Otaviano Helene no CORREIO DA CIDADANIA |
No início do século XX, o sistema escolar brasileiro fornecia à população uma escolaridade média (1) de cerca de 2 anos. Essa média, evidentemente, inclui tanto a enorme massa daqueles que não freqüentavam escola alguma como as cerca de 2.500 pessoas que a cada ano registravam seus diplomas de curso superior. Após quase um século, essa média é ainda de apenas cerca de 10 anos. A evolução da escolarização fornecida pelo sistema educacional no período de pouco mais de 80 anos (veja gráfico (2)) não foi regular. Além de algumas pequenas variações não muito intensas na taxa de crescimento, há dois recentes períodos de estagnação, ou mesmo de retrocesso, bastante longos, um deles que se iniciou pouco antes de 1980 e outro, por volta do ano 2000. Foram dois enormes passos para trás em uma caminhada já problemática. Antes de analisarmos esses dois períodos e procurar possíveis explicações tanto para suas origens como para suas superações, é necessário observar que há alguma incerteza nos valores mostrados no gráfico (da ordem da espessura da curva), cuja origem está nas incertezas das próprias informações usadas para avaliar a escolaridade média, tais como a população em diferentes faixas etárias, a defasagem idade-série, o número de concluintes nos diferentes níveis educacionais etc. Apesar dessa incerteza, é evidente a ausência de qualquer evolução positiva da escolaridade nas décadas de 1980 e de 2000. A crise da década de 1980 pode ser entendida pelo que ocorreu imediatamente antes dela. Grande parte do crescimento da escolaridade média oferecida pelo sistema educacional durante o período militar foi devida ao fim do exame de admissão para o antigo ginásio, coisa que os leitores mais antigos devem se lembrar; com isso, os estudantes que estavam represados ao final do ensino primário passaram a fluir pelo sistema. Entretanto, como não havia um programa consistente que fosse capaz de incluir novas pessoas, quando esse efeito de desrepresamento se esgotou, começou um longo período de estagnação e retrocesso, o qual coincide com a crise econômica que, como a educacional, marcou a falência do projeto imposto pela ditadura militar. Esse período de estagnação só foi superado a partir de 1990 e isso pode estar relacionado a vários fatores. Um deles pode ter origem na Constituição de 1988 e nas movimentações políticas que a antecederam, quando os direitos sociais passaram a fazer parte das discussões políticas, levando à eleição de candidatos comprometidos com esses direitos ou menos avessos a eles. Outro efeito é o surgimento de políticas de progressão continuada, infelizmente transformadas, na prática, em aprovação automática, que tiraram do caminho dos estudantes, pelo menos parcialmente, a reprovação, desestimulando a evasão escolar. Outro fator que pode ter contribuído para o aumento das matrículas e conclusões de curso na década de 1990 e, portanto, para a escolaridade média da população fornecida pelo sistema educacional foi o processo de municipalização do ensino fundamental. Essa expansão das matrículas pode ser fruto da seguinte lógica: com a municipalização, recursos antes gastos pelos Estados podiam ser transferidos aos municípios, juntamente com os estudantes e na proporção destes; essa transferência de recursos certamente interessava aos poderes instituídos nos vários municípios, não necessariamente porque isso permitiria que as prefeituras dessem melhores respostas às necessidades dos munícipes, mas, sim, porque isso daria mais poder (recursos, funcionários, prédios escolares etc.) aos prefeitos. Assim, atrair alunos passou a ser interessante aos prefeitos (3). Todos esses efeitos, entretanto, parecem ter se esgotado por volta do ano 2000, quando as matrículas e as conclusões de curso nos ensinos fundamental e médio pararam de crescer ou foram reduzidas. É possível supor que os mecanismos que contribuíram para o aumento das matrículas na educação básica ao longo da década de 1990 foram insuficientes para atingir os segmentos mais desfavorecidos da população e seus efeitos se esgotaram por volta do ano 2000. Como não surgiram novos instrumentos para atrair novos estudantes e fixá-los nas escolas, entramos em um novo período de crise. A retração que afetou o ensino básico foi tão forte que mesmo o aumento das matrículas no ensino superior ao longo da última década foi insuficiente para “puxar para cima” a escolaridade média da população. Caso não houvesse as crises da década de 1980 e de 2000, poderíamos ter universalizado a conclusão do ensino fundamental e ter um ensino médio que atingisse, pelo menos, a grande maioria da população urbana do país. Entretanto, não foi essa a opção dos governos, em especial dos municipais e estaduais, em cujas escolas está a grande maioria dos estudantes da educação básica. Estudar apenas os indicadores quantitativos, como feito aqui, fornece uma visão bastante restrita da realidade educacional. Entretanto, eles ajudam a entender um pouco da nossa história, dão alguma idéia das tarefas que temos pela frente e mostram o que deveria e o que não deveria ter sido feito. Em particular, a crise que se iniciou por volta do ano 2000 e marcou toda a década, perdurando, pelos dados disponíveis, até hoje, coincide com o período de vigência do Plano Nacional de Educação recentemente encerrado e cujas metas mais importantes não foram atingidas (ao contrário, nos afastamos ainda mais de muitas delas), mostrando que, se queremos mudar a realidade, é necessário mais do que as leis. É possível que nós venhamos a superar a atual crise educacional apenas quando novas ações efetivas forem adotadas. Uma delas deve ser a criação de mecanismos de gratuidade ativa, uma vez que a escola, mesmo que gratuita, induz despesas intoleráveis pelos segmentos mais pobres (a não conclusão do ensino fundamental entre a metade mais pobre da população é a regra, não a exceção) e que precisam ser compensadas para que os jovens e as crianças continuem estudando. Outra ação, importante para melhorar tanto os indicadores quantitativos como os qualitativos, é melhorar as condições das escolas públicas de ensino básico de tal forma que estudar, aprender e ensinar sejam atividades prazerosas. E essas coisas passam, necessariamente, por aumento de recursos públicos. Notas (1) A escolaridade média fornecida à população pelo sistema educacional corresponde ao número médio de anos de estudo daquelas pessoas que deixam o sistema escolar em um determinado ano do calendário. (2) O gráfico apresentado foi construído com base no artigo “Evolução da escolaridade esperada no Brasil ao longo do século XX”, publicado na revista Educação e Pesquisa, acessível por meio eletrônico. (3) É importante observar que o aumento do número de estudantes sem o aumento, nas mesmas proporções, dos recursos implicou em uma piora do desempenho estudantil na mesma época. Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). |
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quarta-feira, 7 de março de 2012
Educação: dois grandes passos para trás
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