Em recente artigo publicado no Sul21,
Frei Betto defendeu a posição de que os torturadores “praticavam o
ateísmo militante ao profanar com violência os templos vivos de Deus: as
vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à
morte… Ateísmo militante é, pois, profanar o templo vivo de Deus: o ser
humano.” Não se trata de afirmação impensada, uma vez que repete artigo
anterior, e foi confirmada em entrevista nos seguintes termos: “Toda vez
que alguém viola o ser humano, violenta, oprime, está realizando o
ateísmo militante.”
O texto gerou muitos protestos de ateus, que ficaram ainda mais
indignados com a repetição do insulto, pronunciada com toda indiferença e
sem qualquer tentativa de desculpa. Infelizmente, parece ser necessário
afirmar e repetir com toda clareza aquilo que deveria ser óbvio: ver-se
igualado a torturadores e a atos de tortura é um ultraje à dignidade de
qualquer indivíduo, ateu ou não. Nenhum tipo de racionalização
justifica essa associação.
É fundamental lembrar que o ateísmo repousa no campo das ideias: ele
nada mais é do que a ausência de crença em deuses. Não haveria nada de
errado em criticá-lo, pelo mesmo motivo que não há nada de errado em
criticar o liberalismo ou o socialismo.
No entanto, as afirmações de Betto são de outra ordem, pois se
referem a pessoas. Militante é o indivíduo que milita ou atua em alguma
causa. Assim, todos os falantes da língua portuguesa, inclusive o frei,
entendem que ateísmo militante é a ação de quem promove o ateísmo.
Nenhuma idiossincrasia de Betto mudará o significado direto que o resto
dos mortais tem dessa expressão. Sua ofensa está em propor que violência
para com o outro significa ateísmo militante, implicando entre outras
coisas que torturadores são ateus. Isso é inaceitável.
O raciocínio do religioso não resiste ao mais óbvio exame. Pode-se
virá-lo de ponta-cabeça afirmando que todo indivíduo é um templo do
humanismo secular, e que portanto os torturadores na verdade praticam
religiosidade militante. Mais importante ainda é o fato de que rebatizar
à plena força expressões já existentes para lhes dar significado
espúrio e negativo é um inegável sintoma de preconceito.
Atenção: propostas repulsivas à frente. Seria aceitável renomear um
vaso sanitário como “negro militante” e prosseguir com todas as frases
que isso acarretaria? Sob que pretextos aceitaríamos que se chamasse o
tráfico de drogas de “prática do judaísmo”? A justificativa para esse
estupro semântico é indiferente. O que importa é que ele revela uma
desinibida sanha para identificar o outro com o mal. Que nome se dá a
essa abjeta inclinação?
Só para quem que vê a bondade identificada com a pele branca, e a
maldade associada à negra, faz sentido dizer que brancos maus têm alma
negra, ou o oposto: negro de alma branca é bom. Em seu texto, Frei Betto
não hesita em fazer a mesmíssima coisa, imaginando que até inquisidores
e pedófilos da Igreja Católica praticam ateísmo militante(!), a
despeito de seu óbvio catolicismo: são os brancos de alma negra. Quando
afirma “quem ama o próximo ama a Deus ainda que não creia”, são os
negros de alma branca: ateus bons de coração em verdade são como
crentes. Ora, se não é lícito identificar maldade com judaísmo,
cristianismo, negritude ou qualquer outra posição, militante ou não,
então o mesmo vale para o ateísmo.
Também não há como engolir a insistente alegação de Betto de que sua
acusação pesa apenas sobre a militância, não sobre o ateísmo em si. Um
dos motivos é o fato de que a versão expandida de seu texto original,
amplamente reproduzida online, afirma com todas as letras: “raros os
presos políticos que professavam convictamente o ateísmo. Nossos
torturadores, sim, o faziam escancaradamente ao profanarem, com toda
violência, os templos vivos de Deus”. Fazendo a análise sintática,
tem-se a seguinte oração equivalente: nossos torturadores professavam
convictamente o ateísmo de forma escancarada.
Betto está obviamente preocupado em defender o respeito a ideias,
proposta que repete várias vezes, o que lamentamos profundamente. Ideias
não têm direitos nem dignidade: seres humanos têm. Ideias e crenças não
precisam ser protegidas nem respeitadas. Seres humanos precisam. Essa
parece ser a grande diferença moral entre ateus e religiosos: para nós
só há imoralidade quando se causa sofrimento àqueles que podem senti-lo.
As ideias que se virem. Para Betto e a maior parte dos religiosos, as
ideias têm direito de não serem criticadas, mesmo quando falsas. Os
humanos que se virem.
Especialmente os ateus.
* Presidente da ATEA – Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos
Um comentário:
E eu que pensava que esse frei pensava...
que idéia mais estúpida!!
Como se crentes não matassem,
como se torturadores não pudessem ser cristãos,
como se a iquisição tivesse sido coisa de ateus.
Realmente, lamentável que um frei de esquerda diga tamanha tolice!
Camilo Prado.
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