domingo, 26 de dezembro de 2010

“Precisamos de um socialismo ecológico”, afirma economista mexicano


Enrique Leff não é um velho hippie ou um ecologista fanático. Mas para o economista mexicano, é impossível discutir economia hoje sem levar em conta a crise ambiental e as mudanças climáticas. Um dos maiores expoentes da corrente “ecomarxista”, Leff é doutor em Desenvolvimento pela Universidade de Sorbonne, leciona Ecologia Política na Universidade Autônoma do México e coordena a Rede de Formação Ambiental para a América Latina e Caribe do programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUD). Ele conversou com o Opera Mundi em Manaus durante o TEDx Amazônia, conferência independente realizada em Manaus.


Leff: a transição de uma lógica econômica e tecnológica para outra, com princípios ambientais

O senhor costuma dizer que a humanidade errou. Como esse erro gerou a atual situação, em sua opinião, uma “insustentabilidade da vida”?

A civilização ocidental gerou uma forma de compreensão que transforma o mundo em objeto, não respeitando a essência da natureza e do ser humano. As religiões judaico-cristãs pensavam o ser humano como criação divina, mas com direito de intervir sobre todos os seres vivos, com quase uma obrigação de subjugar a natureza. Depois houve muitos momentos de construção desse pensamento, como a fundação da metafisica, da filosofia grega. Ali se começa a pensar o mundo não como um ser complexo, mas como entes, coisas. É também o começo da fragmentação do mundo – não se via mais a vida em termos de processos complexos, interatuantes, interdependentes. E começava também uma obsessão de unidade do mundo, de ideias universais. Isso permanece ao longo de todo esse trajeto que vai desde a concepção originária da metafísica até a ciência moderna.

No fundamento da ciênca moderna essa lógica se perpetua?

Sim. A ciência não é o conhecimento universal. É um modo de produção de conhecimento. Mas foi idealizada pela modernidade como a forma suprema de criação de conhecimento. E pretende gerar um controle; é a ideia de controlar a natureza. A ciência pretendeu e pretende ainda chegar a um conhecimento objetivo da vida. Com isso, gerou também uma ideia de progresso, de que o destino dos seres humanos teria que ser um processo sempre crescente. Com todas essas ideias de fundo, vem o mito da ciência capaz de gerar conhecimentos sem a intervenção das paixões, dos interesses dos cientistas ou de grupos sociais.

Quando essa lógica passa da ciência para a economia?

No período da revolução industrial, dois fatos foram determinantes. O primeiro, a construção do novo modo de produção com a máquina de vapor, transformou a lógica do trabalho, surgindo o trabalhador desumanizado, destinado a produzir. Ao mesmo tempo, ciência econômica imaginada estava sendo estabelecida. Karl Marx fez uma crítica de uma lucidez maravilhosa e profunda para desentranhar onde que estava a relação social de dominação no modo de produção, que se pensava neutra...

Como uma lei natural.

Sim, como algo natural. Não se pensou que era uma relação de dominação, mas que o capital era mais forte que a força de trabalho, e assim se equilibravam as forças de produção para gerar uma produção de bem-estar. Uma falácia. A partir disso, a ciência e a tecnologia foram usadas para manter o capital produtivo, para salvar as crises cíclicas do capital. E finalmente a força de trabalho começou a ser substituída por uma aplicação direta da ciência convertida em tecnologia. Ou seja, não tem nem o humano. Hoje, o grande suporte do capital não é mais a força de trabalho. Isso gerou uma artificialidade, que é a economia completamente isolada da natureza. Não quer dizer que ela não utiliza a natureza, mas que utiliza a natureza já tratada como objeto, retirada dessa trama complexa que faz com que a biosfera continue a funcionar como um planeta vivo.
 
Onde Marx errou?

Marx foi o maior pensador crítico, mas nenhum pensamento é um pensamento final. Não conseguiu chegar nisso que agora chamamos de ecomarxismo, ou a segunda contradição: o capital estava se construindo sobre a destruição de suas bases ecológicas de sustentação. Estava objetivando, fragmentando a natureza, rompendo ciclos ecológicos necessários para manter a oferta de natureza de que a economia precisa. O que a economia fez foi explorar em demasia o trabalho, mas ao mesmo tempo, exauriu a natureza. Podemos dizer que Marx estava inserido no seu tempo. Em 1860 se acreditava que a natureza conseguiria se recuperar sempre. Não é o caso hoje. Mais de 100 anos depois, podemos fazer a crítica e avançar em uma conceitualização ainda mais complexa do que esse modo de produção gera. É por isso que precisamos de um socialismo ecológico, com foco na mudança dessa racionalidade econômica. Não é só uma questão do protelariado tomar os meios de produção, não é uma mudança de mãos do mesmo processo, é uma transformação profunda dessa racionalidade econômica.

Então, um marxista hoje tem que considerar a questão ambiental?

Sem dúvida. Hoje não se pode continuar a ser marxista sem pensar nessa contradição entre capital e natureza. O aquecimento global é gerado pela economia, não é uma coisa natural. É isso que ninguém compreende. Nem mesmo os cientistas, os políticos que discutem o aquecimento global. Precisamos entender que não é só uma questão da economia estar produzindo escassez da água, de recursos naturais, mas que está gerando a morte entrópica do mundo.

Como mudar essa racionalidade?

O primeiro passo é baixar a ciência do pedestal. A ciência construiu coisas maravilhosas, mas é só um modo de produção de conhecimentos. Não é o único, a vida humana gerou outros modos de compreensão do mundo. A academia não somente tem que ir para a interdisciplinaridade dentro da academia, mas debater os princípios científicos com outros princípios, como os saberes tradicionais. Hoje em dia há um grande debate se devemos seguir construindo pelas potencialidades da ciência e da tecnologia, ou se deve haver uma ética para normalizar essas potencialidades, porque a ciência gera grandes possibilidades, construiu a bomba atômica, o genoma humano que pode agora produzir seres vivos... É disso que estamos falando, é uma questão ética.

Outro conceito que você aponta nesse novo paradigma é o da alteridade...

A ciência gerou uma unificação do mundo através da dominação do sistema de mercado, a globalização econômica. Cria hábitos e formas de viver unificadas. A desconstrução desse modelo de produção deve pensar a produção a partir de potenciais ecológicos de cada território. A articulação entre a conformação de um território natural e uma cultura gera um mapa de modos diferenciados de produção que não podem ser unificados pela lei do mercado. Devemos conviver nessas diferenças. Mas a alteridade é um conceito ainda mais forte. A ciência diz que vamos construindo sobre as certezas que ela descobre, o que é errado. A verdade, se aceitarmos nossa condição de seres humanos, de seres simbólicos, é que nós não vamos nunca atingir um momento de totalidade, de sapiência absoluta.

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