Clarice Lispector nos lembra: ninguém nasce pra ser feliz
por Pedro Gabriel no blog Amalgama
Se viva, Clarice Lispector teria completado este mês belos 90 anos.
Reconhecedor que sou da importância maiúscula de Clarice para a nossa
prosa e admirador contumaz de sua personalidade incrivelmente lúcida
sou, não obstante, um quase desconhecedor de sua obra. Pretendo ser
breve neste artigo a fim de (como manda a prudência) não cutucar minha
própria ignorância com vara curta. Não tecerei nenhum comentário sobre
algo de específico em sua obra que, como disse, desconheço em
profundidade. Meu comentário diz respeito ao sentido geral de sua
produção, algo que faz de Clarice uma escritora digna de ser lida e que
se refere a uma postura oposta à índole comum da nossa humanidade: a de
esconder o rosto sob o travesseiro da ilusão e sob o mesmo dormir o
profundo sono da animalidade onde se sonha enganosa e falivelmente com a
felicidade.
As pessoas querem ser felizes. O tempo inteiro, a cada instante,
interminavelmente. Tal experiência é esperada hoje por todas as pessoas
em todos os níveis, individual e social (com o novo laço social que se desenha)
e reforçada pela produção das drogas da felicidade e por uma imersão
midiática numa atmosfera de euforia onde todos os bens necessários à
nossa plena satisfação estão à venda numa série interminável de coisas
ofertadas sobr essa égide. Há hoje uma espera constante e permanente por
uma vida isenta de perdas, traumas, violência, frustrações, lesões,
engano. Enquanto há outro há dor (diria Freud se perguntado hoje sobre o
sentido geral de uma de suas obras maiores: O Mal Estar na Civilização).
Falando em Freud, aliás, não podemos esquecer do que este disse sobre a
literatura que é o reino onde impera soberano o Princípio do Prazer,
afirmação que não deve ser confundida com a idéia de fruição (isso seria
entender superficialmente a terminologia freudiana, embora não fosse de
todo incoerente com a função a-pragmática da arte e do que faz Clarice
com sua pena majestosa). Completamente de acordo com a arte-epifania,
todas as obras de Clarice que tive contato são tramas tecidas pelo fio
do conflito e do trauma, dito em uma única palavra: do Trágico.
Talvez seja esse o critério que mais facilmente nos ajude a
distinguir os gigantes intelectuais dos meros vendedores de livros (os
celebrados best sellers): na nossa história estética nenhuma obra
cunhada sob uma atmosfera edificante com personagens felizes sempre
emitindo bons exemplos resistiu à prova do tempo. A vassoura da história
felizmente varre de nossa memória obras irrelevantes não condizentes
com a dimensão mais elementar da vida, aquelas que não são feitas sob a
proposta de um trilhar sobre nossas veredas mais intimas: o ouro
verdadeiro só se prova no fogo (já diz um antiquíssimo ditado Hebreu).
Mesmo as histórias feitas para as crianças, como analisa Bruno
Bettelheim no seu Psicanálise dos Contos de Fadas, são
metáforas do que há de mais odioso em nossa condição e que, por meio das
narrativas infantis, encontram uma brecha na pesada barreira do
recalque para alertar nossas crianças que a vida não é para amadores e
que exige que pisemos leve e não confiemos demais. “O mundo não vale o
mundo” disse Drummond e poderiam dizer, se perguntados, os contos dos
Irmãos Grimm ou as fábulas de Esopo ou de Andersen (o gigante
dinamarquês), obra que meu filho (cuja carne hoje ainda é feita de sonho
e vento) haverá de um dia ler.
O senso comum (horse sense, como chamam os americanos)
insiste em criar histórias, para adultos e crianças, que desprezam o que
há de mais inconciliável em nossa condição substituindo os monstros
comedores de crianças por histórias sobre pessoas felizes que não
conhecem o engano em suas ascéticas trajetórias. Clarice, na contramão
dessa índole (como dissemos no início desse escrito) trata de solidão,
horror, morte, do eterno problema de nossa incomunicabilidade. Num de
seus poucos livros que li (Laços de Família) Clarice levanta a
cortina do núcleo familiar demonstrando toda a gama de impossíveis que
nos cerca e dos pequenos e grandes crimes cometidos todos os dias.
Clarice é uma flor de Lis ardendo em nosso peito lembrando que “nunca
fomos felizes” e que, aliás, não somos aparelhados pra isso.
Conforme lemos em Benjamin Moser, seu mais recente biógrafo, Clarice
fora concebida para curar sua mãe de uma sífilis incurável transmitida
pelos sucessivos estupros de soldados Russos durante a ocupação na
Ucrânia. Essa foi a trama que decidiu a presença de Haia (nome de
batismo de Clarice) nesse mundo infeliz. Conforme uma antiga crença
vigente no pequeno vilarejo de Tchetchelnik, engravidar significava
curar-se de qualquer doença. Mania não resistiu e morreu pouco depois de
chegar ao Brasil (fugindo da guerra). É a esse evendo que Bruno Moser
se refere para argumentar que Clarice é uma missionária falhada: falhada
porque não nasceu pra curar, restruturar ou edificar ninguém, senão
para exprimir o que há de mais próprio (num sentido heideggeriano) de
nossa experiência de estar no mundo. É uma obra onde se percebe a
aceitação dos limites e do peso impostos pelo mundo e pelo tempo e um
estado de conciliação com o que há de falível em nós próprios. Há paz em
Clarice, mas (oportunamente) não há felicidade.
Clarice completou efetivamente 90 anos neste mês. Sua obra permanece
viva e atual e assim se manterá enquanto houver algum peso que sua
escrita ajude a tornar suportável ou alguma ilusão que precise ser
tornada desilusão. Morrer é próprio do que é breve e passa sem deixar
vestígio, com isso Drummond nos faz pensar que Clarice não morrerá em
definitivo. Sua dissipação ocorrerá, fatalmente, mas como uma pluma
suave que, com leveza, dissipa-se e vai se perdendo em algum lugar. Como
disse a própria Clarice: perder-se é também caminho.
*Psicanalista, atua na clínica e no mundo: consultório, ambulatório, judiciário, docência e blogosfera.
Um comentário:
Prezado(a), agradeço pela citação. Grande abraço. Pedro.
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