Jean Wyllys
Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT. CARTA CAPITAL
Eu nasci em 1974, quando o Brasil estava sob a ditadura do general
Ernesto Geisel. Nasci na periferia miserável de Alagoinhas, cidade do
interior da Bahia.
Quando me entendi por gente, lá pelos anos 1980, a ditadura ainda
vigorava, mas lá, por aquelas bandas, não se fala em ditadura. Meus
pais, meus tios e meus vizinhos – aquelas pessoas pobres em luta apenas
pelo pão de cada dia – não falavam em ditadura.
E aquele comunicado da censura oficial que antecipava cada programa
de tevê que eu via pela janela do único vizinho com aparelho em casa,
aquele comunicado nada significava além de um alerta inócuo para mim e
para os demais.
Só anos depois, já no final do ensino fundamental, pude perceber,
pelos livros da biblioteca da casa paroquial (“Brasil: nunca mais”, o
principal deles) que nós fazíamos parte da pátria mãe que dormia
distraída enquanto era subtraída em “tenebrosas transações”, para citar
Chico Buarque.
Aliás, por falar em Chico Buarque, a trilha sonora oficial daqueles
“anos de chumbo” – que inclui, além de Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Elis Regina e etc. – não
era ouvida naquelas bandas.
O que se tocava nas poucas radiolas, autofalantes da “feira do pau” e
na Rádio Emissora de Alagoinhas, eram artistas como Nelson Ned, Odair
José, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, Cláudia Barroso, Waldick Soriano e
Fernando Mendes, além, claro, de Roberto Carlos.
As verdades da ditadura – a censura, os conflitos, as torturas, os
assassinatos, os exílios – não chegavam até nós, da mesma maneira que
nossa verdade naqueles anos era – e é – ignorada pelos envolvidos na
resistência à ditadura e responsável em parte pela construção da memória
daquele período.
A memória é uma construção social e, sendo assim, pode cristalizar
determinados aspectos de um tempo, em detrimento de outros que poderiam e
podem ser muito importantes para se pensar o quadro político-social
vigente naqueles anos (afinal, a visão de mundo das camadas populares,
colocadas à margem do centro de decisão política, deve ter algo a nos
dizer sobre a ditadura: elas não sabiam ou não queriam saber, ou tinham
medo de saber ou eram simplesmente ignoradas em sua invisibilidade e
subalternidade? Sabemos hoje que, durante a ditadura, o perigo rondava o
conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e
esquecer).
Ora, o historiador francês Jacques Le Goff, afirma que é preciso
interrogar-se sobre os esquecimentos. “Devemos fazer o inventário dos
arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das
ausências de documentos”.
Até onde se sabe, não existem documentos que recupere a memória do
tratamento que os líderes dos movimentos revolucionários davam aos
homossexuais (em especial às mulheres lésbicas) seja em seus
“aparelhos”, seja nas prisões. Sendo assim, devemos trabalhar a partir
dessa ausência e do silêncio sobre em torno desse assunto. Há muito para
se dizer sobre aqueles dias “mal-ditos”.
A eleição da presidenta Dilma Rousseff – ela mesma uma vítima direta
dos crimes da ditadura militar e agente da resistência ao terrorismo de
estado praticado naqueles anos – abre um capítulo para a memória, que
não consiste apenas em estabelecer uma verdade historiográfica daqueles
crimes.
Tanto a verdade historiográfica quanto a temporada de julgamos que
esperamos que se suceda à historiografia pressupõem uma construção de
significados em um prazo longo (e não podemos ser ingênuos em acreditar
que essa construção não resultará em conflito ideológico e de valor –
vejam, por exemplos, a tagarelice do deputado e ex-militar Jair
Bolsonaro, defendendo que se gozava de liberdade no período da ditadura;
a ação de militares contra uma recente novela do SBT que tratou
superficialmente daqueles dias “mal-ditos”; e o manifesto contrário à
Comissão Nacional da Verdade assinado por mais de cem militares da
reserva e seguido pela arrogante declaração do secretário-geral do
Exército questionando a veracidade das torturas de que foi vítima a
presidenta Dilma).
A verdade – ou verdades – sobre os porões de tortura, vôos da morte,
assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos dos repressores
para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem
sobreviveu aos fatos. Mas é necessária. Eu tenho direito a ela! Minha
geração e as que vieram depois têm direito a ela!
A Comissão da Verdade, liberada do imediatismo dos fatos, poderá nos
oferecer uma narrativa não unificadora, porque esta não seria desejável.
Esperamos que todos os que escreveram aquelas páginas infelizes e
sobreviveram a esse ponto de resgatá-las sejam ouvidos pela Comissão da
Verdade.
Por isso, para garantir a lisura dos trabalhos da mesma e auxiliá-la
ao mesmo tempo, um grupo de deputados da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara – do qual faço parte – decidiu instituir uma
Subcomissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça que conta com o
coordenação da deputada Luiza Erundina. Assim que se noticiou a
existência dessa subcomissão, chegou, ao meu gabinete, um exemplar do
calhamaço “A verdade sufocada – a história que a esquerda não quer que o
Brasil conheça”, escrito pelo coronel reformado Carlos Alberto
Brilhante Ustra.
E eu já o li (criticamente, claro). Sabemos que tanto a Comissão
Nacional da Verdade quanto a nossa subcomissão parlamentar não poderão
reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas
infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e
uma advertência para o futuro.
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