quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Îvîtu-Yepivu mental(1)

Iara Borges Aragonez por email

Em férias!!! 
Entretanto, a dinâmica da vida recoloca questões relacionadas ao cotidiano laboral, por mais distantes que estejam do bom e restaurador ócio.
Digo isso frente a algumas situações ocorridas, as quais vêm instigando algumas reflexões acerca dos debates e formulações dos últimos meses no contexto da reestruturação do ensino médio no RS. Cito algumas.
 
Episódio um: Navio encalhado, avariado, quebra ao meio (isso depois de muitos acontecimentos), afunda e joga coisas ao mar, dentre elas, containers com carne, fazendo com que tubarões se aproximem da praia e, portanto, dos banhistas; óleo ao mar e inúmeras espécies da fauna marítima atingidas fatalmente; mais de 600 containers ainda vagando ao mar, sendo que alguns com carga não sabida; economia em suspense frente ao impacto dos acontecimentos, pois, o lugar é, sobretudo, turístico. Episódio dois: bactéria atinge grande parte dos parreirais da região, em conseqüência da importação de pólen, podendo comprometer em mais de 25% as exportações do produto, além de comprometer definitivamente a produção de uma variedade em particular. Episódio três: chuvas e ventos ininterruptos nesse verão, incluindo, em uma região mais distante, neve. Segundo informações locais, condições climáticas nunca antes vistas nesse período. Episódio quatro: Eu, no convívio com muitos jovens, ouvindo as suas leituras e interpretações sobre os fatos elencados (dentre outros, menos recentes), impactada com as diferentes e originais visões expressas, reflito.... Episódio quatro: Eu, pessoa que sou, conectada na internet, sigo recebendo artigos desconstituindo (generosamente falando) a reestruturação do ensino médio no nosso querido Rio Grande do Sul e, assim, sigo refletindo...
 
E então, o que uma coisa tem a ver com a outra?
O fato é que tem muito a ver, a ponto de me transportar, nesse período, para o debate no RS e aguçar a minha convicção sobre a relevância das mudanças em curso, impulsionando-me a escrever a respeito. E, nesse contexto, vem em minha mente, dentre muitas falas do nosso Secretário da Educação, José Clóvis de Azevedo, demonstrando com uma garrafa com água, uma frase muito interessante e sábia: “A realidade é interdisciplinar”. Valho-me dessa afirmação e olho para os fenômenos em pauta. Toco a biologia, a geografia, a matemática, a
 
história, a cultura, a ecologia, a sociologia, a agricultura, o futuro, o trabalho. Impossível tratar de um acontecimento sem tratar do outro e pensar essa realidade sem pensar nas diferentes áreas do conhecimento e suas disciplinas e a partir delas repensar os acontecimentos, suas inter-relações e conexões.
 
Aqui, nesse momento, vivo de forma muito intensa a relevância da compreensão da realidade imediata onde estamos inseridos para projetar o futuro. Percebo a minha frente, o quanto à interpretação e a busca de informações, motivadas pelos acontecimentos locais, enriquece, de imediato o meio e o conhecimento das pessoas envolvidas; o quão determinante para a análise é a informação básica e o quanto, instigar e fazer perguntas mobiliza para ir atrás de elementos explicativos e seguir na reflexão; o quanto o estar integrada no lugar dos acontecimentos e buscar entender causas e consequências, traz junto o sentimento de pertença e o desejo de atuar junto para mudar...enfim...
 
Na condição de quem teve participação direta, integrando a equipe multidisciplinar que elaborou a proposta de reestruturação do ensino médio, frente às inúmeras leituras equivocadas as quais tive acesso, tomo a iniciativa de escrever essas reflexões para contribuir no debate na condição de cidadã e militante social, retomando o que fiz em período anterior, através do Blog Coletivo Desenvolvimento Sustentável.
 
Ao fazê-lo nesse momento, é preciso deixar claro que não me manifesto enquanto ou em nome da Secretaria da Educação. Estou em férias e essa manifestação é de minha inteira iniciativa e responsabilidade pessoal.
Na minha avaliação, a reestruturação em tela, tem como um dos seus grandes méritos o fato de criar as condições, do ponto de vista pedagógico, para ultrapassar duas das grandes barreiras, dentre outras, para o desenvolvimento pleno dos jovens que são a descontextualização e a fragmentação do processo de ensino-aprendizagem.
 
Os jovens, nessa etapa da educação básica, buscam o seu passaporte para um futuro profissional a partir da continuação de seus estudos via ingresso na Universidade ou, para já, no presente, ter uma habilitação profissional capaz de lhes garantir renda e dignidade. Entretanto, a educação que encontram hoje apenas corrobora para que essas expectativas sejam frustradas. Nem sucesso no vestibular, nem possibilidades de inserção imediata, com qualidade, no mercado de trabalho. Sim, falei no mercado de trabalho, pois grande parte dos jovens que freqüentam a escola pública, senão a maioria, precisa trabalhar agora para garantir já a sua subsistência, e, para tanto, a inserção imediata no mercado de trabalho, gerando renda, é a solução necessária.
 
A barreira que separa a Escola da concretude do mundo – descontextualização e fragmentação - mantendo-a de costas para a dinâmica da Vida, para as frenéticas mudanças tecnológicas (tanto a serviço do bem como do mal), para a urgência de outro(s) paradigma(s), os quais exigem, em conseqüência, a revisão dos princípios e valores fundantes dos atuais,
negando a reflexão sobre os complexos processos, historicamente estabelecidos para a reprodução social e seus impactos, faz com que o ensino médio hoje se torne esvaziado de significado, etéreo, sem identidade clara, desinteressante, enfadonho e à deriva. Para onde esse Ensino conduz mesmo?
 
Os níveis atuais de reprovação e de evasão do ensino médio, na escola pública do RS, os quais somados atingem índices próximos de 35%, refletem essa escola incapaz de estabelecer um efetivo diálogo com os seus educandos e, sobretudo, de constituir-se em ponte para que estes estabeleçam o diálogo necessário com o mundo ao qual fazem parte para, de fato, dele fazer parte, desfrutando de suas possibilidades e incidindo nas suas “impossibilidades”. Ou seja, propiciar a interação com os processos sociais, econômicos, culturais; compreendê-los, compreender a sua lógica; como se estabelecem as relações de poder; como, pelo trabalho e determinados processos produtivos é possível transformar a realidade, seja esta transformação para o bem ou para o mal (esta última situação tão comum nos dias atuais); como, esse mesmo trabalho, que garante a vida de tantos trabalhadores e famílias, pode, também, representar a morte de populações, culturas, natureza e da ética?
É disso que a proposta de reestruturação do ensino médio fala: superar o fosso existente entre a sala de aula e o mundo que vibra aqui fora para fazê-lo vibrar com outros tons e sons.
 
Traduzir essa Proposta como subserviente ao Sistema; criadora de mão-de-obra barata, escrava, adestrada; de jovens incapazes de pensar e cujo direito de sonhar com um futuro digno, na universidade, lhes passa a ser negado, tem sintonia com a realidade da Proposta?
Não é possível que pessoas ilustradas, como os autores de alguns textos que chegaram até mim, leiam o documento da Secretaria da Educação e continuem afirmando tais iniqüidades. E mais, confundir o ENSINO MÉDIO POLITÉCNICO com a EDUCAÇÃO PROFISSIONAL INTEGRADA AO ENSINO MÉDIO, afirmando de forma renitente que agora todo o ensino será profissionalizante, ou que o politécnico vai jogar os jovens no mercado para servir graciosamente ao capital? Sinto muito, mas não é essa a proposta da Secretaria. Devem ter lido outra.
 
O ENSINO MÉDIO POLITÉCNICO se constitui, inequivocamente, para a superação do conhecimento fragmentado; para que a capacidade de estabelecer relações entre os fenômenos sociais, culturais, ambientais, políticos, etc., seja instigada na sua máxima potência; para que a técnica seja compreendida a partir dos seus fundamentos científicos e não se encerre no conhecimento dela mesma (Saviani); para que o contexto em que os jovens vivem seja conhecido e compreendido em suas múltiplas dimensões. E, nesse caso, inclui-se a dimensão produtiva, econômica. Conhecer e entender como se organiza a economia na região em que vivem faz parte desse processo de imersão e reflexão. Não significa render-se a ela, mas sim, se for o caso, reunir os elementos para sabiamente recusá-la.
Como curvar-se e ficar passivo frente a um dado que demonstra que mais de 80% do valor gerado pela economia de uma determinada região de nosso Estado é proveniente de uma cadeia produtiva que mata do início ao fim? Entender os impactos nocivos dos processos produtivos, como nesse caso, na saúde dos trabalhadores e de suas famílias, dos consumidores, do ambiente natural e na soberania alimentar é crucial e apenas possível se dada à oportunidade de práticas pedagógicas focadas nas realidades locais e na compreensão da essência dos fenômenos.
 
Valer-se da proximidade dos impactos para entendê-los em toda a sua intensidade e magnitude é potencialmente superior do ponto de vista da aprendizagem. A idéia é retirar do trabalho as suas propriedades educativas, positivas ou negativas, para que o discernimento se faça e as escolhas futuras sejam balizadas da melhor forma possível, a partir do diálogo social e da crítica orientada.
Essa pedagogia construirá cidadãos subservientes ou indignados? Mobilizará corações e mentes para escolhas profissionais alinhadas com um modelo que destrói VIDAS ou para escolhas profissionais e lutas que possibilitem transformar a realidade desvelada?
 
O novo ensino médio, o médio politécnico, prevê Seminários Integrados, os quais possibilitarão (dentre outros espaços) dar materialidade a alguns de seus princípios orientadores, como o da interdisciplinaridade, diálogo de saberes, relação parte-totalidade, teoria e prática e pesquisa.
Alunos e professores debaterão, a partir de eixos temáticos, linhas de pesquisa e definirão os projetos os quais irão desenvolver. Escolhas serão feitas a partir do acesso a múltiplas informações das realidades locais e outras questões de interesse coletivo. Os projetos, a partir da abordagem interdisciplinar, propiciarão estabelecer as relações com as áreas de conhecimento e seus componentes curriculares, assim como com diferentes outros elementos, como a CULTURA, TRABALHO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA. A partir destas dimensões e relações será possível estabelecer os caminhos que possibilitarão vislumbrar como a humanidade forjou o mundo até aqui através das sucessivas e complexas transformações; como construiu histórica e coletivamente o conhecimento a partir da prática (do fazer) e do aprimoramento da prática pelo conhecimento (pensar)... enfim...que belo debate, que bela reflexão coletiva...orientada pelo diálogo entre as disciplinas e promovendo uma formação científica, social, histórica e cultural. E todo esse processo a partir da compreensão da realidade vivida concretamente.
 
Estamos falando aqui, também, do TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO, pilar da concepção em pauta, e não do ATO DE TRABALHAR, DA ATIVIDADE LABORAL, assumindo função didático-pedagógica na perspectiva do aprender fazendo, como querem alguns, nas interpretações feitas.
Rapidamente vamos tentar elucidar a concepção que organiza a idéia do trabalho como princípio educativo e da politecnia, agregando aqui fragmento do texto “Trabalho e Educação: fundamentos ontológicos e históricos” de Demerval Saviani, cuja contribuição para o entendimento do conceito é valiosa.
 
“...Assim, no ensino médio já não basta dominar os elementos básicos e gerais do conhecimento que resultam e ao mesmo tempo contribuem para o processo de trabalho na sociedade. Trata-se, agora, de explicitar como o conhecimento (objeto específico do processo de ensino), isto é, como a ciência, potência espiritual, se converte em potência material no processo de produção. Tal explicitação deve envolver o domínio não apenas teórico, mas também prático sobre o modo como saber se articula com o processo produtivo. Um exemplo de como a atividade prática, manual, pode contribuir para explicitar a relação entre ciência e produção é a transformação da madeira e do metal pelo trabalho humano (cf. Pistrak, 1981, p. 55-56). O trabalho com a madeira e o metal tem imenso valor educativo, pois apresenta possibilidades amplas de transformação. Envolve não apenas a produção da maioria dos objetos que compõem o processo produtivo moderno, mas também a produção de instrumentos com os quais esses objetos são produzidos. No trabalho prático com madeira e metal, aplicando os fundamentos de diversificadas técnicas de produção, pode-se compreender como a ciência e seus princípios são aplicados ao processo produtivo, pode-se perceber como as leis da física e da química operam para vencer a resistência dos materiais e gerar novos produtos. Faz-se, assim, a articulação da prática com o conhecimento teórico, inserindo-o no trabalho concreto realizado no processo produtivo. 

O ensino médio envolverá, pois, o recurso às oficinas nas quais os alunos manipulam os processos práticos básicos da produção; mas não se trata de reproduzir na escola a especialização que ocorre no processo produtivo. O horizonte que deve nortear a organização do ensino médio é o de propiciar aos alunos o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas. Não a formação de técnicos especializados, mas de politécnicos. Politecnia significa, aqui, especialização como domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna. Nessa perspectiva, a educação de nível médio tratará de concentrar- se nas modalidades fundamentais que dão base à multiplicidade de processos e técnicas de produção existentes...”
 
Nesta perspectiva, no médio politécnico, em implantação no RS, os jovens terão a oportunidade de VIVÊNCIAS as quais darão conta da aproximação com o mundo do trabalho na perspectiva de desvelá-lo e de conhecer os seus mecanismos, a sua lógica, bem como os processos produtivos e suas técnicas, tecnologias e os fundamentos científicos que as explicam. Para tanto será adotado o trabalho de campo orientado, que, através de pesquisa investigativa possibilitará conhecer a realidade local em toda a sua diversidade e dimensões, como a econômica, a social e a cultural e atividades produtivas específicas.
 
Compreender os fundamentos científicos da técnica (ou das múltiplas técnicas), a essência da politecnia, é superar a idéia da escola dual, ou seja, daquela que compreende que aos trabalhadores ou aos filhos dos trabalhadores basta à técnica, o saber fazer; para a elite, os elementos para pensar o fazer. A escola unitária, segundo Gramsci, rompe com essa idéia de que aos pobres a técnica e a elite a reflexão, o pensamento, a história, a abstração. E, o Estado do RS, visa exatamente essa idéia com a reestruturação do ensino médio. Dar acesso aos jovens da escola pública, a reflexão sobre as diferentes técnicas desenvolvidas pela humanidade e seus
fundamentos, a partir da realidade de hoje, em movimento e, portanto, em rápida mutação, acompanhando as mudanças.
 
Considerando que a reestruturação não se reduz a implantação do médio politécnico, mas também inclui a implantação da EDUCAÇÃO PROFISSIONAL INTEGRADA AO ENSINO MÉDIO, falo rapidamente sobre o significado dessa mudança. Rapidamente porque os elementos que a justificam já estão colocados na abordagem anterior, pois, acabar com a separação existente hoje entre o ensino médio e a educação profissional, significa justamente, romper com a idéia da apropriação de conhecimentos técnicos de forma apartada dos conhecimentos gerais, os quais propiciam a formação integral dos indivíduos.
 
Na atualidade a escola pública do RS que oferta educação profissional, oferece duas matrículas e o aluno cursa em um período o médio e em outro período o técnico. Nesse caso, sequer o trabalho cumpre a função didático-pedagógico do aprender fazendo, pois os professores de ambos os cursos não dialogam entre si e as disciplinas do ensino médio passam ao largo do aprendizado técnico.
Como será agora?
 
Uma matrícula apenas, planejamento coletivo, interdisciplinar entre professores do técnico e do médio politécnico e projeto de pesquisa a partir de eixos temáticos escolhidos de acordo com o curso técnico o qual o aluno está cursando. As disciplinas das diferentes áreas do conhecimento serão aplicadas, mas também serão desenvolvidas em seus aspectos gerais os quais garantem a formação geral necessária, por exemplo, para o vestibular, no caso desse aluno desejar fazê-lo. Evidentemente a carga-horária para essa modalidade será ampliada, excedendo às 3000 horas previstas para o médio politécnico.
Além disso, metodologicamente a abordagem também deverá garantir todas as questões relacionadas à práxis social. O conhecimento deverá ser construído a partir das transformações sócio-históricas que a humanidade viveu até hoje, tendo como foco a temática do curso em realização e a dinâmica local de cada realidade na qual a Escola e os jovens estão inseridos.
 
A realidade em movimento e a leitura crítica das possibilidades e impossibilidades que ela apresenta serão os grandes protagonistas desse processo.
Bem, espero ter elucidado algumas questões. Por enquanto sigo por aqui, expectadora e ao mesmo tempo participante dessa outra partezinha do mundo, instigada, curiosa e algumas vezes perplexa...com a vida aí e aqui...
Avante!

 1 Îvîtu-Yepivu - "um vento em redemoinho", que, segundo a tradição indígena, só passou a existir no Rio Grande do Sul quando os "...primeiros europeus, no século XVII, vieram explorar os recursos naturais do rio Uruguai num nível além da simples economia de subsistência preconizada pela religião guarani..."( Barbosa Lessa, Historiador e Folclorista do Rio Grande do Sul). Já, a expressão Îvîtu-Yepivu mental, é um “neologismo”, fruto de uma brincadeira, que tomo emprestado...

* Iara Borges Aragonez
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