No dia 24 de novembro uma greve geral parou um milhão dos cinco milhões de trabalhadores ativos em Portugal.
Por Eliza Capai, de Lisboa na Revista Forum
No dia 24 de novembro uma greve geral parou um
milhão dos cinco milhões de trabalhadores ativos em Portugal. “A greve
geral com mais impacto até hoje", de acordo com o líder sindical
Carvalho da Silva, tinha como uma das metas lutar contra o desemprego
que acomete 20% dos jovens portugueses e 10,8% da população total do
país (de acordo com o relatório “Emprego na Europa 2010” da União
Europeia). E um dos efeitos dessa situação foi o incremento da emigração
no país. O fluxo atual, só comparado ao êxodo da década de 60, tirou
nos últimos cinco anos 350 mil pessoas do país (dados do Observatório
das Migrações). No entanto, os destinos da emigração se modificaram.
Antes, os portugueses migravam principalmente para a vizinha Espanha e para o Reino Unido, mas a taxa de desemprego de 20,3% hoje no país hermano e a crise inglesa que prevê a demissão de meio milhão de funcionários públicos no país fizeram com que os lusitanos descessem um pouco no mapa. “Quando as crises são globais as migrações baixam sempre. Aparentemente o único país que escapou a esta baixa foi Angola”, explica Rui Pena Pires, que duas semanas antes da Greve Geral lançava o ‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’.
Em 2006, haviam sido tirados apenas 156 vistos de portugueses para a ex-colônia. Três anos depois o número subiu para mais de 23 mil. Atualmente, estima-se que vivam em Angola 100 mil portugueses: quatro vezes mais do que os angolanos que vivem em Portugal. Assim, o país subverte o esquema de migrações norte-sul enquanto Angola contraria a característica das ex-colônias de exportadora de mão de obra. “Angola é o único país fora da Europa para onde se dirige a emigração”, continua Rui Pena Pires.
Entre 2005 e 2008, em Portugal "houve mais saídas do que entradas. Há um déficit migratório", completa Pires. "Este déficit tem consequências no plano demográfico, normalmente associado à sustentabilidade dos sistemas de proteção social. Mas não só nesse plano: não conheço nenhuma economia que cresça com a população a diminuir", explica. De acordo com o Atlas, embora Portugal tenha uma média de emigrados semelhante à de países europeus como o Reino Unido, ele não consegue atrair atualmente a mesma quantidade de imigrantes: são 2,3 milhões de portugueses espalhados no mundo e menos de meio milhão de imigrantes na pátria lusa. Portugal é o 22º país com mais emigração, mas conta com apenas 4,2% de imigrantes na sua população.
A diferença entre as economias dos dois países ajuda a explicar o fluxo. O Produto Interno Bruto de Angola deve chegar a 258,388 bilhões de dólares em 2010, com crescimento de 7,08% neste ano. Por outro lado, em Portugal estima-se que o PIB neste ano será de US$ 161,596 bi, com crescimento de 1,12%. Para os próximos anos, o FMI estima que a distância entre os dois irá aumentar: o crescimento da economia angolana deve ser de 6,29% em 2011 e 6,05% em 2012, enquanto a economia lusa deve ter índices pífios, -0,05% e 0,6% respectivamente.
Nem lá, nem cá
Filipa Faria, profissional da área de eletrônica, trabalha há dois anos em uma empresa portuguesa de softwares que tem filiais em alguns países africanos. “Nunca tinha pensado em morar lá até ser me oferecido um trabalho no ano passado”, conta. “Perguntaram se eu estaria disponível para ir trabalhar em uma das filiais de Angola porque ainda há muita falta de mão de obra lá. Pensei duas horas e disse logo que sim, que aceitava. Do ponto de vista profissional representa um ganho na carreira”, explica. Além de promoção, Filipa teve um reajuste salarial. “Mas lá o custo de vida é muito mais alto, estou ganhando apenas 30% mais do que ganhava em Lisboa”, explica.
Se realmente os portugueses – e aqui poderíamos incluir também os brasileiros – que seguem para Angola tem seus salários aumentados, o custo social da vida nova tem que ser avaliado e não pode ser contado numericamente. Filipa opta por não fazer como alguns portugueses que conhece, que se mantêm em “guetos de brancos frequentando restaurantes para estrangeiros de cem dólares por jantar” e vivendo em condomínios fechados. Ela tem um grupo de amigos que mescla a comunidade internacional com angolanos. Por tentar circular normalmente em Luanda ela enfrenta parte das restrições sofridas pelos angolanos. “São preocupações básicas com água e luz que eu não tinha em Portugal, como a questão da segurança. Depois, toda a logística envolvida com os transportes, com o fato de não haver táxis, mas são coisas que se aprende a lidar”, esclarece.
O choque cultural também é outro problema que acompanha os lusitanos que vão para Angola. “Há um pouco o estigma de que os portugueses vão para lá para se aproveitar e para continuar a `roubar` como na época da colonização. Isto aconteceu com muitos, mas o que mais vejo é que as pessoas que estão lá querem juntar um bocadinho de dinheiro para comprar uma casa, por exemplo”, justifica Filipa. Não seria de se esperar outra reação, considerando que são apenas 35 anos de independência após uma história colonial exploradora. O preconceito pode ser visto em agressões verbais e físicas ou em pequenos atos cotidianos. Filipa conta que em qualquer compra de rua acaba pagando duas a três vezes o valor que pagaria um angolano. “Por isso, acabamos pagando para nosso motorista fazer as compras”, explica.
“Angola foi muito mitificada nas décadas de 1950 e 1960 como uma espécie de futuro de Portugal, era o novo Brasil na África que se esperava e que também viria a ser multirracial, onde os portugueses pudessem ficar”, explica Rui Ramos. Para o historiador, além da motivação econômica, Angola oferece “este fator mítico, sentimental. Basta falar com estas pessoas que saíram de Angola há trinta anos, mas que nunca perderam este sentimento de nostalgia. Há muita gente que vai por vezes para lá para descobrir aquilo que lhe contaram, e gente mais nova que vai tentar redescobrir o que seus pais ou avós contaram da forma como viviam em África”.
Filipa não é exceção a esta regra. Seus pais, brancos e descendentes de portugueses, são angolanos. Vieram estudar em Lisboa, onde se conheceram e ficaram porque no período eclodiu a guerra na então colônia. “Todas as histórias da minha família estão muito relacionadas com Angola. As histórias que me contavam eram todas fantásticas, envolviam animais selvagens, daqueles que eu só via na televisão... E um estilo de vida mais descontraído”, conta Filipa. “Lembro de histórias do meu pai quando era criança, que ele tinha um macaco no quintal. Isto tudo para mim era fabuloso de imaginar”, continua. Ela diz ainda que seus pais estão muito preocupados com ela estar lá, sozinha, “mas ao mesmo tempo eles respeitam muito a minha opção e se divertem muito em partilhar a minha vida lá: eles conhecem as ruas, os bares, os cafés... então é giro [legal] mostrar as fotos, as diferenças”, encerra.
Na mão inversa
Se os portugueses têm dificuldades quando migram para Angola, a vida tampouco é fácil para quem vai tentar a vida na terra de Cabral. Apesar de Portugal ser historicamente de emigrantes (ver box), o país também recebe pessoas vindas de outros países e reproduz as políticas europeias de imigração. Beatriz Padilla, socióloga especialista em imigração latino-americana do Centro de Investigações do Estudo de Sociologia (CIES, Lisboa), acredita que “a relação é sempre unidirecional: só os imigrantes enxergam a necessidade de se integrar. O discurso é sempre ‘a culpa é deles, eles são ignorantes, as suas culturas são atrasadas, nós na Europa temos os valores universais etc’. Então até que ponto as sociedades europeias recebem com braços abertos aos imigrantes? Eles queriam mão de obra e vieram pessoas, não é?”.
Em Portugal, a maior comunidade imigrante é a brasileira, seguida pela caboverdiana e, depois, pela ucraniana. Esta predominância brasileira se efetivou em função principalmente do famoso 11 de setembro. Com o endurecimento das leis imigratórias norte-americanas, brasileiros, em especial vindos de Minas Gerais, passaram a pousar em terras lusas e, em 2004, já eram a maior comunidade de migrantes e em 2008 já chegavam a 107 mil. Antes disso, a imigração brasileira se caracterizava por ser de profissionais com nível superior, mas hoje a mão de obra não-qualificada é bastante significativa, com trabalhadores da construção civil e trabalho doméstico, por exemplo.
“Até dez anos atrás as maiores comunidades eram de países de língua portuguesa vindos das ex-colônias da África”, explica Beatriz Padilla. “Apesar de serem os imigrantes com maior tempo de fixação, os africanos são ainda os mais discriminados, pois sofrem mais com o racismo e com dificuldades na integração no mercado de trabalho”, continua. “Muitas vezes os filhos destes imigrantes continuam a ser discriminados como os seus pais. Mas é claro que a revolta é diferente porque muitas vezes eles já nasceram em Angola e não são considerados ou vistos como portugueses”, completa.
Cor de pele
Na periferia de Lisboa, em bairros de realojamento de populações vindas dos ‘bairros de lata’ – as favelas lisboetas – trabalha Eunice Gomes. Muitos destes bairros têm população majoritária de imigrantes e Eunice, que fez sua tese sobre a segunda geração de imigrantes caboverdianos em Portugal, consegue observar em sua rotina o que escutava em entrevistas. “A principal revolta das comunidades de portugueses de origem caboverdiana deriva da identidade, da não aceitação devido à cor da pele, e do sistema de legalização dos documentos. Eles se questionam ‘se eu nasci cá por que é que não vou ter direito a ser um cidadão português?’”. Eunice, mulata, é filha de imigrantes. Embora nunca tenha viajado a Cabo Verde, ela se identifica mais com a cultura do arquipélago de seus pais. “A música, a comida, o jeito de ser do caboverdiano”, explica com sorriso largo, “me fazem sentir mais de lá”, conta, ilustrando sua própria tese.
A pesquisadora Beatriz Padilla, neta de espanhóis, nasceu e cresceu na Argentina. De segunda geração assim como Eunice, ela contrapõe os exemplos dos dois lados do mar. “Isso nunca foi uma questão para mim, lá somos todos imigrantes. Hoje sou casada com um português, moro em Lisboa e tenho um filho português. Entretanto, aqui escutamos gente falando com ele ‘ah que bom, você vai passar o Natal na sua terra’ e aí eu fico pensando ‘ué, mas a terra dele é aqui!’ E isso com o meu filho, que é branco, imagina quando as crianças não são brancas. Elas nascem e não são vistas nem tratadas como portugueses e isto é muito grave para a sua integração na sociedade”, garante.
Para romper este ciclo e combater o racismo, parte essencial da transformação é a alteração das leis. É necessário que elas facilitem a imigração e a documentação para que os estrangeiros tenham acesso ao sistema dos países onde vivem – como educação, saúde e moradia. “Embora a lei imigratória portuguesa esteja melhorando ainda há muitos problemas e deficiências. Muitos jovens e adultos nascidos aqui não são cidadãos; às vezes, para conseguir a nacionalidade, têm que apresentar atestado de antecedentes criminais de Cabo Verde, por exemplo. Mas eles nunca foram lá, nasceram e cresceram em Portugal. Para uma família pobre isso pode inviabilizar a efetivação da nacionalidade e uma das consequências é que eles só têm acesso a uma parte do ensino”, explica Beatriz.
Isso ocorre porque ali, como em boa parte dos países europeus, impera o jus sanguinis, ou seja, quem nasce em solo português e é filho de imigrantes não é português. Esta diferença modifica drasticamente a relação na incorporação e integração dos imigrantes aos países de destino. Rui Ramos explica que “Portugal, por ter sido ser Império, se baseava no direito do solo (jus soli) até o final dos 1970. Foi então que uma lei retirou a nacionalidade da maior parte das populações do ultramar”. Segundo ele, “no momento da descolonização da África deu-se o direito aos cidadãos de escolher suas nacionalidades. Aqui em Portugal temeu-se a possibilidade de toda a colônia optar pela nacionalidade portuguesa e vir para cá. Então promoveram uma lei com efeito retroativo e centenas de milhares de pessoas perderam o direito de ser portugueses”. A legislação passou a exigir que aqueles que tinham obtido nacionalidade lusitana, mas não tinham ascendentes portugueses e não residiam em Portugal há mais de três anos não eram portugueses. “Essa foi a maneira de, digamos, desnacionalizar aqueles milhares de angolanos, moçambicanos e outros; desta forma, introduziu-se este direito de sangue”.
Os pais de Eunice foram diretamente afetados pela lei. “Eles nasceram em Cabo Verde”, nos tempos em que o arquipélago era colônia, “e vieram para cá muito jovens, com cerca de dez anos. Meus pais têm residência fixa e aguardam a cidadania e isto tem para lá de quarenta anos”, ri. “Estamos sempre entre dois mundos, acho que a nossa identidade não deveria ser assim, não deveria haver esta diferença. Sou um pouco caboverdiana e um pouco portuguesa, mas o que acontece é que não me sinto aceita em nenhuma das duas sociedades”, lamenta.
Box 1 – Migração e xenofobia nos países vizinhos
O ‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’ é lançado no momento em que a Europa assiste a um crescimento de discursos abertamente xenofóbicos e a chegada ao poder de parlamentares de extrema-direita com discursos anti-imigração. Assim, na Escandinávia, outrora admirada por sua abertura, chegaram aos parlamentos dos países líderes da extrema-direita xenofóbica. A França iniciou a deportação em massa de ciganos (ver matéria na pág. XX). A chanceler alemã Angela Merkel decretou o fracasso do multiculturalismo e deixou claro que quem não aceitar os valores ocidentais não tem lugar por ali, isto no mesmo instante em que um livro anti-islâmico vira best seller no país. A Suíça proibiu a construção de minaretes, o leste europeu continua com políticas nacionalistas inspiradas no fascismo da década de 1930 e a Itália de Berlusconi segue com duras políticas anti-imigratórias. No sul da Europa já é notável a redução da imigração africana e, embora as estatísticas ainda não reflitam, se inicia um movimento de volta para os países de origem.
“Acho que o principal problema que vamos ter nos próximos dez, quinze anos, é uma desagregação de alguns princípios da sociedade europeia que estavam em tese garantidos. Eles têm a ver com a igualdade, os direitos humanos, com a tentativa de integrar e incentivar políticas de diversidade. Creio que com a atual crise e a desintegração que está acontecendo na União Europeia vamos ter uma ou duas décadas de retração para o Estado Nação. Normalmente é necessária uma narrativa muito nacionalista para isto acontecer”, explica o antropólogo e deputado português Miguel Vale Almeida. “Além da crise global, criou-se também o inimigo islâmico, por assim dizer, e que vai fazer com que haja uma reconfiguração identitária na Europa muito baseada simultaneamente na ideia do Estado Nação e, por outro lado, a diferenciação daquilo que é europeu, ocidental, cristão daquilo que é oriental, islâmico e por aí afora. E tenho muito receio deste processo”, lamenta Miguel.
Toda esta onda xenófoba despreza dados de um estudo da ONU que afirma que nos próximos 40 anos a população europeia em idade de trabalho se reduzirá em 20%. Ou seja, a Europa será ainda mais dependente de mão de obra imigrante, e corre o risco de deparar com o que ocorre em Portugal atualmente.
Box 2 – A imigração como problema
O historiador português Rui Ramos coloca a criação do discurso do ‘problema da migração’ em uma perspectiva histórica. “A Europa começou por ser uma grande `exportadora de população` no século XIX antes de se tornar no século XX uma importadora do resto do mundo. O que é interessante é que tanto na fase em que importava como na que exportava, se via a circulação das pessoas como um problema”, explica. “Isto tinha muito a ver com os tipos de Estados que se desenvolveram na Europa a partir do século XIX, que são os Estados nacionais que procuravam populações homogêneas e coesas, e que viam a perda de população como um problema porque se estava não apenas a perder mão de obra como também soldados, recrutamento militar. E via também na entrada daqueles que não eram nativos, que não eram educados conforme os sistemas nacionais, uma perturbação da coesão nacional.”
Desde o início do século passado um terço do crescimento demográfico português é absorvido pela emigração. Entre 1886 e 1950, 1,2 milhão de portugueses chegaram ao Brasil. Até a II Grande Guerra Mundial era para aí que se direcionava o maior fluxo de emigrantes lusos. Neste momento, os portugueses se caracterizavam por uma emigração pouco qualificada. Após a guerra o foco mudou para Estados Unidos, Canadá e Venezuela. Durante seu boom petroleiro, o país de Hugo Chávez foi um polo receptor de imigrantes no sul, situação comparável ao que se passa atualmente com Angola.
Durante a década de 1960, os lusitanos seguiam principalmente para França, Alemanha e Luxemburgo. Com a Revolução dos Cravos, que marcou o início da redemocratização em 1974, a emigração praticamente cessou. O período, que coincide com a descolonização da África, foi marcado pelo retorno de meio milhão de portugueses que viviam nas ex-colônias. Com a entrada na União Europeia em 1986, reinicia-se a onda emigratória em direção à Suíça e depois em direção aos demais países da UE. Neste momento, o perfil do emigrante passa a ser de um profissional qualificado. Em 2000, por exemplo, 13% dos portugueses com nível superior emigraram. Depois da crise econômica global, as emigrações começaram a se dirigir para Angola.
* Eliza faz parte do coletivo de Africa Tas a Ver: www.tasaver.org
Antes, os portugueses migravam principalmente para a vizinha Espanha e para o Reino Unido, mas a taxa de desemprego de 20,3% hoje no país hermano e a crise inglesa que prevê a demissão de meio milhão de funcionários públicos no país fizeram com que os lusitanos descessem um pouco no mapa. “Quando as crises são globais as migrações baixam sempre. Aparentemente o único país que escapou a esta baixa foi Angola”, explica Rui Pena Pires, que duas semanas antes da Greve Geral lançava o ‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’.
Em 2006, haviam sido tirados apenas 156 vistos de portugueses para a ex-colônia. Três anos depois o número subiu para mais de 23 mil. Atualmente, estima-se que vivam em Angola 100 mil portugueses: quatro vezes mais do que os angolanos que vivem em Portugal. Assim, o país subverte o esquema de migrações norte-sul enquanto Angola contraria a característica das ex-colônias de exportadora de mão de obra. “Angola é o único país fora da Europa para onde se dirige a emigração”, continua Rui Pena Pires.
Entre 2005 e 2008, em Portugal "houve mais saídas do que entradas. Há um déficit migratório", completa Pires. "Este déficit tem consequências no plano demográfico, normalmente associado à sustentabilidade dos sistemas de proteção social. Mas não só nesse plano: não conheço nenhuma economia que cresça com a população a diminuir", explica. De acordo com o Atlas, embora Portugal tenha uma média de emigrados semelhante à de países europeus como o Reino Unido, ele não consegue atrair atualmente a mesma quantidade de imigrantes: são 2,3 milhões de portugueses espalhados no mundo e menos de meio milhão de imigrantes na pátria lusa. Portugal é o 22º país com mais emigração, mas conta com apenas 4,2% de imigrantes na sua população.
A diferença entre as economias dos dois países ajuda a explicar o fluxo. O Produto Interno Bruto de Angola deve chegar a 258,388 bilhões de dólares em 2010, com crescimento de 7,08% neste ano. Por outro lado, em Portugal estima-se que o PIB neste ano será de US$ 161,596 bi, com crescimento de 1,12%. Para os próximos anos, o FMI estima que a distância entre os dois irá aumentar: o crescimento da economia angolana deve ser de 6,29% em 2011 e 6,05% em 2012, enquanto a economia lusa deve ter índices pífios, -0,05% e 0,6% respectivamente.
Nem lá, nem cá
Filipa Faria, profissional da área de eletrônica, trabalha há dois anos em uma empresa portuguesa de softwares que tem filiais em alguns países africanos. “Nunca tinha pensado em morar lá até ser me oferecido um trabalho no ano passado”, conta. “Perguntaram se eu estaria disponível para ir trabalhar em uma das filiais de Angola porque ainda há muita falta de mão de obra lá. Pensei duas horas e disse logo que sim, que aceitava. Do ponto de vista profissional representa um ganho na carreira”, explica. Além de promoção, Filipa teve um reajuste salarial. “Mas lá o custo de vida é muito mais alto, estou ganhando apenas 30% mais do que ganhava em Lisboa”, explica.
Se realmente os portugueses – e aqui poderíamos incluir também os brasileiros – que seguem para Angola tem seus salários aumentados, o custo social da vida nova tem que ser avaliado e não pode ser contado numericamente. Filipa opta por não fazer como alguns portugueses que conhece, que se mantêm em “guetos de brancos frequentando restaurantes para estrangeiros de cem dólares por jantar” e vivendo em condomínios fechados. Ela tem um grupo de amigos que mescla a comunidade internacional com angolanos. Por tentar circular normalmente em Luanda ela enfrenta parte das restrições sofridas pelos angolanos. “São preocupações básicas com água e luz que eu não tinha em Portugal, como a questão da segurança. Depois, toda a logística envolvida com os transportes, com o fato de não haver táxis, mas são coisas que se aprende a lidar”, esclarece.
O choque cultural também é outro problema que acompanha os lusitanos que vão para Angola. “Há um pouco o estigma de que os portugueses vão para lá para se aproveitar e para continuar a `roubar` como na época da colonização. Isto aconteceu com muitos, mas o que mais vejo é que as pessoas que estão lá querem juntar um bocadinho de dinheiro para comprar uma casa, por exemplo”, justifica Filipa. Não seria de se esperar outra reação, considerando que são apenas 35 anos de independência após uma história colonial exploradora. O preconceito pode ser visto em agressões verbais e físicas ou em pequenos atos cotidianos. Filipa conta que em qualquer compra de rua acaba pagando duas a três vezes o valor que pagaria um angolano. “Por isso, acabamos pagando para nosso motorista fazer as compras”, explica.
“Angola foi muito mitificada nas décadas de 1950 e 1960 como uma espécie de futuro de Portugal, era o novo Brasil na África que se esperava e que também viria a ser multirracial, onde os portugueses pudessem ficar”, explica Rui Ramos. Para o historiador, além da motivação econômica, Angola oferece “este fator mítico, sentimental. Basta falar com estas pessoas que saíram de Angola há trinta anos, mas que nunca perderam este sentimento de nostalgia. Há muita gente que vai por vezes para lá para descobrir aquilo que lhe contaram, e gente mais nova que vai tentar redescobrir o que seus pais ou avós contaram da forma como viviam em África”.
Filipa não é exceção a esta regra. Seus pais, brancos e descendentes de portugueses, são angolanos. Vieram estudar em Lisboa, onde se conheceram e ficaram porque no período eclodiu a guerra na então colônia. “Todas as histórias da minha família estão muito relacionadas com Angola. As histórias que me contavam eram todas fantásticas, envolviam animais selvagens, daqueles que eu só via na televisão... E um estilo de vida mais descontraído”, conta Filipa. “Lembro de histórias do meu pai quando era criança, que ele tinha um macaco no quintal. Isto tudo para mim era fabuloso de imaginar”, continua. Ela diz ainda que seus pais estão muito preocupados com ela estar lá, sozinha, “mas ao mesmo tempo eles respeitam muito a minha opção e se divertem muito em partilhar a minha vida lá: eles conhecem as ruas, os bares, os cafés... então é giro [legal] mostrar as fotos, as diferenças”, encerra.
Na mão inversa
Se os portugueses têm dificuldades quando migram para Angola, a vida tampouco é fácil para quem vai tentar a vida na terra de Cabral. Apesar de Portugal ser historicamente de emigrantes (ver box), o país também recebe pessoas vindas de outros países e reproduz as políticas europeias de imigração. Beatriz Padilla, socióloga especialista em imigração latino-americana do Centro de Investigações do Estudo de Sociologia (CIES, Lisboa), acredita que “a relação é sempre unidirecional: só os imigrantes enxergam a necessidade de se integrar. O discurso é sempre ‘a culpa é deles, eles são ignorantes, as suas culturas são atrasadas, nós na Europa temos os valores universais etc’. Então até que ponto as sociedades europeias recebem com braços abertos aos imigrantes? Eles queriam mão de obra e vieram pessoas, não é?”.
Em Portugal, a maior comunidade imigrante é a brasileira, seguida pela caboverdiana e, depois, pela ucraniana. Esta predominância brasileira se efetivou em função principalmente do famoso 11 de setembro. Com o endurecimento das leis imigratórias norte-americanas, brasileiros, em especial vindos de Minas Gerais, passaram a pousar em terras lusas e, em 2004, já eram a maior comunidade de migrantes e em 2008 já chegavam a 107 mil. Antes disso, a imigração brasileira se caracterizava por ser de profissionais com nível superior, mas hoje a mão de obra não-qualificada é bastante significativa, com trabalhadores da construção civil e trabalho doméstico, por exemplo.
“Até dez anos atrás as maiores comunidades eram de países de língua portuguesa vindos das ex-colônias da África”, explica Beatriz Padilla. “Apesar de serem os imigrantes com maior tempo de fixação, os africanos são ainda os mais discriminados, pois sofrem mais com o racismo e com dificuldades na integração no mercado de trabalho”, continua. “Muitas vezes os filhos destes imigrantes continuam a ser discriminados como os seus pais. Mas é claro que a revolta é diferente porque muitas vezes eles já nasceram em Angola e não são considerados ou vistos como portugueses”, completa.
Cor de pele
Na periferia de Lisboa, em bairros de realojamento de populações vindas dos ‘bairros de lata’ – as favelas lisboetas – trabalha Eunice Gomes. Muitos destes bairros têm população majoritária de imigrantes e Eunice, que fez sua tese sobre a segunda geração de imigrantes caboverdianos em Portugal, consegue observar em sua rotina o que escutava em entrevistas. “A principal revolta das comunidades de portugueses de origem caboverdiana deriva da identidade, da não aceitação devido à cor da pele, e do sistema de legalização dos documentos. Eles se questionam ‘se eu nasci cá por que é que não vou ter direito a ser um cidadão português?’”. Eunice, mulata, é filha de imigrantes. Embora nunca tenha viajado a Cabo Verde, ela se identifica mais com a cultura do arquipélago de seus pais. “A música, a comida, o jeito de ser do caboverdiano”, explica com sorriso largo, “me fazem sentir mais de lá”, conta, ilustrando sua própria tese.
A pesquisadora Beatriz Padilla, neta de espanhóis, nasceu e cresceu na Argentina. De segunda geração assim como Eunice, ela contrapõe os exemplos dos dois lados do mar. “Isso nunca foi uma questão para mim, lá somos todos imigrantes. Hoje sou casada com um português, moro em Lisboa e tenho um filho português. Entretanto, aqui escutamos gente falando com ele ‘ah que bom, você vai passar o Natal na sua terra’ e aí eu fico pensando ‘ué, mas a terra dele é aqui!’ E isso com o meu filho, que é branco, imagina quando as crianças não são brancas. Elas nascem e não são vistas nem tratadas como portugueses e isto é muito grave para a sua integração na sociedade”, garante.
Para romper este ciclo e combater o racismo, parte essencial da transformação é a alteração das leis. É necessário que elas facilitem a imigração e a documentação para que os estrangeiros tenham acesso ao sistema dos países onde vivem – como educação, saúde e moradia. “Embora a lei imigratória portuguesa esteja melhorando ainda há muitos problemas e deficiências. Muitos jovens e adultos nascidos aqui não são cidadãos; às vezes, para conseguir a nacionalidade, têm que apresentar atestado de antecedentes criminais de Cabo Verde, por exemplo. Mas eles nunca foram lá, nasceram e cresceram em Portugal. Para uma família pobre isso pode inviabilizar a efetivação da nacionalidade e uma das consequências é que eles só têm acesso a uma parte do ensino”, explica Beatriz.
Isso ocorre porque ali, como em boa parte dos países europeus, impera o jus sanguinis, ou seja, quem nasce em solo português e é filho de imigrantes não é português. Esta diferença modifica drasticamente a relação na incorporação e integração dos imigrantes aos países de destino. Rui Ramos explica que “Portugal, por ter sido ser Império, se baseava no direito do solo (jus soli) até o final dos 1970. Foi então que uma lei retirou a nacionalidade da maior parte das populações do ultramar”. Segundo ele, “no momento da descolonização da África deu-se o direito aos cidadãos de escolher suas nacionalidades. Aqui em Portugal temeu-se a possibilidade de toda a colônia optar pela nacionalidade portuguesa e vir para cá. Então promoveram uma lei com efeito retroativo e centenas de milhares de pessoas perderam o direito de ser portugueses”. A legislação passou a exigir que aqueles que tinham obtido nacionalidade lusitana, mas não tinham ascendentes portugueses e não residiam em Portugal há mais de três anos não eram portugueses. “Essa foi a maneira de, digamos, desnacionalizar aqueles milhares de angolanos, moçambicanos e outros; desta forma, introduziu-se este direito de sangue”.
Os pais de Eunice foram diretamente afetados pela lei. “Eles nasceram em Cabo Verde”, nos tempos em que o arquipélago era colônia, “e vieram para cá muito jovens, com cerca de dez anos. Meus pais têm residência fixa e aguardam a cidadania e isto tem para lá de quarenta anos”, ri. “Estamos sempre entre dois mundos, acho que a nossa identidade não deveria ser assim, não deveria haver esta diferença. Sou um pouco caboverdiana e um pouco portuguesa, mas o que acontece é que não me sinto aceita em nenhuma das duas sociedades”, lamenta.
Box 1 – Migração e xenofobia nos países vizinhos
O ‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’ é lançado no momento em que a Europa assiste a um crescimento de discursos abertamente xenofóbicos e a chegada ao poder de parlamentares de extrema-direita com discursos anti-imigração. Assim, na Escandinávia, outrora admirada por sua abertura, chegaram aos parlamentos dos países líderes da extrema-direita xenofóbica. A França iniciou a deportação em massa de ciganos (ver matéria na pág. XX). A chanceler alemã Angela Merkel decretou o fracasso do multiculturalismo e deixou claro que quem não aceitar os valores ocidentais não tem lugar por ali, isto no mesmo instante em que um livro anti-islâmico vira best seller no país. A Suíça proibiu a construção de minaretes, o leste europeu continua com políticas nacionalistas inspiradas no fascismo da década de 1930 e a Itália de Berlusconi segue com duras políticas anti-imigratórias. No sul da Europa já é notável a redução da imigração africana e, embora as estatísticas ainda não reflitam, se inicia um movimento de volta para os países de origem.
“Acho que o principal problema que vamos ter nos próximos dez, quinze anos, é uma desagregação de alguns princípios da sociedade europeia que estavam em tese garantidos. Eles têm a ver com a igualdade, os direitos humanos, com a tentativa de integrar e incentivar políticas de diversidade. Creio que com a atual crise e a desintegração que está acontecendo na União Europeia vamos ter uma ou duas décadas de retração para o Estado Nação. Normalmente é necessária uma narrativa muito nacionalista para isto acontecer”, explica o antropólogo e deputado português Miguel Vale Almeida. “Além da crise global, criou-se também o inimigo islâmico, por assim dizer, e que vai fazer com que haja uma reconfiguração identitária na Europa muito baseada simultaneamente na ideia do Estado Nação e, por outro lado, a diferenciação daquilo que é europeu, ocidental, cristão daquilo que é oriental, islâmico e por aí afora. E tenho muito receio deste processo”, lamenta Miguel.
Toda esta onda xenófoba despreza dados de um estudo da ONU que afirma que nos próximos 40 anos a população europeia em idade de trabalho se reduzirá em 20%. Ou seja, a Europa será ainda mais dependente de mão de obra imigrante, e corre o risco de deparar com o que ocorre em Portugal atualmente.
Box 2 – A imigração como problema
O historiador português Rui Ramos coloca a criação do discurso do ‘problema da migração’ em uma perspectiva histórica. “A Europa começou por ser uma grande `exportadora de população` no século XIX antes de se tornar no século XX uma importadora do resto do mundo. O que é interessante é que tanto na fase em que importava como na que exportava, se via a circulação das pessoas como um problema”, explica. “Isto tinha muito a ver com os tipos de Estados que se desenvolveram na Europa a partir do século XIX, que são os Estados nacionais que procuravam populações homogêneas e coesas, e que viam a perda de população como um problema porque se estava não apenas a perder mão de obra como também soldados, recrutamento militar. E via também na entrada daqueles que não eram nativos, que não eram educados conforme os sistemas nacionais, uma perturbação da coesão nacional.”
Desde o início do século passado um terço do crescimento demográfico português é absorvido pela emigração. Entre 1886 e 1950, 1,2 milhão de portugueses chegaram ao Brasil. Até a II Grande Guerra Mundial era para aí que se direcionava o maior fluxo de emigrantes lusos. Neste momento, os portugueses se caracterizavam por uma emigração pouco qualificada. Após a guerra o foco mudou para Estados Unidos, Canadá e Venezuela. Durante seu boom petroleiro, o país de Hugo Chávez foi um polo receptor de imigrantes no sul, situação comparável ao que se passa atualmente com Angola.
Durante a década de 1960, os lusitanos seguiam principalmente para França, Alemanha e Luxemburgo. Com a Revolução dos Cravos, que marcou o início da redemocratização em 1974, a emigração praticamente cessou. O período, que coincide com a descolonização da África, foi marcado pelo retorno de meio milhão de portugueses que viviam nas ex-colônias. Com a entrada na União Europeia em 1986, reinicia-se a onda emigratória em direção à Suíça e depois em direção aos demais países da UE. Neste momento, o perfil do emigrante passa a ser de um profissional qualificado. Em 2000, por exemplo, 13% dos portugueses com nível superior emigraram. Depois da crise econômica global, as emigrações começaram a se dirigir para Angola.
* Eliza faz parte do coletivo de Africa Tas a Ver: www.tasaver.org
Um comentário:
As crianças nascidas em Portugal filhas dos dois pais estrangeiros só recebem a nacionalidade portuguesa se pelo menos um dos pais tiver título de residência legal há pelo menos cinco anos.
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