sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Barragens e violação dos direitos humanos





Silvia Alvarez de Campo Grande (MS) no Correio do Brasil

Avatar não foi a primeira produção dos Estados Unidos a tratar dos impactos da ganância do lucro em comunidades. Floresta das Esmeraldas, filme de John Boorman, de 1985, conta a história de um engenheiro estadunidense que veio construir um megaempreendimento na Amazônia, mas é confrontado pela tribo “povo invisível”, tendo inclusive seu filho sido sequestrado pelos índios e se tornado, posteriormente, um deles. A obra em questão é a Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí, construída entre 1976 e 1984 em plena ditadura civil-militar, no rio Tocantins, no Pará.
A história não ficcional das comunidades atingidas por Tucuruí – até então povos invisíveis aos olhos do Estado – está agora registrada no relatório final da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado ao Ministério da Justiça. O documento foi aprovado no dia 22 de novembro, em Campo Grande (MS), na 202ª reunião extraordinária do Conselho. Além da hidrelétrica do Pará, outros seis projetos foram visitados e analisados pela Comissão – casos escolhidos seguindo os critérios de diversidade regional, tipos de projeto (de geração de energia e de retenção de água), tamanho e fase (em processo de licitação, implantação e já concluído). São eles: UHE Canabrava (GO), UHE Aimorés (MG), UHE Foz do Chapecó (RS e SC), Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Fumaça (MG), PCH Emboque (MG) e Barragem de Acauã (PB).
“Ao final de seus trabalhos, a Comissão Especial considera verídica e verificável a denúncia encaminhada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana”. Essa é a conclusão do relatório. O MAB havia encaminhado, em 2006, denúncias de violações de direitos humanos ao CDDPH, que deram origem à criação da Comissão Especial. O objetivo era verificar as denúncias e apresentar propostas para prevenir novas violações e minimizar os impactos sofridos pelas populações atingidas por barragens no Brasil. Entre 2007 e 2010, a Comissão realizou visitas às regiões dos sete casos escolhidos, participando de audiências públicas, colhendo depoimentos e requisitando documentos aos atingidos, órgãos públicos e empresas.
O presidente do CDDPH e Secretário Especial de Direitos Humanos, ministro Paulo Vanucchi, na abertura da reunião, parabenizou o trabalho da Comissão Especial considerando-o muito eficiente e competente. “Foi um trabalho histórico, que levou cerca de quatro anos. Li atentamente o relatório e sugeri que seja feito um sumário executivo para facilitar a leitura e a divulgação”, declarou o ministro. De acordo com o representante do Ministério Público Federal (MPF) na Comissão, João Aquira Omoto, a aprovação do relatório é de extrema importância, “pois é o reconhecimento do Estado de uma situação que estava se perpetuando sem que houvesse, de fato, medidas e propostas para resolvê-la”.
Segundo o relatório, “os estudos de caso permitiram concluir que o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira recorrente, graves violações de direitos humanos, cujas conseqüências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual”. A Comissão identificou, nos casos analisados, um conjunto de 16 direitos humanos sistematicamente violados, dentre os quais merecem destaque o direito à informação e participação; direito ao trabalho e a um padrão digno de vida; direito à moradia adequada; direito à melhoria contínua das condições de vida; e direito à plena reparação das perdas.
Para Carlos Vainer, relator e representante do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ na Comissão, o principal direito violado é o da informação. “As populações não são informadas dos grandes projetos que se abaterão sobre suas regiões. No máximo, são confrontadas com processos de comunicação social, que na verdade constituem um marketing desses projetos, cuja mensagem é a de que eles promoverão o progresso e a felicidade geral daquela população. Essa violação se verifica em todos os casos estudados”, afirmou Vainer durante a reunião do CDDPH.
A falta de uma definição ampla do conceito de atingido é apontada no relatório como uma das principais causas de ocorrência de violações de direitos humanos em implantações de barragens. Um dos frutos desse estudo é o Decreto nº 7.342 da Presidência da República, de 26 de outubro de 2010, que institui o cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e registro público da população atingida por barragens. A instituição do cadastro é uma antiga reivindicação do MAB e uma das recomendações do relatório da Comissão Especial.
Para Ricardo Montagner, representante do MAB na Comissão, o relatório será mais um instrumento de luta para os atingidos por barragens e, por isso, vai ser amplamente divulgado pelo movimento. “A aprovação do relatório legitimou as denúncias e a luta histórica feita pelo MAB. Vamos pressionar os órgãos públicos e as empresas para que apliquem as medidas de reparação recomendadas pela Comissão”, declara.

Parece ficção…
 
Para Montagner, um dos piores casos analisados pela Comissão é o de Acauã. O relatório definiu os reassentamentos em que vivem os atingidos como verdadeiros campos de concentração. “Ali, tiraram o direito à vida. As terras do reassentamento não são próprias para o cultivo e as comunidades estão isoladas, sem possibilidades de trabalho próximo”, denuncia.
Tucuruí também é considerado um caso desolador. Vinte e seis anos depois de construída a usina, centenas de atingidos ainda não foram reconhecidos e indenizados. Ocorreram graves impactos sociais e ambientais ainda não mitigados com repercussão negativa sobre a existência material e imaterial das populações e dos povos indígenas Parakanã, Asuriní e Gavião da Montanha. Ao contrário, esses impactos só tendem a aumentar com a conclusão das eclusas da barragem, inauguradas no dia 30 de novembro.
Em Aimorés, o que chamou mais a atenção da Comissão foi a paisagem deixada pela hidrelétrica: onde antes corria um rio, há somente poças que constituem, segundo o relatório, verdadeiros criadouros de vetores. A multiplicação de focos de aedes não traz riscos apenas de epidemias de dengue, uma vez que o mosquito é também o vetor urbano da febre amarela.

Recomendações

 
“Sejam quais forem as opções de desenvolvimento econômico e as escolhas que vier a fazer a nação nas áreas de geração e transmissão de energia elétrica e de gestão de recursos hídricos, nada pode justificar violações de direitos humanos”, constata o relatório. A comissão recomendou a adoção de mais de 100 medidas para garantir e preservar os direitos humanos dos atingidos por barragens e evitar novas violações.
O advogado Leandro Scalabrim, que também acompanhou a elaboração do relatório, destaca a recomendação de que se constitua uma Comissão Nacional de Reparação dos atingidos por barragens no âmbito da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e com a participação de outros órgãos públicos. “O único caso histórico parecido com este é o da comissão de anistia”, diz.
Além disso, o relatório apontou a necessidade de conceber, formular e implementar políticas de reparação específicas para grupos, famílias e indivíduos mais vulneráveis como idosos, crianças, doentes crônicos e portadores de deficiências físicas.

Nenhum comentário: