Sempre
admirei as mulheres valentes e ainda me arrepio ao lembrar Micaela
Bastidas, vendo seus filhos e seu marido serem esquartejados, impávida,
sabendo que havia feito a coisa certa: lutar pela liberdade, contra o
colonialismo, pela sua terra e pelo direito de ser quem era. Encanta-me a
história de Juana Azurduy, espada em punho, lutando pela libertação
desta “nuestra América”, encurralada, com seus filhos nos braços, sem
nenhuma vacilação. Ou ainda Bartolina Sisa, comandando as tropas aymaras
no cerco a La Paz, poderosa como uma deusa, a alertar para o perigo da
conciliação de classe. E Manuelita Saenz que, desde seu profundo amor
por Bolívar, se fez generala, defendendo a liberdade assim como defendia
seu homem, adaga na mão, lutando contra os assassinos. Ou Anita
Garibaldi, que enfrentou o olhar de reprovação dos seus e partiu,
montada em seu cavalo, com seu amor, empunhando a espada na luta pela
liberdade. Ah, essas mulheres...
Poderia
ainda citar outras tantas que, nestas terras de Abya Yala, mostraram
seu valor, entregando a vida para construir um mundo novo, que
garantisse a liberdade e a soberania popular. Mulheres guerreiras que
simplesmente foram à luta sem reivindicar diferença de gênero, porque o
que estava em jogo era o futuro das gentes e isso era tudo o que
importava. E foi porque me criei ouvindo estas histórias que nunca fui
muito afeita a esse debate feminista. Desde pequena, nas planuras da
fronteira, as mulheres da minha vida, poderosas, estavam muito mais para
Ana Terra que para Bibiana. Sempre prenhas de minuano e horizontes, as
mulheres da minha infância empunhavam armas, corcoveavam nos cavalos
bravios, banhavam-se nuas nas sangas, dormiam com seus homens na
campina, disputavam carreira, queda de braço, tomavam caçacha e ainda
lavavam roupa e faziam comida, com o palheiro acesso entre os lábios e
aquele olhar de picardia.
Digo
isso para alertar sobre o fato de que termos agora a primeira mulher
presidente não quer dizer muita coisa. Porque antes de tudo é preciso
saber: que projeto de país tem essa mulher? Que propostas têm para a
educação, a saúde? Que modelo econômico vai defender? Com que valentia
vai enfrentar a oligarquia agrária? Como vai enfrentar o tema dos povos
originários? Até onde vai ceder diante da pressão das transnacionais? O
quanto vai efetivamente tornar real o serviço público capaz de atender
as demandas concretas da população? Assim, o fato de ser mulher não a
torna especial. O que a fará única e “imorrível” é o caminho que vai
trilhar. Basta lembrar Margareth Tatcher, a dama de ferro, mulher. E aí?
Qual o seu legado para a Inglaterra? Para quem governou? Quem não se
lembra da lenta e cruel destruição da categoria dos mineiros?
Dilma
Russef tem uma linda história. É, sem dúvida, uma guerreira. Passou
pela luta contra a ditadura, foi presa, torturada e tudo o mais do
pacote básico das violentas ditaduras desta nossa América. Sobreviveu
não só no que diz respeito à vida mesma, mas também na capacidade de
superar e constituir uma bonita carreira profissional e política. Mas,
no governo de Luis Inácio, foi “a mãe” do PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento), que, muitas vezes, mal planejado e eleitoreiro, não
cumpriu com a sua promessa de melhorar a vida das gentes. Um exemplo da
minha aldeia: aqui, no bairro Campeche, o PAC financiou a construção de
uma rede coletora de esgoto. Isso é bom. Mas a proposta que tem para o
destino final é a construção de um emissário que leve os dejetos todos
para o mar, poluindo e destruindo a natureza. Que crescimento isso
acelerou? Também foi ela quem ajudou a derrubar os “entraves ambientais”
para a construção de grandes usinas, comprovadamente nocivas ao meio
ambiente e as gentes. Isso foi ruim, muito ruim. Que o digam as gentes
ribeirinhas e os povos indígenas.
Agora
ela aí está. Competente, séria, dedicada, criatura do Lula, a quem
agradeceu emocionada no seu discurso de posse. “Sou uma mulher de
esquerda”, declarou em uma entrevista. “Vou governar para todos”,
insistiu na sua fala à nação pouco depois de eleita, e deu bastante
ênfase a idéia de desenvolvimento, fazendo crer que o Brasil pode entrar
para o seleto clube dos países centrais. Mas, é isso que se quer? Ser
“desenvolvido” como a Inglaterra, os Estados Unidos, a França? Ser
predador, explorador, imperialista? Há que ver qual é a estação final a
qual Dilma quer chegar.
Os
oito anos de Luis Inácio foram anos de bonança para a elite nacional.
Nunca os ricos ganharam tanto, nunca os bancos ganharam tanto, nunca os
latifundiários ganharam tanto. O próprio Luis Inácio admitiu isso em um
de seus discursos. É fato que os pobres tiveram um quinhão do bolo, mas,
vamos combinar, um pequeno quinhão. O bolsa família deu sobrevida a uma
gente que definhava, mais ainda não lhes apontou o caminho da
libertação. Criaram-se 14 novas universidades, que ainda patinam na
qualidade. Com o Reuni, deu-se muita grana para as escolas privadas,
embora isso garantisse vaga para alunos carentes. Então, não dá para
negar que houve alguns avanços, mas sempre se reivindicou que era
preciso mais. Muito mais.
Hoje,
na senda neodesenvolvimentista apregoada por Dilma, estão encerradas as
promessas de crescimento econômico e social, o que parece coisa boa.
Mas, talvez falte ao governo explicar a custa do quê isso pode
acontecer. Se antes o chamado desenvolvimento estava bloqueado pela
dívida externa, hoje, sendo o Brasil periferia e dependente, esse tal
desenvolvimento só pode chegar com o sacrifício da maioria, os mais
pobres. E sempre tem sido assim. Desenvolvem-se os mais ricos,
recorrentemente.
Dilma
falou em diminuir a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, em
acabar com a miséria, com a cracolândia, com o atraso. Promessas
grandiosas que serão cobradas. Mas, na queda de braço com a elite
nacional é que se poderá ver até onde vai a posição de esquerda da nova
presidente. Existe aí um grande desafio que não será vencido sem uma
mudança radical na proposta de organização da vida. O desenvolvimento
sonhado não pode ser o mesmo dos países centrais. Há que se avançar para
uma proposta nacional popular, capaz de realmente garantir a
participação popular efetiva e protagônica. Sem a soberania do povo os
avanços serão pífios.
Enfim,
aí está a nova presidenta, uma mulher que “sim, pode”. Mas, feminina ou
não, sua proposta de governo estará sob as luzes, e a nós cabe
acompanhar. Sabemos que na composição PT/PMDB não deve haver espaço para
o avanço no rumo do socialismo. O que se pode esperar são algumas
reformas, e muitas delas serão contra as gentes, como a anunciada nova
reforma da previdência, cuja versão européia está levando milhões às
ruas no velho continente. Isso significa que não há tempo para esmorecer
na luta por outra forma de viver. A luta das gentes segue e seguirá até
que se construa, coletiva e conscientemente, a nova sociedade.
- Elaine Tavares – jornalista brasileira
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