segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

“O TDAH é um transtorno real e como tal deve ser encarado”

por dra. Katia Beatriz Corrêa e Silva, psiquiatra no Vio Mundo

Caros leitores, ao ler o artigo em pauta fiquei muito preocupada pela veiculação de algumas informações equivocadas, conceitos errôneos e falsos pressupostos.
Devo antes me apresentar: sou médica, psiquiatra da Infância e Adolescência, com foco de estudo e trabalho em TDAH e Bipolaridade há aproximadamente 20 anos. Mas como sou formada há 32, antes tive a oportunidade de me dedicar ao estudo de muitas das desordens que afetam a Infância e Adolescência.
Ao citar um livro de um outro jornalista, me pareceu que havia uma insinuação de que os transtornos mentais e emocionais estariam aumentando em quantidade e diversidade única e exclusivamente para a alegria e lucro da industria farmacêutica. Antes de qualquer dúvida, não recebo nada da tal indústria e nem tenho qualquer ligação com isso. Sei das artimanhas que elas engendram, não sou ingênua, e do seu apetite pelos lucros.
Mas a Cesar o que é de César.
Essa descoberta não é  só do ilustre jornalista. Há muito as pesquisas sérias já vinham detectando esse fenômeno. Mas vejamos por outros ângulos. Nesses 50 anos, o conhecimento científico cresceu como nunca, os meios de detecção de fenômenos, de testagem e confirmação de hipóteses, de troca de conhecimentos ao redor do mundo, foram ímpares na história do conhecimento humano. Em consequência a descoberta de novos transtornos, a melhor compreensão de outros e a melhora na capacidade diagnóstica cresceram proporcionalmente. Natural, não?
Nesses mesmos 50 anos, a mudança de parâmetros sociais e culturais, a mudança de referenciais econômicos, culturais, sociais e emocionais ao redor do mundo foi também ímpar na história da humanidade.
Nunca houve mudanças tão grandes e profundas em uma extensão tão ampla de países e culturas como nesses últimos 50 anos. E isso provocou e provoca alterações na forma de ver, sentir, reagir e responder às situações por parte das pessoas, levando também a desequilíbrios antes insuspeitos. Natural, não?
Com relação à pesquisa da Dra. Andreasen quanto à diminuição do lobo frontal por culpa do uso de medicação por longo período, é interessante saber se o mesmo número de pacientes psicóticos (que já é uma população heterogênea ), foi acompanhado pelos mesmos cinco anos, sem uso de qualquer medicação, para então podermos fazer essa afirmação de que foi o uso da medicação que provocou a diminuição da massa encefálica com prejuízo das funções cognitivas.
Outra questão que merece toda a nossa atenção é a citação de frases de pesquisadores fora dos seus trabalhos. Uma frase fora do seu contexto pode induzir ao que se queira.
Logo em seguida o jornalista faz afirmações no mínimo curiosas: que os transtornos mentais seriam mais frequentes justamente em quem se trata. Para que fosse minimamente correta, seria preciso ter o mesmo número de pacientes com os mesmos transtornos e as mesmas condições gerais e que não fizessem uso de qualquer medicação para que se pudesse fazer tal comparação. Não sei se o jornalista tem essa pesquisa e a que conclusões chegou.
E as crise são mais freqüentes em quem se trata ou quem não se trata não tem ninguém que cuide dele e logo não saberemos quantas crises teve e sequer se sobreviveu?
Outra afirmação curiosa é  que a depressão seria um desequilíbrio químico do cérebro, sem qualquer comprovação, seria antes um “lugar comum”. Sugiro que o prezado jornalista procure se inteirar um pouco mais das pesquisas, que já não são nem tão recentes.
Seria também interessante saber o que ele chama de evidências indiretas e que evidencias diretas supõe que tenhamos de transtornos físicos e mentais.
Outro equivoco grave é  supor que o TDAH é uma “nova síndrome”. Em 1902, o Dr. George Still, pediatra inglês, membro do Royal College apresentou em um encontro científico seus estudos sobre um grupo de crianças com os mesmos sinais e sintomas que caracterizam o TDAH, tipo misto. Ele estudou esse grupo por vários anos, antes de apresentar seu trabalho de pesquisa e antes dele temos descrições na literatura descrevendo exatamente o quadro que encontramos hoje.
Existe um poema alemão do século 19 descrevendo as aventuras de um menino inquieto com o mesmo comportamento que vemos atualmente nos portadores. Acho que a indústria farmacêutica ainda não era tão presente. Concordo inteiramente que a sociedade e a cultura americanas tem esse imediatismo, muitas vezes errôneo. Mas confundir as características de uma sociedade com a existência ou não de um transtorno mental, me parece, no mínimo, falta de informação correta.
Outra incorreção preocupante é afirmar que o uso da medicação altera a química do cérebro “para sempre” e “pior, sem saber exatamente o que está sendo alterado!”.
A química não é  alterada para sempre, até porque se assim fosse não seria preciso continuar o uso da medicação para se continuar a ter os benefícios que ela traz. O que a medicação propicia é a correção da falta de neurotransmissores, que não estão na quantidade necessária onde seria de se esperar. Uma informação que está disponível em qualquer texto científico sério sobre o assunto. E as consequências sobre o que acontecerá na vida daquela criança após anos de uso podem ser acompanhadas através da entrevista aos portadores que se tratam há anos e que tem suas vidas dramaticamente melhoradas pelo tratamento.
Seria interessante, quando não imprescindível, ouvir os principais interessados nessa questão: os portadores e seus familiares!
Outro equívoco primário é  associar o uso da medicação apenas e tão somente à atividade escolar. Ou à calma e obediência doméstica. Os que defendem essas justificativas não sabem qual a ação da medicação e não sabem do que se trata o TDAH. Não basta se dizer “especialista”, é preciso conhecer realmente o que é o transtorno, que áreas do comportamento afeta e quais suas reais consequências na vida do portador. E de suas famílias.
Se o jornalista autor do livro em pauta afirma que os  psiquiatras não sabem dizer o futuro dos pacientes tratados, talvez não tenha ouvido um número de profissionais suficiente ou tenha escolhido justamente os que não sabiam. Preconceito é uma atitude absolutamente democrática. Acomete a qualquer um.
A taquicardia que ele descreve e, sutilmente, sugere ocorrer em todas as crianças, é um efeito colateral possível sim, mas não tão comum como ele quer fazer crer. E todos os profissionais de saúde sérios sabem que toda e qualquer medicação tem efeitos colaterais. Se não tem efeito colateral, não tem efeito terapêutico. A frase com que encerra o parágrafo é maldosa e mentirosa. Mas deve causar um grande efeito nas pessoas leigas e ajudar a vender bem o produto.
A confusão a que o jornalista induz sobre a proximidade etiológica entre TDAH e Bipolaridade é, no mínimo, suspeita. A intenção clara é fazer o leitor acreditar que o uso da medicação para o tratamento do TDAH irá “promover” o surgimento de outro transtorno, mais grave. Consequentemente, os médicos que prescrevem a medicação para tratar o TDAH são criminosos, por provocar o surgimento de outro transtorno mental em quem, afinal, não tinha nada.
O Dr. Joseph Biederman e o grupo do Massachussetts Hospital fazem parte de um dos grupos de pesquisa mais ativos no estudo do TDAH e o Dr. Russell Barkley é um dos mais renomados estudiosos do assunto.
Curiosamente o jornalista cita pesquisas muito antigas ( 1973, 1978, 1996, 1997, 2001, 2002, etc.). Pesquisa com mais de cinco anos pode ser considerada antiga, dada a velocidade com que as descobertas em qualquer campo das ciências ( exatas, biológicas, e outras ) se dão. As pesquisas antigas trazem dados que, muito frequentemente, já foram revistos e muitas vezes modificados.
Outra questão grave é  a citação de frases fora de seus contextos. Elas se prestam às mais variadas interpretações. Principalmente quando já se tem um caminho que queremos que o leitor siga.
Quanto ao desempenho acadêmico, a capacidade de aprendizagem, os efeitos positivos nas funções cognitivas (funções executivas ) e a melhora no relacionamento social, pessoal e emocional, seria mais honesto perguntar aos portadores e suas famílias, do que citar obscuros profissionais em pesquisas das quais pouco se sabe.
Entretanto concordo inteiramente com a jornalista quando diz que os professores não tem a condição de fazer diagnósticos, nem de apontar tratamentos para os problemas que ocorrem na escola e em sala de aula. Para isso existem os médicos, neurologistas e psiquiatras da Infância e Adolescência, que se dedicam a estudar e pesquisar o transtorno.
É claro que inúmeros problemas podem causar agitação, desatenção e atitude impulsivas em uma criança ou adolescente. É óbvio que não se pode negar o efeito de problemas familiares, emocionais, pessoais, econômicos, na vida e no comportamento das crianças. Assim como métodos educacionais por vezes equivocados ou professores mal preparados também causam reações semelhantes. Mas a escola pode desempenhar uma parceria preciosa.
E é justamente porque as “tias Belas” e “tias Rosas” tinham e tem suas salas cheias com 30 ou mais alunos, e tem tantos anos de prática no trato com crianças, que podem e geralmente sabem quando um comportamento não é “só coisa de criança”. A escola pode perceber quando a alguma coisa diferente acontecendo com a criança e pode sim alertar os pais ou responsáveis e sugerir a procura a uma ajuda, uma orientação até uma avaliação. Mas realmente “os professores, por melhores que sejam, não estão capacitados para sugerir a necessidade de algum tratamento psiquiátrico.”
Mas isso não quer dizer que o TDAH não exista. Ou que seja uma invenção de industrias farmacêuticas gananciosas, professores preguiçosos ou pais estressados.
O TDAH é um transtorno mental real, com consequências sérias e como tal deve ser encarado.
Seria interessante ouvir as associações de pais e portadores, nos Estados Unidos o CHADD e os ADD, no Brasil a ABDA; na maioria dos países do mundo existem associações semelhantes.

PS do Viomundo: O jornalista a que se refere a dra. Katia aparentemente é Robert Whitaker, autor de Anatomy of an Epidemic, citado por Heloisa Villela aqui. Ele também é autor de Mad in America. O fato de que nos propomos a debater questões espinhosas como as doenças psiquiátricas não significa que os pacientes ou pais de pacientes devam abandonar as recomendações médicas.

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