sábado, 26 de março de 2011

Há quarenta anos nascia a esquerda tolerante no Uruguai

Archivo/presidencia.gub.uy

Felipe Prestes no Sul21

No dia 26 de março de 1971, o general Líber Seregni comandou o primeiro ato público da Frente Ampla, em Montevidéu. Três anos antes, Seregni deixara o Exército, recusando-se a compactuar com a escalada repressiva do governo de Jorge Pacheco Areco contra movimentos grevistas. Naquela época o militante do PT Gustavo de Mello, superintendente da Funasa no RS, era uma criança que vivia no Uruguai. Seu pai, integrante do Partido Comunista do Uruguai, foi um dos tantos que ajudou a fundar a Frente que conseguiu reunir socialistas, comunistas, democratas cristãos, dissidentes blancos e colorados, militares, sindicalistas, estudantes. Para Gustavo, o espírito tolerante de um general que se recusa a reprimir grevistas simboliza a Frente Ampla. “A Frente Ampla é indissociável de Líber Seregni, um general que se negava a reprimir grevistas. Era uma espécie de síntese desta concertação política”, diz.
A ideia de busca por convergência, apesar das divergências, era tamanha que conseguiam conviver os comunistas, ainda adeptos dos conceitos da União Soviética, com socialistas, profundamente críticos do modelo político do Leste Europeu. Ao lado deles, conviviam políticos que eram apenas reformistas, contrários à dualidade blancos x colorados da política uruguaia. “A Frente Ampla era um lugar de grande tolerância em um período em que a esquerda se caracterizava por grande intolerância entre si e patrocinava sucessivos rachas em várias partes da América Latina”, afirma Gustavo.
Para o presidente da Assembleia Legislativa gaúcha, deputado Adão Villaverde (PT), a Frente Ampla serviu como um exemplo para as esquerdas em toda a América Latina. “O exemplo de como você se unifica em cima dos acordos principais que você tem, e as coloca acima das divergências”, diz.
General Líber Seregni se recusava a reprimir movimentos sociais (Foto: Divulgaçãoi/Frente Ampla)

Convulsão política

O professor de História da Ufrgs, Enrique Padrós, nascido no Uruguai, conta que a Frente Ampla surge em um período de convulsão política, mesmo que o país vivesse um período democrático. O presidente Jorge Pacheco Areco fora eleito vice-presidente de Oscar Gestido, em 1967. Gestido morreu um ano depois e Areco armou um governo formado essencialmente por estancieiros e grandes empresários. O governo de Areco instaurou um clima autoritário dentro da democracia, utilizando leis de exceção como regra, censurando veículos de imprensa, reprimindo os movimentos sociais.
Ao mesmo tempo em que Areco marchava para o autoritarismo, os Tupamaros surgiam como alternativa da esquerda armada. Por outro lado, a aglutinação de dissidentes dos partidos tradicionais do Uruguai com comunistas, socialistas, movimentos sociais se dá porque estes setores todos viam no poder um inimigo em comum, mas buscavam uma saída democrática – embora houvesse na Frente Ampla também o braço político dos Tupamaros, liderado pelo escritor Mario Benedetti. “A Frente Ampla surge como a esquerda que quer reforçar o campo democrático. Sua tendência majoritária era algo entre o socialismo e a social democracia”, afirma Padrós.
O momento vivido pelo Uruguai era de intenso debate político. Trabalhadores ocupavam fábricas, intelectuais se aglutinavam em semanários de grande audiência, como o “Marcha”. Os frenteamplistas começam a organizar comitês nos bairros populares de Montevidéu. Estudantes protestavam nas ruas, e o movimento armado chegava a contar com a simpatia de setores da população charrua. Neste contexto político, seriam realizadas eleições presidenciais, ainda em 1971, apenas alguns meses depois da fundação da Frente Ampla. A candidatura de Líber Seregni consegue reunir grandes comícios e faz quase 20% dos votos, tendo sua votação concentrada especialmente em Montevidéu. O novo partido consegue eleger um número significativo de senadores e deputados que se tornam os mais combatentes opositores do presidente eleito Juan Maria Bordaberry, do Partido Colorado.
No dia 5 de fevereiro de 1971, reunião institui o partido (Foto: Divulgação/Frente Ampla)

Sobrevivência no exílio

Apesar de o Uruguai já rumar para o autoritarismo desde antes da criação da Frente Ampla, o professor Enrique Padrós acredita que o partido assustou quem estava no poder e “ajudou” a fazer com que o golpe militar ocorresse, em 1973. Àquela altura, a frente já era a maior opositora de Bordaberry, uma vez que o poderio militar dos Tupamaros havia sido debelado ainda no primeiro semestre de 1972. “A força que a Frente Ampla mostrou era um novo fator, que assustava ainda mais. O golpe foi contra as organizações, em especial a Frente Ampla”.
O medo que o partido de esquerda provocou se tornou evidente, porque a ditadura militar tratou de acabar com a agremiação. O Congresso foi fechado; os partidos políticos, extintos.  Líber Seregni e os militares que o apoiavam ficaram presos por quase uma década. Dois dos parlamentares mais expressivos da Frente Ampla acabaram sendo assassinados. Em 20 de maio de 1976, o ex-senador Zelmar Michelini, um dissidente colorado, e o ex-deputado Gutierrez Ruiz, dissidente Blanco, são sequestrados e levados para Buenos Aires, onde são mortos. Até hoje o dia 20 de maio é lembrado ano após ano e conhecido como o “Dia do Silêncio” no Uruguai.
A repressão faz com que a luta pela democracia ocorra no exterior. Primeiro, em Buenos Aires, que se torna a segunda cidade com mais uruguaios no planeta. Com o golpe militar na Argentina, em 1976, a luta se transfere especialmente para a Europa, mas também para Venezuela, México e Estados Unidos. Neste combate, tiveram papel escritores como Eduardo Galeano e músicos como Daniel Viglietti, exilados blancos e frenteamplistas e, até, exilados de Argentina, Chile e Brasil, que se uniam para denunciar as ditaduras do Cone Sul. “O exílio uruguaio foi muito combativo”, conta Padrós.
Os frenteamplistas fazem comitês por cidades, e representações em cada país. O partido consegue, inclusive, realizar grandes encontros fora do Uruguai e age denunciando a ditadura na imprensa internacional e, em organismos de defesa dos Direitos Humanos, faz articulações políticas com exilados blancos, conseguindo, inclusive, influenciar no processo de abertura do país, de 1984 a 1985. “Mesmo sendo derrotada eleitoralmente, mesmo com o golpe militar, a Frente Ampla buscou se reorganizar com as mais variadas formas de resistência. Teve papel estratégico na redemocratização do Uruguai”, diz Adão Villaverde.
Villaverde conta que, em Porto Alegre, quando o Brasil já caminhava de forma “lenta, gradual e segura” para a democracia, ele e outros militantes petistas tiveram intercâmbio com frenteamplistas. “Eu e vários militantes do PT tivemos relação muito estreita com o conjunto de dirigentes que estão hoje à frente da FA. Foi muito importante albergarmos eles em Porto Alegre. Nós os ajudamos a criar condições para eles poderem se rearticular e fazer a resistência democrática, recompor a organização da Frente e voltar depois da anistia no Uruguai para se reestruturar”.

Da liberdade negociada ao poder

Em novembro de 1984, o Uruguai realiza eleições gerais, mas a democracia não está totalmente reinstalada no país cisplatino. Líber Seregni é impedido de concorrer à presidência. A Frente Ampla não volta com a mesma força, mas inicia um processo de crescimento – elege seis senadores e 21 deputados. Em 1989, a Frente Ampla chega à prefeitura de Montevidéu, com Tabaré Vazquez. A experiência na capital do país, segundo cargo político mais importante no Uruguai, foi fundamental para credenciar o partido a chegar à presidência. Em Montevidéu, a Frente Ampla nunca mais deixou o poder. Já são 22 anos comandando a capital uruguaia. “A Frente Ampla ganha credibilidade ao governar Montevidéu”, afirma Gustavo de Mello.
O deputado Adão Villaverde diz que a Frente Ampla na capital inverteu a lógica política de blancos e colorados, priorizando investimentos na periferia da cidade, especialmente em obras de infraestrutura, como habitação. “A frente recuperou uma das coisas mais importantes de Montevidéu: voltou a ser uma cidade alegre. Ao longo do regime militar, ela havia perdido isto”.
Enrique Padrós afirma que as diferenças entre a gestão frenteamplista na capital uruguaia e a dos dois partidos tradicionais foram a ética no exercício do poder e a articulação política nos bairros populares. “Os cidadãos passaram a ser consultadas por seus representantes”. Assim, a Frente Ampla melhorou significativamente o serviço de saúde da cidade, o transporte público e democratizou os espaços públicos.
Em 2004, coube a Tabaré Vazquez o pioneirismo novamente, sendo eleito presidente do Uruguai. No poder máximo do país, a Frente Ampla não fez reformas radicais, mas tratou de avançar na erradicação da pobreza, especialmente no interior do país. Investiu em habitação e nos assentamentos rurais, ampliou o acesso à saúde de qualidade. Avançou também nos Direitos Humanos, conseguindo punir alguns dos militares e civis envolvidos na ditadura militar. O programa de governo que ficou mais famoso, sendo exportado para outros países, foi o “Plan Ceibal”, que visa dar um laptop para cada aluno da escola pública no Uruguai. O plano já está sendo estendido para o ensino superior.
No poder, Frente Ampla tem as mesmas dificuldades que o PT para imprimir mudanças (Foto: Rooswelt Pinheiro/ABr)

Para Enrique Padrós a maior prova de êxito na condução da economia uruguaia é ter cessado, nos últimos dois anos, a fuga de jovens do país em busca de melhores oportunidades no exterior. Em 2010, inclusive, muitos uruguaios retornaram ao país – o governo tem ajudado os que desejam voltar. O professor pondera, contudo, que, em parte, isto também se deve à crise econômica que afeta a Europa, principalmente devido à crise na Espanha, país que costumava receber muitos imigrantes uruguaios.
Padrós afirma que, assim como o PT no Brasil, a Frente Ampla também precisou se aproximar do centro. “Para viabilizar a chegada ao governo, a Frente Ampla foi sinalizando para o centro. Os setores reformistas ganharam espaço. O partido está em sintonia com o Brasil. Faz um governo de muito diálogo, muito reformismo, concessões aos bancos”.
Gustavo de Mello acredita que a Frente Ampla não se aproximou do centro. Ele pondera que as dificuldades de implementar políticas mais arrojadas se devem ao fato de que, assim como no Brasil, a transição democrática uruguaia não se deu com ruptura, mas de forma negociada. A prova para ele, de que a Frente não deu uma guinada para o centro, foi a eleição de José Pepe Mujica, em 2009, para suceder Tabaré. Ex-guerrilheiro tupamaro, Mujica venceu nas prévias do partido o moderado Danilo Astori. “A maior prova de que a Frente Ampla não se aproximou do centro é a derrota de Astori. A frente é representada hoje por uma de suas figuras mais radicais em termos de pensamento. Um homem que não pode ser dito de centro, mas que governa com grande responsabilidade”, afirma.
Para Gustavo de Mello, a consolidação da Frente Ampla no poder já demonstra uma radical mudança no processo político do Uruguai. “Só o fato de que esta tradição (blancos x colorados) está morta prova que o Uruguai abriu novo caminho”, diz. Aos 40 anos, a Frente Ampla pode dizer que um dos grandes objetivos de sua criação está cumprido com louvor: a política tradicional uruguaia, com apenas dois grandes partidos, é coisa do passado.

Entenda o sistema político uruguaio

No Uruguai, partidos como o Colorado, a Frente Ampla e o Nacional (blanco) são, na verdade, federações de agremiações. O sistema político do país platino tem voto em lista para o Parlamento e permite que o mesmo partido lance várias listas. Os partidos também podem lançar quantos candidatos à presidência quiserem. O candidato mais votado do partido mais votado acaba se elegendo presidente (há a possibilidade de segundo turno entre os principais candidatos dos dois partidos mais votados).
Na Frente Ampla, por exemplo, há vários partidos que têm, inclusive, estatutos próprios, mas que se subordinam às decisões maiores da Frente. O Partido Socialista (de Tabaré Vazquez), o Partido Comunista, o Partido Democrata Cristão, a Assembleia Uruguay (de Danilo Astori) são todos como se fossem partidos dentro da Frente Ampla. Hoje, o Partido Socialista é dos segmentos mais importantes da Frente, junto com o Movimiento de Participación Popular, liderado por ex-tupamaros, como o presidente Pepe Mujica. Os tupamaros ingressaram na Frente Ampla em 1989.
Este sistema, por um lado, permite que as correntes partidárias atuem de forma mais livre, mesmo estando em conjunto. Por outro lado, gera contradições nos partidos. Segundo Enrique Padrós, a Frente Ampla sofre algumas contradições, mas tem conseguido mais consensos que colorados e blancos. A Frente nunca lançou vários candidatos à presidência, por exemplo, enquanto os outros dois partidos fazem isto com frequência. Padrós afirma que um grande consenso entre os frenteamplistas é quanto à necessidade de um estado que atua no desenvolvimento econômico. Entre colorados e blancos, segundo ele, é possível encontrar neoliberais e defensores da atuação forte do estado, o que tem causado problemas para estes partidos. Na Frente Ampla ocorre um problema pontual atualmente. O partido decidiu que todos seus senadores devem votar pelo fim da Ley de Caducidad (a anistia aos militares no Uruguai). Três senadores frenteamplistas, no entanto, ainda se recusam a fazê-lo.

Nenhum comentário: