Criado em 1998 com o objetivo de revolucionar a maneira como os
estudantes do País são avaliados, o Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) aumentou, ano a ano, de tamanho e de funções até ser alçado à
categoria de principal pilar para a seleção de estudantes às
universidades federais – no que depender do Ministério da Educação
(MEC), será o único sistema de seleção ao ensino superior no futuro.
Cresceu tanto que virou um problema: como ministrar uma prova em
perfeitas condições de segurança, sigilo e baixo índice de erros para
milhões de alunos em todo o território nacional? As duas últimas edições
expuseram falhas que respingaram na reputação do MEC e que forçaram o
ministro Fernando Haddad a passar a semana a se explicar. No frigir dos
ovos, a dimensão do problema na edição 2010 foi menor do que parecia de
início, mas serviu para colocar em discussão o papel do exame na
educação nacional.
As dores de cabeça do Enem deste ano começaram no primeiro dia de
exame, no sábado 6, por conta de dois erros. Primeiro, as provas, as
mesmas para todos os estudantes, são divididas em diferentes cores, que
correspondem a uma ordem do gabarito. Alguns alunos no Paraná e em
Sergipe receberam uma versão da prova amarela com questões repetidas e
outras faltando. O segundo problema, com o gabarito: o espaço para o
preenchimento das questões de Ciências da Natureza estava trocado com o
de Ciências Humanas. Os alunos que enfrentaram o problema foram
instruídos a solicitar ao MEC a correção invertida de cabeçalho.
Cerca de 20 mil alunos receberam a prova com problemas, mas a maioria
deles conseguiu trocar pela versão correta durante o exame. No total,
menos de 2 mil, em um universo de mais de 4 milhões acabaram não
recebendo uma nova prova amarela sem os erros. Se depender de Had-dad,
somente eles farão nova avaliação. A questão dos gabaritos foi
solucionada com os fiscais dos exames no dia e com a solicitação de uma
correção específica.
Outras denúncias foram feitas durante os dois dias de prova. No
Recife, um repórter do Jornal do Commercio que prestou o exame mandou
uma mensagem de celular para a sua redação contando o tema da redação – o
objetivo seria denunciar a brecha na segurança. O MEC pediu a abertura
de um inquérito para investigar a atuação do jornalista.
Houve ainda a suspeita, repercutida nos meios de comunicação, de que o
tema da redação havia vazado em cursinhos preparatórios para o
vestibular em Petrolina (PE). A Polícia Federal investigava o caso até o
fechamento desta edição. Se houver consistência na investigação, um
inquérito será aberto.
A repercussão dos problemas começou ainda no sábado à noite e
tornou-se o principal assunto do início da semana. A preocupação
justificava-se: o Enem vinha sendo foco de olhares desconfiados por
conta do imbróglio na edição 2009, este mais grave, quando um segurança
da Gráfica Plural, responsável por imprimir o exame, roubou exemplares
da prova e tentou vendê-los a jornais. A denúncia gerou o adiamento do
Enem, a troca da Plural pela norte-americana RR Donnelley, a maior do
mundo (e bem mais cara que a antecessora) e muita turbulência. O nome de
Haddad, que chegou a ser cotado como possível candidato apoiado pelo
presidente Lula ao governo do Distrito Federal ou de São Paulo em 2010
perdeu força.
Portanto, no fim de semana da realização do Enem 2010, toda a mídia
focou-se no andamento da avaliação. Após o exame, o presidente do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep), orgão do MEC responsável pelo Enem, Joaquim Soares Neto,
minimizou as falhas e falou em “missão cumprida” – e foi o termo usado
pelo presidente Lula. Não foi o que acharam a Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e a Defensoria Pública da União, pelas ações do defensor
Ricardo Salviano, que chegou a declarar que uma nova prova para poucos
acabaria com a isonomia do exame. As duas entidades pregavam que,
havendo alunos prejudicados, mesmo que poucos, todos deveriam refazer a
prova. Simultaneamente a isso, a juiza Karla Miranda Maia, da 7ª Vara
Federal do Ceará, concedeu uma liminar para o cancelamento do exame.
Estudantes protestaram contra o MEC usando narizes de palhaço. Outros
protestos estavam marcados pelo País.
A CartaCapital Haddad reafirmou ser contra um novo exame para todos.
“O problema é localizado e as provas devem ser ministradas somente para
os alunos prejudicados.” “O exame utiliza uma metodologia
internacionalmente reconhecida que não é novidade entre pensadores da
educação, mas obviamente o é no meio jurídico.”
A metodologia referida pelo ministro é a chamada Teoria de Resposta
ao Item (TRI), usada no Enem desde 2009. A TRI baseia-se em um modelo
internacionalmente reconhecido que assegura o mesmo grau de dificuldade
em provas diferentes. É a mesma estratégia usada no Scholastic
Assessment Test (STI), o sistema de seleção para vagas universitárias
nos Estados Unidos e em outros países. “Em uma prova clássica como o
vestibular convencional, qualquer problema pontual é motivo para uma
reaplicação da prova. O Enem não é mais assim, nem poderia ser com o
tamanho que tem. Por isso só precisamos fazer novo exame para quem foi
prejudicado”, defendeu Haddad.
Segundo o ministro, sua conversa com o presidente da OAB, Ophir
Cavalcante, foi elucidativa para suspender a anulação do Enem 2010. A
aplicação posterior de um novo Enem somente aos prejudicados tem um
precedente em 2009 no Espírito Santo, quando inundações impediram que
cerca de 8 mil estudantes chegassem ao local da prova em alguns
municípios. “Dada a urgência do caso, quero crer que os tribunais como o
TRF e o STF vão estar disponíveis para uma solução”, complementa.
A novela Enem 2010 reacendeu a discussão sobre o papel da prova.
Criado durante o governo Fernando Henrique, o Enem seria um termômetro
do ensino médio. Diferente dos vestibulares, sua prova é baseada no
conceito de habilidades e competências, que prioriza a capacidade de
raciocínio e interpretação, e não o conhecimento adquirido de quem o
faz. Dois anos depois, sua nota já era contabilizada parcialmente em
alguns vestibulares públicos.
Em 2004, no governo Lula, a nota do Enem passou a valer como nota
para o Programa Universidade para Todos (ProUni), o sistema de
financiamento de bolsas de estudo que concede descontos fiscais às
instituições que o adotam. Com a associação Enem-ProUni, o número de
estudantes que passaram a participar do teste quadruplicou – foram 4,6
milhões de estudantes inscritos este ano.
Atualmente, o Enem serve como avaliação também para o programa de
Educação de Jovens e Adultos (EJA) e, desde 2009, como critério de
seleção para 39 instituições federais de ensino superior. O reitor da
Universidade de São Carlos (Ufscar), Targino de Araújo Filho, entende
que o “Enem-vestibular” é bom para as universidades e os alunos. “Na
medida em que ele se transforma em processo único de seleção, torna-se
um objeto de inserção social. Minimiza a quantidade de vestibulares, e
na medida em que há uma ênfase em conteúdos, tem uma influência muito
grande no ensino médio”, diz. A Ufscar comandada por Targino usou, a
partir deste ano e em conjunto com outras 38 universidades federais,
apenas o Enem como processo de seleção.
Mas o fato de o Enem ter várias aplicações simultâneas assusta alguns
especialistas da educação. A ex-assessora do Inep e ex-formuladora de
questões da Unicamp Maria Luiza Abaurre entende que ter muitos focos
simultâneos é o mesmo que não ter nenhum. “O Enem é avaliação do ensino
médio e vestibular, e também seleciona para o Pro-Uni, ou seja, uma
função diferente, de pessoas que concorrem a bolsas, não a vagas. E
também tornou-se uma prova de certificação para o EJA, que é uma prova
sem caráter de seleção. Isso torna muito difícil ao elaborador do exame
conseguir um perfil do que de fato precisa ser medido pelas questões”,
acredita.
Haddad discorda da questão levantada por Abaurre e cita o sistema
norte-americano. “O método dos Estados Unidos funciona da mesma maneira e
é o melhor sistema universitário do mundo. Não foi por outra razão que
miramos nele para fortalecer o nosso.”
Outra crítica cada vez mais constante ao Enem como selecionador para
as universidades é que o sistema de habilidades e competências, criado
para avaliar alunos e não as escolas, na realidade não traz diferenças
marcantes em relação ao vestibular convencional. É assim que vê Romualdo
Portela, professor da USP que estuda políticas educacionais. “Existe
uma coerência entre quem se qualifica para uma faculdade via Enem e via
vestibulares convencionais. Não mudou substancialmente”, diz. A opinião
de Portela é compartilhada por Otaviano Helene, ex-presidente do Inep
durante o primeiro governo Lula. “As escolas também são responsáveis por
desenvolver habilidades dos alunos. Portanto, quem está em escola
melhor segue tendo vantagem”, afirma.
O ministro concorda que o cenário atual é este, mas deve mudar ao
longo dos anos. “Veja a Prova Brasil, que é uma espécie de Enem do
ensino fundamental (para alunos do 5° e 9° anos). Desde 2005, houve uma
nítida queda na diferença entre as escolas particulares e públicas. É o
que espero do Enem para os próximos anos.”
Os próximos dias devem ser de batalhas entre o MEC e a Justiça. Se não conseguir reverter a anulação, Haddad vai se manter forte o bastante para levar adiante o projeto de ampliação do Enem? O impacto nas mudanças curriculares pode demorar ainda mais se a resposta por negativa.
Os próximos dias devem ser de batalhas entre o MEC e a Justiça. Se não conseguir reverter a anulação, Haddad vai se manter forte o bastante para levar adiante o projeto de ampliação do Enem? O impacto nas mudanças curriculares pode demorar ainda mais se a resposta por negativa.
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