Adolfo Gilly chamou de "revolução
interrompida". Fica então a pergunta: é possível finalizar essa
revolução no mundo contemporâneo? Mas o que é ser revolucionário nos
dias de hoje?
Guga Dorea é jornalista e cientista político. Atualmente é
colaborador do Projeto Xojobil e integrante do Instituto Futuro Educação
(IFE).
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
A Revolução Mexicana de 1910: de quem e para que?
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