quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Racismos, incêndios e ditaduras

  Tito Tricot   no CORREIO DA CIDADANIA

Os caminhos da memória são indissociáveis, como o canto das corujas nas noites sombrias de inverno. Não se sabe de onde vem, tampouco para onde se dirige aquele ulular obscuro e melancólico que parece buscar companhia, mas que, na verdade, apenas esconde os mistérios do universo na caverna do esquecimento. Porque os humanos não entendem a memória sem o esquecimento e aqueles no poder se encarregam de pouco a pouco nos recordar que é melhor esquecer do que revelar segredos da história que são seus próprios segredos.

Terríveis e ferozes são, como o medo de que se descubram e redescubram, escrevam e reescrevam, os racismos, incêndios, ditaduras das classes dominantes que de tanto ocultá-los terminaram por fazer muitos acreditarem que jamais existiram. Mas, apesar dos oligarcas de antigo ou novo signo, no barco da memória sempre viajam marinheiros irredutíveis que guardam ânforas de prata com lembranças dolorosas da barbárie daqueles que dizem ter construído a república em nome da civilização, ou que, um século depois, clamam ter restaurado a democracia em nosso país, instalando somente um regime militar, não uma ditadura. São os mesmos que chamam de terroristas os índios mapuche enquanto os assassinam à bala.

Mas chamemos as coisas pelo seu nome: aqui não há nada novo. Basta de enterrar a superfície de nossa historia para exumar aquilo que se pretendeu esconder por vergonha ou descaro. Entre eles, o racismo entronizado nas elites chilenas, que é de longa data e se transformou em ideologia e política pública desde as origens da república, que, aliás, nada teve de democrática. Pois teve um parlamento elitista, excludente e oligárquico que permitia que um reputado intelectual e político, como foi Benjamin Vicuña Mackenna, declarasse, referindo-se aos mapuche, que o índio era “... se não um bruto indomável, inimigo da civilização porque só adora todos os vícios em que vive submergido, a ociosidade, a embriaguez, a mentira, a traição e todo esse conjunto de abominações que constituem a vida selvagem...”.

Apesar de ter a delicadeza de assinalar que “a conquista não quer dizer sob nenhum conceito extermínio; e que é possível subjugar os indígenas sem matá-los”. O objetivo, sem dúvida, era se apropriar do território mapuche para – como propunha claramente o diário Mercurio em 1859 – “fazer das duas partes separadas de nossa república um complexo interligado; trata-se de abrir um manancial inesgotável de novos recursos em agricultura e mineração; novos caminhos para o comércio em rios navegáveis e passagens finalmente acessíveis sobre as cordilheiras dos Andes... enfim, trata-se do triunfo da civilização sobre a barbárie, da humanidade sobre a bestialidade”.

Nem para Vicuña Mackenna nem para o jornal El Mercurio importavam os mapuche, pelo contrário, constituíam um estorvo para o que consideravam o desenvolvimento e progresso chilenos. É o mesmo que aconteceu mais de um século depois, quando se fomentou a expansão da indústria florestal em território mapuche, acrescentando-se o despojo desse povo originário. Depois de tudo, como sustentou Juan Agustín Figueroa, ex-ministro da Agricultura da Concertação, deve-se reciclar os mapuches.

Assim como o lixo, supomos, como o desperdício ou a limpeza étnica, supomos, como a limpeza que se fez com suas terras para a instalação de colonos estrangeiros no século 19, porque o maior incêndio que se tem memória em nosso país não foi provocado pelos mapuche, turistas ou cidadãos comuns e contemporâneos, mas pelo Estado do Chile. Claro, porque a colonização do sul do país foi uma política de ocupação impulsionada pelo Estado com grandes recursos econômicos e institucionais. De fato, o presidente Manuel Montt designou Vicente Pérez Rosales como agente da Colonização de Valdivia e Llanquihue e esse último procedeu não somente em facilitar a chegada de alemães e outros imigrantes europeus, como também em arrasar o bosque nativo, incendiando a floresta valdiviana para “limpar” o território e torná-la apta à agricultura e usufruto dos europeus. Uma vez mais, não importou que ali habitassem os mapuche, que, imaginamos, contemplavam estupefatos como ardiam suas terras, lugares sagrados e espaços de reprodução cultural.

Os incêndios foram atos de terrorismo de Estado, como foram as violações dos direitos humanos verificadas no Chile durante a ditadura militar. Pela mesma razão, a mudança que o governo pretende realizar nos textos escolares para suprimir o termo ditadura e trocá-lo por regime militar não é algo inocente. É um perigoso giro ideológico que busca bloquear a memória e seguir escondendo os ferozes segredos das classes dominantes, como sempre fizeram.

Loreto Fontaine, coordenadora nacional da Unidade de Currículo e Avaliação do Ministério da Educação, sustentou que a “mudança é de índole mais geral. Não se refere só a uma palavra, mas a ensinar a pensar”. Ensinar a pensar o que?! Que não existiram os torturados, os assassinados, os presos, as mulheres estupradas, os desaparecidos? Que não se viveram e sobreviveram 17 anos de repressão e terror?

Pode ser que os caminhos da memória sejam sinuosos e que aqueles no poder tentem de qualquer maneira esconder seus segredos, mas no barco da memória sempre viajam marinheiros irredutíveis que conservam em suas vetustas lembranças a verdade oculta: que o Estado provocou mais incêndios que qualquer um; que o racismo aflora o tempo todo, seja em relação aos atuais e lamentáveis incêndios no sul contra a causa mapuche – sem prova alguma – ou na aplicação da Lei Anti-terrorista também contra os mapuche, simultaneamente pretendendo atingir a história recente, eliminando por decreto uma ditadura terrorista das salas de aula. Se é pra falar de racismos, incêndios e ditaduras, deve-se chamar as coisas pelos seus nomes.

Dr. Tito Tricot é sociólogo, diretor do Centro de Estudos da América Latina e Caribe (CEALC), Chile.

Tradução: Gabriel Brito, jornalista do Correio da Cidadania.

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