Vice-ministra do Poder Popular para os Povos Indígenas da Venezuela fala sobre avanços na questão dos povos originários
Vinicius Mansur
de Brasília (DF) via BrasilDeFato
De
passagem pelo Brasil para a reunião da Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica (OTCA), a vice-ministra do Poder Popular para os
Povos Indígenas da Venezuela, Aloha Núñez, falou ao Brasil de Fato sobre
as conquistas e os desafios dos povos indígenas de seu país durante o
governo de Hugo Chávez, presidente desde 1999.
Indígena
da etnia wayúu, 27 anos, nascida em La Guarija – no estado de Zulia,
cerca de 900 quilômetros a oeste de Caracas –, Núñez foi coordenadora de
uma associação de estudantes indígenas da Universidade de Zulia, em
Maracaibo, e trabalhou para uma das “missões” empreendidas pelo governo
Chávez, antes de chegar ao ministério.
Brasil de Fato – Qual a população indígena da Venezuela?
Aloha Núñez –
Segundo o censo de 2001, somos entre 2 e 3% da população, pouco mais de
500 mil indígenas. O que não representa a realidade, porque o censo em
2001 não conseguiu chegar a todas as comunidades. E nem todo mundo que
era indígena se identificava assim. Era o início da revolução e, antes
dela, não havia direito e reconhecimento alguns. Dizer que era indígena
gerava um rechaço. Não é como neste momento, quando há uma lei orgânica
de povos indígenas, há direitos. O censo aponta 36 povos indígenas;
agora, já temos 44 reconhecidos e mais de 2.800 comunidades indígenas.
Naquele momento, eram só 2.400.
Há um movimento indígena organizado na Venezuela?
Há
diferentes organizações indígenas tanto em nível nacional como
regional. Cada povo indígena, ou, pelo menos, cada região, tem
organizações que representam um estado. Há, também, organizações
nacionais como o Conselho Nacional Indígena da Venezuela, a Frente
Indígena Waike'puru e a Conbive, Confederação Bolivariana Indígena da
Venezuela.
Qual a relação desses movimentos com a Revolução Bolivariana?
A
luta dos povos indígenas na Venezuela começou há muito tempo. Quando
houve essa manifestação indígena em toda a América, quando começou a
luta pelos direitos indígenas na ONU, quando o Convênio 169 da
Organização Internacional do Trabalho [que garante os direitos
indígenas] foi conquistado, as organizações indígenas conseguiram se
visibilizar. Logo depois, veio a revolução. O comandante Chávez, antes
de ganhar a presidência, assumiu o compromisso com os povos indígenas de
fazer todo o possível para pagar a dívida histórica acumulada. A
relação de abertura do presidente com as comunidades indígenas aconteceu
desde o início da revolução. E isso se viu manifestado não só nesse
compromisso, mas com sua chegada ao poder: quando, imediatamente, ele
convoca a Constituinte, ele incorpora a população indígena.
Como foi isso?
A
Constituinte teve deputados indígenas e a nova Constituição tem um
capítulo especial para povos e comunidades indígenas, direito que nunca
tiveram. A única coisa que existia na Constituição era um artigo que
prometia a “incorporação indígena progressiva à vida da Nação”. Os
indígenas não eram nem reconhecidos como parte da sociedade! Então, a
Constituição de 1999 representou uma grande porta. Ela estabelece que,
para a Assembleia Nacional, três indígenas devem ser eleitos. Eleitos
por região: sul, oriente e ocidente. Além disso, em todos os municípios
indígenas, temos vereadores indígenas. Em todos estados com população
indígena, temos legisladores indígenas. Os indígenas têm, pelo menos,
uma vaga garantida nesses espaços. Depois, criou-se a lei de demarcação
de povos e comunidades indígenas. Em seguida, criou-se a missão
Guaicaipuro, para atender, na parte social, esses povos. Depois,
criou-se a Lei Orgânica de Povos e Comunidades Indígenas. Não conheço
outro país que tenha uma lei que abarque tantos direitos, que vá além do
Convênio 169. E, posteriormente, criou-se o Ministério de Poder Popular
para os Povos Indígenas, dirigido por Nicia Maldonado, uma indígena
yekuana, amazônica, o que representa uma vontade política total. Em
outros países, não vemos ministérios indígenas; em geral, são fundações
do Estado que, muitas vezes, não são dirigidas por indígenas. Então,
nota-se profundamente o compromisso político do comandante Chávez com o
empoderamento do povo indígena.
Como se encontra o processo de demarcação de terras?
Ainda
estamos nele. Na Venezuela, a demarcação se inicia de duas formas: uma
por solicitação da comunidade e outra por ofício da Comissão
Presidencial Nacional de Demarcação, que se encarrega, juntamente com
uma comissão regional, de estudar todos essas questões. Já entregamos 40
títulos de terra, mas nos faltam muitos. São títulos coletivos que vão
acompanhados de um plano integral de apoio a esses povos, para que eles
tenham todas as ferramentas para levar adiante seu território, para que
seja autossustentável e, em algum momento, ajudar o país também.
Há alguma política para a promoção da cultura indígena?
A
lei estabelece de forma oficial os idiomas indígenas. Nas escolas
desses povos, as aulas devem partir em idioma indígena. Antes, só se
falava castelhano. Nas cidades, onde há população indígena, também deve
haver pelo menos um professor para dar o conteúdo indígena, o que se
chama de educação intercultural bilíngue. Ainda temos uma lei de
artesãos e artesãs indígenas.
Hoje, quais são as principais reivindicações indígenas ao Estado?
Terminar
o processo de demarcação, essa é a demanda em toda a América. Para nós,
é uma prioridade, e nosso comandante Chávez foi muito insistente nisso.
Por outra parte, não podemos negar que temos comunidades em alta
vulnerabilidade que reivindicam uma assistência permanente do governo.
Então, criamos uma corresponsabilidade entre as comunidades indígenas e o
Estado, para que o povo se empodere, seja protagonista na superação de
seus problemas e, assim, se livre da miséria e do analfabetismo e
consiga a suprema felicidade social, como já disse nosso libertador
Simón Bolívar. Uma grande quantidade de comunidades ainda não conseguiu
essa libertação. Algumas poucas, sim. Vivemos um processo de revolução,
mas não podemos consertar um problema de mais de 500 anos de invasão,
abandono, extermínio, de uma educação penetrante, invasiva, que te diz
que o indígena é o bruto, o bêbado, o preguiçoso. Estamos nesse processo
de tirar esse “chip” e meter outro.
Há conflitos com comunidades indígenas por conta de megaprojetos implementados pelo governo?
Sim.
Mas nós respeitamos o Convênio 169 da OIT, que estabelece o
consentimento prévio, livre e informado. Então, cada vez que um projeto
vai ser executado em alguma comunidade indígena, deve-se consultá-la,
apresentar o projeto, informar com antecipação. Se há dúvidas, é preciso
eclarecer e, inclusive, se as comunidades não estão de acordo com o
projeto, ele não é levado adiante.
Alguma vez o governo deixou de fazer algum projeto?
Uma
vez, faz tempo, já. Eram umas concessões para explorar carvão em
território yukpa. Os indígenas eram contra e a denúncia chegou ao
presidente, que convocou um ato público com 2 mil trabalhadores
petroleiros e disse que não haveria concessões. E até hoje não há. Isso
foi muito manipulado, porque algumas ONGs diziam que nós não queríamos
demarcar o território. Pensam que, com a demarcação, podem ganhar alguma
autonomia. Nesse caso, fizeram a comunidade discutir e, inclusive,
expulsar o companheiro Sabino Romero, um líder. As ONGs o utilizaram
como único porta-voz indígena, transformaram a luta de uma comunidade
numa luta pessoal. Diziam que ele era o cacique dos caciques, o mais
lutador de todos, mas, quando você vai à comunidade, te dizem que não é
bem assim, que faziam assembleias com um só cacique, não com todos. Em
assembleia, chegaram até a dizer que essa ONG era persona non grata.
Qual é a situação desse cacique agora?
Com
todo esse conflito que se criou, houve um enfrentamento entre duas
comunidades indígenas. O companheiro Sabino Romero e outro companheiro
se enfrentaram. Houve um tiroteio entre duas comunidades que resultou em
três pessoas mortas. Depois desses assassinatos, tanto Sabino Romero
como Alexander Romero estão presos. Então, logo as ONGs começaram a
dizer que eram presos políticos, que a ministra os prendeu, um montão de
coisas... Há um processo judicial em averiguação. Mas é preciso ficar
claro que quem decidiu que Sabino deve ser julgado pela Justiça
ordinária foi o mesmo povo yukpa. E, se fosse pela lei yukpa, talvez o
tivessem matado. Porque isso acontece quando você chega a matar dentro
de uma comunidade indígena. Nós estamos num processo de formação para
não chegar a esses níveis. Para não chegar a esse extremo, a comunidade
decidiu entregá-lo à Justiça ordinária, em uma assembleia que,
inclusive, foi televisionada. Isso ajudou a tratar o tema, porque todo
mundo vitimizava Sabino Romero. Agora, ele está em liberdade
condicional, mas a comunidade foi muito determinante, disse que não quer
Sabino. Mas ele nos disse que não pode ser proibido de voltar, senão,
podem haver mortos. Então, há uma preocupação do Estado, porque não
queremos um enfrentamento entre o povo yukpa.
A Justiça comunitária indígena é reconhecida pelo Estado na Venezuela?
Sim.
A Constituição e a Lei Orgânica de Povos e Comunidades Indígenas
reconhecem a justiça própria. Mas há uma dívida aí, em relação à
regulamentação da lei, que deve ser feita pela Assembleia. Porque há
coisas que devem ser normatizadas. Nós não temos pena de morte e jamais
apoiaríamos isso. Cada comunidade tem suas particularidades e está se
estudando tudo isso, para que ninguém aplique penas que violem os
direitos humanos.
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