segunda-feira, 2 de abril de 2012

Golpe de 64: 31 de março ou 1º de abril?

Deflagrado há 48 anos e encerrado há 27, o Golpe Civil-Militar de 1964 continua suscitando divergências no Brasil. Como todos os golpes e todas as ditaduras no mundo, teve seguidores e adversários e, ainda hoje, continua tendo defensores e detratores acerbos. Nesta semana, quando transcorre mais um de seus aniversários, têm ocorrido manifestações em diferentes lugares do país, umas comemorando seus feitos, outras os deplorando. Este jornal se coloca entre os que os deploram e registra aqui sua posição de modo claro.

Os anos de 1960 e 1970 foram um período de acirramentos das tensões políticas internacionais, com a guerra-fria chegando ao seu auge. A partir do muro de Berlim, EUA e URSS dividiam o mundo e o disputavam, perfilando nações e populações sob os rótulos da democracia liberal e do comunismo marxista. Dois grandes sistemas de organização social, econômica e política estavam em confronto aberto, ainda que não se estabelecesse um litígio armado direto entre as nações que se colocavam como líderes de suas expansões e campeãs de suas defesas.

Na impossibilidade do confronto direto das duas novas grandes potências, pois o equilíbrio de forças então existente fazia com que elas se temessem mutuamente e se armassem desesperadamente, os embates foram transferidos para a periferia do sistema mundial, no então chamado Terceiro Mundo: América Latina, Sul da Europa, Oriente Médio, Ásia e África. Ditaduras se estabeleceram em todos os continentes, principalmente nos países mais pobres e/ou nos social e economicamente mais desiguais.

Eram tempos também de efervescência, com os avanços social-democráticos e dos direitos civis dos negros, a explosão da juventude e do rock ‘n roll, a disseminação da pílula anticoncepcional e o início da afirmação do poder feminino. Nas Américas, ocorria a Revolução Cubana e a possibilidade de sua expansão por todo o continente, com a emergência de governos nacionalistas e progressistas. Em contrapartida, as ditaduras começaram a eclodir na região, iniciando-se pelo Brasil e expandindo-se, posteriormente, por toda a América do Sul e Central, quase sem exceção de países.

Em 31 de março/1º de abril de 1964, o general Olímpio Mourão Filho parte com suas tropas de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro e dá início ao Golpe que iria manter os militares no poder durante 21 anos. O governo João Goulart, progressista e que pretendia promover as então chamadas “reformas estruturais”, como a reforma agrária, a reforma fundiária urbana, a industrialização independente e a distribuição de renda no país, foi deposto sob a acusação de se alinhar com as forças e a ideologia comunista.

Convocados pelas “marchas com Deus e pela família”, realizadas nas principais cidades brasileiras e lideradas por representantes da UDN (União Democrática Nacional), por bispos e padres católicos e lideranças conservadoras, os militares depuseram o presidente da República constitucionalmente eleito prometendo “restabelecer a ordem” e rapidamente devolver o comando do país aos civis, mas se encastelaram no poder. Promoveram desenvolvimento econômico acelerado, durante os anos do chamado “milagre econômico brasileiro” (1968/1973), com crescimento do PIB na casa dos 10% ao ano, mas prenderam, torturaram e mataram quem se atrevesse a oferecer qualquer tipo de resistência às suas atividades e aos seus comandos.

A violência começou, na verdade, antes do desenvolvimento econômico e se estendeu por muito tempo depois de o país ter caído em estagnação. Desde as primeiras semanas do governo golpista, políticos legalmente eleitos, bem como lideranças sindicais, estudantis e sociais foram presas e submetidas a inquéritos policiais-militares, tiveram seus direitos políticos cassados e foram proibidas de atuar politicamente pelo prazo de 10 anos. Foi inicialmente desmantelada a estrutura sindical de trabalhadores no país, que começara, nos anos de 1960, a sair da tutela do Estado e tornar-se independente. Desmantelou-se, a seguir, o movimento estudantil, com a invasão do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), a prisão de todas as suas principais lideranças e a proibição de ações políticas nas escolas e faculdades, com a extinção dos Centros Acadêmicos e a promulgação do Decreto 477, que punia com a expulsão e o impedimento de se matricular em escolas públicas no país durante três anos para os que se envolvessem em atividades políticas.

Sem alternativas de ação legal, a juventude, principalmente, começou a agir na clandestinidade. Muitos partidos políticos e organizações paramilitares de esquerda foram criadas, quase todas dissidentes do antigo Partido Comunista, já dividido, naquele momento em PCB e PCdoB. Multiplicaram-se grupos armados, de guerrilha urbana e rural. A repressão se sofisticou. No âmbito militar foram criados os órgãos de investigação e tortura policial-militar, com a Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, e as agências no interior de cada uma das forças armadas: o DOI-CODI, do Exército, o PARASAR, da Aeronáutica, e o CENIMAR, da Marinha, todos eles órgãos especializados na repressão à “subversão e ao terrorismo”. A Escola Superior de Guerra, sob inspiração norte-americana, elaborou a “ideologia de segurança nacional”. Criou-se a Operação Condor, para ação conjunta dos aparelhos repressivos de todas as ditaduras do Cone Sul.

Os que detinham o poder político e das armas prenderam e arrebentaram. Os que se encontravam na oposição defenderam-se como puderam. Uns, no exercício de um poder ditatorial, afirmavam que estavam salvando o país do perigo comunista e que produziam o desenvolvimento. Outros, na resistência à ditadura, se esforçavam para construir uma alternativa econômica, social e política ao capitalismo e sonhavam como o socialismo. Os primeiros reinaram soberanos durante 21 anos, sem prestar contas dos seus atos, fossem eles políticos, econômicos ou sociais. Nunca se apurou a corrupção no período, pois a imprensa estava sob censura e os partidos políticos e as organizações da sociedade civil foram impedidos de se manifestar livremente. Os segundos foram presos, se esconderam, se exilaram ou foram mortos.

Com a crise econômica do final dos anos de 1970 e do início dos anos de 1980, ocorre o desgaste do governo militar e de suas políticas, permitindo que a sociedade civil se reorganize. Conquista-se, primeiro, a partir de uma ampla mobilização nacional, a anistia para os presos e exilados políticos (1979) e, depois, com a Campanha das Diretas-Já e a votação no Colégio Eleitoral, elege-se Tancredo Neves e inicia-se (1985) a Nova República. Em 1988, com a nova Constituição Federal, instaura-se, efetivamente, um novo período democrático que ainda perdura.

Mesmo sob a democracia, nunca foram abertos os arquivos da ditadura e dos seus órgãos de repressão. Os que abusaram do poder ditatorial, que prenderam ilegalmente, que bateram, torturaram, mataram e desapareceram com corpos nunca foram julgados nem punidos. A anistia de 1979, na verdade, além de conquista dos movimentos de resistência à ditadura, foi também um ardil dos ditadores para se autoproteger, pois que anistiou também os que, protegidos pela força do arbítrio, se excederam na repressão dos que lhes faziam oposição.

Em todos os países do Cone Sul nos quais houve ditaduras igualmente repressoras durante os anos da guerra-fria já foram instaurados inquéritos para apuração de responsabilidades e recuperação da memória histórica. Apenas no Brasil as resistências perduram. Os militares da reserva e da ativa ainda barram a instalação da Comissão da Verdade. É este o motivo pelo qual se valeram do Clube Militar para divulgar um documento de críticas ao governo Dilma Rousseff e a duas de suas ministras (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos e Eleonora Menunicci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres). Mesmo repreendidos, os agentes da antiga repressão contra-atacaram. Divulgaram um segundo documento, que já detêm mais de duas mil assinaturas e que conta, inclusive, com o apoio explícito de generais da ativa.

Os militares que atuaram na repressão e aqueles que lhes são solidários por ideologia e/ou por espírito de corpo (corporativismo) não se conformam com a possibilidade de terem suas ações vasculhadas. Temem serem colocados no ridículo de terem que explicar as violências que cometeram. Argumentam que se vivia em um “estado de guerra” e que “houve baixas de ambos os lados”. Esquecem-se, no entanto, que eles detinham a força e o poder de Estado e que a maioria de seus opositores só detinha o poder da persuasão, sendo ínfima a minoria que possuía armas, quase todas obtidas por meio das ações clandestinas que deflagravam. Estes já foram punidos, além disso, pelas prisões, pelas torturas, pelos abusos a que foram submetidos e até pela morte. O desequilíbrio de forças era enorme, quase incomensurável. Os agentes repressores contavam com a impunidade e a cobertura “legal” e do sistema, o que os torna terroristas de Estado e, por este motivo, ainda mais imperiosa a necessidade de que seus atos sejam revelados. Um país que não purga os seus erros vive sob o risco permanente de repeti-los.

Não há porque comemorar o 31 de março/1º de abril. O ato realizado no Rio de Janeiro na quinta-feira (29), na porta do Clube Militar e a repressão policial que desencadeou, com antigos militares, de um lado, querendo exaltar o Golpe Militar de 1964, e estudantes e ativistas de partidos de esquerda, de outro, vilipendiando a ditadura, é exemplar da exacerbação de ânimos no Brasil hoje. Os militares precisam ser contidos, pois estão se insubordinando à presidenta Dilma Rousseff, sua comandante suprema e a quem devem obediência. Se não o forem, os atos de provocação aumentarão e, muito provavelmente, os confrontos se intensificarão, gerando um clima de insegurança que em nada contribui para a estabilidade democrática. Cabe, inclusive, aqui, uma pergunta: a desestabilização da democracia não será a intenção dos antigos agentes da força e do arbítrio?
 

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