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sábado, 23 de fevereiro de 2013

Aliança Popular - O povo no poder O Socialismo é necessário e actual


“Odigitis” (Jornal da Juventude Comunista da Grécia - KNE)

 
No passado dia 22 de Fevereiro os trabalhadores gregos, convocados pelo PAME, realizaram uma significativa Greve Geral - a 24º - e realizaram manifestações e concentrações de massas em 70 cidades da Grécia. O KKE, que deu início à fase final da preparação do seu 19º Congresso, desempenha um papel determinante na combativa, prolongada e difícil resistência dos trabalhadores e do povo grego. É oportuna, portanto, a publicação desta entrevista de Aleka Papariga sobre as Teses agora postas à discussão.

Entrevista com Aleka Papariga, sobre as Teses do 19º Congresso do Partido Comunista da Grécia em “Odigitis” (Jornal da Juventude Comunista da Grécia - KNE) 12/01/2013.
A publicação das Teses do Comité Central sobre o 19º Congresso do KKE estabeleceu um prazo para os membros do partido e da KNE de trabalho criativo e discussão com o povo e os jovens que vai durar até a celebração do Congresso nos dias 11 a 14 de Abril de 2013.

O Congresso do KKE é um evento crucial para nosso partido e no que se refere à classe operária em seu conjunto e seus aliados também. Todos os membros da KNE e os jovens que defendem nosso partido devem estudar o texto publicado com nossas teses e, portanto, contribuir com o procedimento pré-Congresso de uma maneira criativa.
“Odigitis” vai contribuir nesse processo que se inicia com a entrevista com a secretária-geral, camarada Aleka Papariga.
 

“Odigitis”: Os Congressos do KKE constituem o processo mais importante de nosso partido. Na introdução do texto das Teses menciona-se que “O dever fundamental do Congresso é a elaboração actualizada do programa de nosso Partido, tendo em consideração as evoluções atuais e as obrigações de hoje, e os estatutos do Partido também”. De onde vem essa necessidade e por que é tão necessário?

Aleka Papariga: Não há dúvida de que o Congresso é um evento importante que requer um processo intenso de modo que todos os membros do KKE e da KNE cumpram com suas obrigações e com seus direitos ao expressar sua opinião no que se refere à acção de 4 anos de nosso partido desde nosso último Congresso em 2009, o rendimento do Comité Central, e ao eleger o Comité Central e a Comissão de Auditoria. Ao mesmo tempo, o Congresso é programático e fará mudanças nos Estatutos também.
A necessidade de elaborar o programa do partido se deve a razões específicas, porém normais já que o programa actual foi feito há 16 anos. Durante esse longo período acontecimentos nacionais e internacionais se sucederam, tendo sido os mais importantes:
1. A crise económica capitalista e sua influência sobre a vida do povo trabalhador,
2. A tentativa de reforma do cenário político, a fim de preencher as lacunas abertas pela insatisfação do povo trabalhador,
3. Uma nova rodada de conflitos militares imperialistas em nosso região e
4. O crescimento da arbitrariedade do Estado e do anticomunismo.
Ao mesmo tempo, nos anos que se passaram o KKE colectivamente, e em colaboração com outros Partidos Comunistas, examinou as razões para a restauração capitalista que tiveram lugar nos países socialistas, e formou nosso ponto de vista pelo socialismo e sua construção. O estudo de nossa experiência sobre a história de nosso Partido e do movimento operário entre 1949-1968 se completou também, de maneira colectiva. Ao mesmo tempo, a KNE e nosso partido adquiriram experiência através de nossa contribuição em lutas e mobilizações sob condições de crise capitalista. Portanto, hoje em dia, somos mais maduros para trabalhar num novo Programa actualizado. Além do mais, a experiência obtida através de nossa actividade revela a necessidade de mudanças nos Estatutos.
Quer dizer que não só este Congresso tem carácter de avaliação de nosso trabalho e de determinação de nossas obrigações futuras até o 20º Congresso, mas também tem a ver com a elaboração do documento mais fundamental de nosso partido, o nosso Programa; Sem este Programa, nossa acção andaria às cegas, de uma maneira empírica, sem finalidade e objectivo: o Socialismo, que é urgente e necessário. É um fato que o Congresso requer intensa acção e trabalho dentro da organização, mas as decisões tomadas tem a ver com o povo trabalhador como um todo, damos ênfase em seus interesses imediatos e na perspectiva de um futuro melhor. Além disso, é necessário que ouçamos as opiniões e sugestões de nossos amigos, as pessoas que lutam ao nosso lado, eles nos conhecem e querem contribuir para este processo com as suas opiniões e observações.

“O”: No Congresso, o KKE avalia as acções que ocorreram nos últimos anos e, ao mesmo tempo, dá ênfase ao próximo plano de acção. Quais são os critérios em que se baseia esse processo?

AP: Os critérios em que o julgamento da nossa acção se baseia é o período dos últimos quatro anos, o que pode levar a conclusões confiáveis. Não podemos julgar as situações dentro de breves períodos de tempo, como um mês ou um ano. Elas são as decisões tomadas no último Congresso e nossa acção geral sobre fatos novos. Isso significa que devemos examinar e avaliar tudo, mas não se pode negar que há deveres e critérios que são absolutamente fundamentais. Estes critérios são:
1. Nossa acção sobre a revitalização e fortalecimento do movimento operário e do progresso da aliança da classe operária com as camadas sociais dos pobres autónomos e agricultores, em correlação com a atracção de jovens e mulheres no eixo de seus problemas crescentes e da necessidade de reforçar a organização e consciência de classe. A consciência de classe, claro, tem seus próprios níveis, mas a sua essência é a compreensão da necessidade de derrubada do poder político capitalista em favor do poder da classe trabalhadora que expressa também os interesses dos aliados da classe trabalhadora.
2. A construção de organizações partidárias em fábricas, empresas, locais de trabalho em geral, nos sectores, onde a contradição fundamental do capitalismo e da luta de classes ocorre. O aumento do recrutamento de trabalhadores, homens e mulheres, para o Partido, o seu desenvolvimento e eleição dos órgãos do Partido.
3. O nosso apoio para a KNE, bem como o desenvolvimento de laços fortes entre o partido e os jovens.
4. Nossa luta ideológica e política contra os partidos burgueses e oportunistas.
5. Nossa acção internacionalista e de solidariedade, nossa luta comum com outros partidos comunistas e de trabalhadores.

“O”: Com a publicação das Teses do Comité Central, o debate interno de organização e o diálogo público começou. Que razões há para que se dediquem a elas os jovens que não são membros do KKE e da KNE?

AP: O jovem tem o direito e também a obrigação, de certa forma, de saber o que está proposto, o que o KKE proclama e como, a fim de compará-los com as teses de outros organismos governamentais e partidos de oposição. Sublinhamos a necessidade de a juventude estar ciente do que o KKE apoia e, melhor ainda, se desejam expressar suas próprias opiniões. Estamos especialmente referindo-nos aos jovens, homens e mulheres, com quem nos encontramos no campo de luta, nas manifestações, no campo de trabalho, nas filas do desemprego, nos bairros populares, no campo. Há também um outro motivo mais especial: o KKE é o partido que tem uma percepção radicalmente diferente dos outros, dado que está combatendo nas condições atuais, mas ao mesmo tempo estabelece aberta e claramente a necessidade de derrubar o sistema capitalista por um levante social popular, na preparação de uma nova geração, que vai desempenhar um papel importante. Os outros partidos prometem uma mudança de governo, mas o resto continua o mesmo: a economia, as instituições e a maioria de todos os problemas do povo. O KKE, apesar da perseguição e das proibições conseguiu ter uma presença contínua na vida social, na luta política, na semeadura das ideias mais radicais e subversivas. Não é por acaso que os partidos burgueses e os partidos que vacilam e conciliam em momentos cruciais, reconhecem e admitem a estabilidade, a persistência e a resistência do KKE. Por razões óbvias, é claro, acusam as posições principais do KKE e sua coragem diante do adversário, como uma política ultrapassada e anacrónica. Cada membro da KNE deve ser preparado para esclarecer e responder a perguntas, e prestar atenção às observações e sugestões. Ainda que um jovem ou uma jovem não sejam convencidos da nossa política, a leitura das Teses contribuirá para que eles dêem um passo na formação de uma opinião sobre o KKE, sem ter de ouvir a nossa opinião e propostas que estão sendo distorcidos por outros.

“O”: Nas Teses do Comité Central há uma referência mais ampla à Aliança Popular. Por que o KKE dedica tanta atenção a isso?

AP: O KKE acredita e sabe bem através de sua própria experiência, como um partido revolucionário, que os resultados da luta cotidiana, a luta pelo socialismo, a luta em condições de uma guerra imperialista, pertencem não só aos comunistas, mas à grande maioria do povo, à classe de vanguarda, a classe trabalhadora, e suas alianças também. Nenhuma mudança será realizada de cima para baixo, sem um movimento de contra-ataque e derrocada, sem as massas populares que determinam o resultado da luta, com a sua maturidade, experiência, organização combatividade e abnegação. A vanguarda comunista não é suficiente. Somos os pioneiros, e não podemos tolerar não o ser, mas só dentro deste movimento ascendente do povo e não sem ele ou separadamente.
O povo não pode expressar-se através de uma formação de alianças embaçada ou de forma unilateral. Com a palavra “povo” descrevemos a classe trabalhadora e os sectores pobres das camadas médias da sociedade. O interesse da classe operária é objectivamente a favor da abolição da propriedade capitalista, quer dizer, dos monopólios, e também da média e pequena propriedade privada. A socialização dos monopólios e das grandes corporações capitalistas não é suficiente, porque eles mesmo nasceram, e nascem constantemente das empresas menores.
Por outro lado, trabalhadores autónomos não podem ser facilmente convencidos, devido à sua posição entre a classe trabalhadora e a classe capitalista, de que a abolição da propriedade capitalista serve os seus interesses de médio e longo prazo. É mais do seu interesse lutar contra os monopólios. Portanto, a Aliança Popular expressa a aliança entre a classe operária e as camadas populares, sem abolir as diferenças que existem e, portanto, o KKE é responsável por manter essa aliança coerente através da luta e por combater as diferenças, especialmente em tempos em que um aumento súbito da luta de classes está amadurecendo. A Aliança Popular pode e deve organizar e mobilizar o povo, enquanto progride e se reconfigura, dependendo da evolução dos acontecimentos. Ela vai ser o modelo que irá evoluir para a frente revolucionária dos trabalhadores durante as condições revolucionárias, quando a questão de “quem detém o poder político” será resolvida, a derrubada do poder dos monopólios, do capitalismo.
Em tais condições, os gérmenes do poder da classe trabalhadora são formados, para a construção do socialismo e sua defesa de todas as tentativas de retrocesso e enfraquecimento. Os sovietes, por exemplo, não apareceram de supetão após a vitoriosa revolução de Outubro, seus gérmenes primeiro haviam se formado em 1905, quando a revolução foi derrotada na Rússia.

“O”: Porque “a negação do KKE em participar de um governo com outros partidos (como SYRIZA, ANTARSYA) é um legado para o movimento da classe operária”. Poderia um “governo das esquerdas” abrir o caminho para o socialismo?

AP: Primeiro de tudo, as diferenças que existem entre nós, SYRIZA e ANTARSYA (que não são idênticos entre eles em tudo, mas acabam tendo o mesmo objectivo) são enormes e de modo nenhum em um nível secundário, consequentemente um acordo programático não pode ser conseguido. A diferença básica que é afirmada na pergunta mencionada é se um governo de “esquerda” (sublinho que este termo é muito flexível e afirma tantos pontos de vista diferentes que não se pode definir apenas um único conteúdo), que é eleito pelo Parlamento, pode realmente resolver os problemas do povo, enquanto os monopólios possuem a riqueza pública e, ao mesmo tempo, a Grécia é um membro da UE e da OTAN.
Este governo em particular será não só inconsistente para com o povo, mas conscientemente vai seguir o mesmo caminho de desenvolvimento, ou seja, o caminho capitalista, o qual todos os governos anteriores dos partidos burgueses têm seguido, o mesmo círculo vicioso que leva à crise económica. Este governo, desde o início, terá suas próprias mãos amarradas, uma vez que terá dito ao povo que irá ajudá-lo sem um levante social e uma ruptura, mas por meio de decisões do Parlamento, o que de fato não pode abolir as leis implacáveis capitalistas.
Além disso, há outra razão fundamental para não participar nesta colaboração. Estas não são só as forças que expressam as vacilações habituais das camadas pequeno-burguesas da sociedade, mas são forças que se separaram do KKE, levando com eles grande parte dos quadros do KKE, criando formações que enfrentaram o KKE como um inimigo, causando danos e criando obstáculos para a radicalização das massas. A experiência tem mostrado que a colaboração com o oportunismo provoca danos à classe trabalhadora e ao movimento popular, e conduz o Partido para retrocessos e erros que não podem ser facilmente corrigidos, com consequências a longo prazo.
 
“O”: No projecto de programa, é mencionado que “Em nossa região, desde os Balcãs até o Oriente Médio, os perigos de uma guerra imperialista generalizada e o envolvimento da Grécia nesta estão crescendo”. Em que fatos tem base esta estimativa do CC do KKE?
 
AP: O fato de que vivemos no imperialismo, fase superior do capitalismo, traz consigo ferozes conflitos interimperialistas pela redivisão dos mercados. Não se esqueça que, mesmo que se proceda uma internacionalização capitalista, mesmo que o imperialismo constitua um sistema internacional unificado, a organização dos capitalistas em Estados nacionais e os interesses da burguesia em nível nacional não são abolidos. Teoria que é confirmada por uma grande quantidade de evidências que não se deve ignorar.
A crise económica leva à reclassificação na hierarquia da pirâmide imperialista e exacerba a desigualdade inerente e a desigualdade nas relações entre os países imperialistas. As duas guerras mundiais do século XX foram devidas aos conflitos sobre a redivisão do bolo da riqueza internacional, como resultado dos problemas criados pela crise em suas relações de poder. Guerras regionais e locais, no entanto, também expressam competição entre as forças mais poderosas, que estão colocados nos níveis mais altos da pirâmide imperialista, mesmo quando elas ocorrem entre as forças locais.
No Oriente Médio, independentemente de quais são os lados em guerra, a competição é expressa entre EUA, União Europeia, China, Rússia e mesmo o Brasil, o mesmo ocorrendo no norte da África. É por isso que, em cada país, a luta contra a guerra imperialista, independentemente de a guerra ser defensiva ou ofensiva, está fortemente ligado à luta pelo socialismo.

“O”: O KKE não é o único partido que fala sobre socialismo. No entanto ele é o único que insiste que o socialismo é necessário e oportuno, uma posição que constitui grande parte do esboço de programa do KKE. Qual é a razão para isso?

AP: O socialismo foi e segue sendo mencionado pela social-democracia e pelo oportunismo, de esquerda e de direita. Se se observa a social-democracia e o oportunismo, incluindo sua participação nos governos na Europa e na América Latina e seus programas, só uma conclusão é possível: o socialismo que professam defende a propriedade capitalista junto com umas pequenas e vagas formas de autogestão e solidariedade, não podendo ser eficazes nem nos períodos de desenvolvimento capitalista favoráveis.
Alem do mais, não há exemplos históricos durante os séculos XX e XXI que confirmem que o socialismo com a propriedade capitalista na realidade possa existir, garantindo que os povos vivam com base no potencial de desenvolvimento de seus países, com conquistas científicas e atendimento das necessidades materiais, espirituais e culturais dos povos.
Como dissemos na resposta de uma pergunta anterior, a classe trabalhadora é a única classe que tem interesse na abolição do sistema capitalista, na sua derrubada, porque este sistema não vai abolir a si mesmo sem uma revolução social.

Tradução: JCA (Juventude Comunista Avançando)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Michael Löwy: "Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana"

Nesta entrevista à Fundação Oswaldo Cruz, no Brasil, o investigador do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) diz que a dinâmica de movimentos como o dos “Indignados” é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. 
 
 
As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais.

Michael Löwy esteve no Brasil no final de 2012 para lançar o livro ‘A teoria da revolução no jovem Marx', que foi publicado em 1970 na França e só agora tem uma edição em português.
Durante a sua estada no país, participou de muitos eventos e falou sobre temas diversos, como literatura e a questão ecológica. Nada que surpreenda no perfil de um pesquisador que circula com desenvoltura entre o estudo dos clássicos e a análise da conjuntura atual, e isso sem abrir mão da militância política de esquerda. Nesta entrevista, ele lança mão dos conceitos que aprendeu com os clássicos – principalmente Marx e Walter Benjamin – para discutir a crise que o capitalismo atravessa e os movimentos reivindicatórios que têm surgido em diferentes cantos do mundo. Além disso, explica os princípios e limitações da ideia de ‘ecossocialismo', com a propriedade de ter sido um dos autores do Manifesto que defende essa bandeira.
Brasileiro residente na França desde 1969, Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) e responsável por um seminário na Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales. Só em português, é autor de mais de 20 livros.
 
Como a teoria da revolução do jovem Marx, de que trata o seu livro, nos ajuda a entender o momento atual, com mobilizações de indignados no Estado espanhol, Grécia e vários outros países da Europa, além de movimentos de ‘ocupação' em vários locais do mundo? Esses são movimentos anticapitalistas?

Os movimentos de ‘Indignados' opõem-se às políticas ditadas pelo capital financeiro, pela oligarquia dos bancos e aplicadas por governos de corte neoliberal, cujo principal objetivo é fazer com que os trabalhadores, os pobres, a juventude, as mulheres, os pensionistas e aposentados – isto é, 99% da população – paguem a conta pela crise do capitalismo. Esta indignação é fundamental. Sem indignação, nada de grande e de significativo ocorre na história humana. A dinâmica destes movimentos é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. É no curso de sua ação coletiva, de sua prática subversiva, que estes movimentos poderão tomar um caráter radical e emancipador. É o que explicava Marx na sua teoria da revolução, inspirada pela filosofia da práxis.
 
Marx escreveu no século XIX. As revoluções socialistas a que assistimos aconteceram no século 20. O que a realidade trouxe de diferente na forma como se concretizaram e na forma como se entende revolução nos séculos 19, 20 e 21?

As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais. Nenhuma se assemelha às anteriores. A Comuna de Paris (1871) foi um formidável levante da população trabalhadora da grande cidade e a Revolução Russa foi uma convergência explosiva entre proletariado urbano e massas camponesas. Nas demais revoluções do século 20, desde a Mexicana de 1911 até a Cubana de 1959, ou nas revoluções asiáticas (China, Vietname), foram os camponeses o principal sujeito do processo revolucionário. Não podemos prever como serão as revoluções do século 21: sem dúvida, não repetirão as experiências do passado. Por outro lado, existe o que Walter Benjamin chamava de ‘a tradição dos oprimidos': a experiência da Comuna de Paris inspirou a Revolução Russa e é ainda até hoje um exemplo de autoemancipação revolucionária das classes subalternas.
 
Com a crise capitalista de 2008 e o movimento de intervenção dos Estados para salvar a economia dos países, acreditou-se que a era neoliberal havia chegado ao fim. No entanto, tem sido intensificada cada vez mais a destruição dos direitos conquistados com o Estado de Bem-Estar Social, como temos visto acontecer na Europa (França, agora Espanha...). O que isso significa?

A intervenção dos Estados não significou de forma alguma o fim do neoliberalismo. O único objetivo desta intervenção era salvar os bancos, resgatar a dívida e assegurar os interesses dos mercados financeiros. Para este objetivo, foram sacrificadas conquistas de dezenas de anos de lutas dos trabalhadores: direitos sociais, serviços públicos, pensões e aposentadorias, etc. Para a lógica de chumbo do capitalismo neoliberal, tudo isto são ‘despesas inúteis'.
 
Um debate antigo da esquerda é sobre a relação entre revolução e reforma. O contexto do final do século 20 e do início do século 21, com situações como, por exemplo, a vitória eleitoral de partidos de esquerda na América Latina e mesmo em alguns países da Europa recolocam essa questão. Como analisa essa relação hoje?

Rosa Luxemburgo já havia explicado, em seu belo livro ‘Reforma ou Revolução?' (1899), que os marxistas não são contra as reformas; pelo contrário, apoiam qualquer reforma que seja favorável aos interesses dos trabalhadores: salário mínimo, seguro médico, seguro desemprego, por exemplo. Simplesmente, lembrava ela, não podemos chegar ao socialismo pela acumulação gradual de reformas; só uma ação revolucionária, que derruba o muro de pedra do poder político da burguesia, pode iniciar uma transição ao socialismo. O problema da maioria dos governos de centro-esquerda, seja na Europa ou na América Latina, é que as ‘reformas' que aplicam são muitas vezes de corte neoliberal: privatizações, regressões no estatuto dos pensionistas, etc. Tratam-se de variantes do social-liberalismo, que aceitam o quadro económico capitalista mas, contrariamente ao neoliberalismo reacionário, têm algumas preocupações sociais. É o caso dos governos Lula-Dilma no Brasil. Temo que no caso da França (François Hollande, recentemente eleito), nem a isto chegue...
 
Um desafio dessa esquerda que chegou ao poder na América Latina tem sido equacionar a dependência econômica da exploração de recursos naturais (como o petróleo na Venezuela e o gás natural na Bolívia) com a tentativa de superação da lógica capitalista de destruição do meio ambiente. Na sua opinião, essa equação é possível?

Contrariamente aos governos social-liberais, os da Venezuela, Bolívia e Equador têm levado adiante uma verdadeira rutura com o neoliberalismo, enfrentando as oligarquias locais e o imperialismo. Mas dependem, para a sua sobrevivência económica, e para financiar os seus programas sociais, da exploração de energias fósseis – petróleo, gás –, que são os principais responsáveis pelo desastre ecológico que ameaça o futuro da humanidade. É difícil exigir destes governos que deixem de explorar estes recursos naturais, mas eles poderiam utilizar uma parte do rendimento do petróleo para desenvolver energias sustentáveis – o que fazem muito pouco. Uma iniciativa interessante é o projeto ‘Parque Yasuni', do Equador, proposta dos movimentos indígenas e dos ecologistas assumida, após algumas hesitações, pelo governo de Rafael Correa. Trata-se de preservar uma vasta região de florestas tropicais, deixando o petróleo embaixo da terra, mas exigindo, ao mesmo tempo, que os países ricos paguem metade do valor (9 mil milhões de dólares) deste petróleo. Até agora, não houve iniciativas comparáveis na Venezuela ou na Bolívia.
 
A crítica à destruição do meio ambiente como intrínseca ao capitalismo já estava presente na obra de Marx?

Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica parece-me completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspetiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.
 
O Manifesto Ecossocialista, que o sr. ajudou a escrever em 2001, diz que o capitalismo não é capaz de resolver a crise ecológica que ele produz. Como o sr. analisa as soluções a esse problema que vêm sendo apresentadas pelo capitalismo, como é o caso da economia verde?

A assim chamada ‘economia verde', propagada por governos e instituições internacionais (Banco Mundial, etc), não é outra coisa senão uma economia capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade algumas propostas técnicas ‘verdes' bastante limitadas. Claro, tanto melhor se alguma empresa trata de desenvolver a energia eólica ou fotovoltaica, mas isto não trará modificações substanciais se não for acompanhado de drásticas reduções no consumo das energias fósseis. Mas nada disto é possível sem romper com a lógica de competição mercantil e rentabilidade do capital. Outras propostas ‘técnicas' são bem piores: por exemplo, os famigerados ‘biocombustíveis' que, como bem diz Frei Betto, deveriam ser chamados de ‘necrocombustíveis', pois tratam de utilizar os solos férteis para produzir uma pseudogasolina ‘verde', para encher os tanques dos carros – em vez de comida para encher o estômago dos famintos da terra.
 
É possível implementar uma perspetiva como a do ecossocialismo no capitalismo?

O ecossocialismo é anticapitalista por excelência. Como perspetiva, implica a superação do capitalismo, já que se propõe como uma alternativa radical à civilização capitalista/industrial ocidental moderna. Por outro lado, a luta pelo ecossocialismo começa aqui e agora, na convergência entre lutas sociais e ecológicas, no desenvolvimento de ações coletivas em defesa do meio ambiente e dos bens comuns. É através destas experiências de luta, de auto-organizaçâo, que se desenvolverá a consciência socialista e ecológica.
 
A perspectiva ecossocialista pressupõe uma crítica à noção de progresso. Em que consiste essa crítica?

Walter Benjamin insistia, com razão, que o marxismo precisa libertar-se da ideologia burguesa do progresso, que contaminou a cultura de amplos setores da esquerda. Trata-se de uma visão da história como processo linear, de avanços, levando, necessariamente, à democracia, ao socialismo. Estes avanços teriam sua base material no desenvolvimento das forças produtivas, nas conquistas da ciência e da técnica. Em rutura com esta visão – pouco compatível com a história do século 20, de guerras imperialistas, fascismo, massacres, bombas atómicas –, precisamos de uma visão radicalmente distinta do progresso humano, que não se mede pelo PIB [Produto Interno Bruto], pela produtividade ou pela quantidade de mercadorias vendidas e compradas, mas sim pela liberdade humana, pela possibilidade, para os individuos, de realizarem suas potencialidades; uma visão para a qual o progresso não é a quantidade de bens consumidos, mas a qualidade de vida, o tempo livre - para a cultura, o ócio, o desporto, o amor, a democracia - e uma nova relação com a natureza. Para o ecossocialismo, a emancipaçâo humana não é uma ‘lei da história', mas uma possibilidade objetiva.
 
Quais as principais diferenças entre o ecossocialismo e a forma como o socialismo real lidou com os problemas ambientais? E a socialdemocracia, conseguiu construir alternativas a essa lógica destrutiva do capital?

O assim chamado ‘socialismo real' - muito real, mas pouco socialista - que se instalou na URSS sob a ditadura burocrática de Stalin e seus sucessores tratou de imitar o produtivismo capitalista, com resultados ambientais desastrosos, tão negativos quanto os equivalentes no Ocidente. O mesmo vale para os outros países da Europa Oriental e para a China. As intuições ecológicas de Marx foram ignoradas e se levou a cabo uma forma de industrialização forçada, copiando os métodos do capitalismo. A social-democracia é um outro exemplo negativo: nem tentou questionar o sistema capitalista, limitando-se a uma gestão mais ‘social' de seu funcionamento. Mesmo nos países em que governou em aliança com os partidos verdes, a social-democracia não foi capaz de tomar nenhuma medida ecológica radical. O ecossocialismo corresponde ao projeto de um socialismo do século 21, que se distingue dos modelos que fracassaram no curso do século 20. Ele implica uma rutura com o modelo de civilização capitalista e propõe uma visão radicalmente democrática da planificação socialista e ecológica.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

2007-2012: 6 anos que abalaram os bancos


O cenário repetiu-se pelo menos trinta vezes na Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes públicos estiveram sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos privados, financiando o seu resgate através do endividamento público. Primeira parte do artigo "Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado!", de Eric Toussaint.
Foto URBAN ARTefakte/Flickr

Desde 2007-2008, os grandes bancos centrais (BCE, Banco da Inglaterra, a Fed nos EUA, o Banco da Suíça) têm como prioridade absoluta tentar evitar o colapso do sistema bancário privado. Contrariamente ao discurso dominante, a principal ameaça para os bancos não é a suspensão do pagamento da dívida soberana pelo Estado |1| soberano. Desde 2007, nenhuma das falências bancárias foi causada por essa falta de pagamento. Nenhum dos resgates bancários levados a cabo pelos Estados teve como causa a suspensão de pagamentos por parte de Estados sobreendividados. Desde 2007 o que ameaça os bancos são as dívidas privadas que os bancos foram gradualmente fomentando devido à grande desregulação iniciada em finais dos anos setenta e concluída nos anos noventa. Os balanços dos bancos privados estão sempre contaminados por ativos |2| duvidosos: desde ativos tóxicos que são bombas ao retardador até ativos ilíquidos (que não podem ser vendidos, nem passados, nos mercados financeiros), passando por ativos cujo valor é bastante superestimado nos balanços bancários. A venda e a depreciação de ativos que os bancos têm inserido nas suas contas, com o objectivo de reduzirem o peso desses ativos explosivos, não são suficientes. Uma parte significativa desses ativos depende de um financiamento a curto prazo (concedido ou garantido pelos poderes públicos, com base no dinheiro dos contribuintes) para se manter à tona |3| e para fazer face às dívidas de curto prazo. Foi o que aconteceu com o banco franco-belga Dexia, um verdadeiro hedge fund de grande dimensão, que, em quatro anos, esteve três vezes à beira da falência: em outubro de 2008, em outubro de 2011 |4| e em outubro de 2012 |5|. Durante o episódio mais recente, que teve início em novembro de 2012, os estados francês e belga concederam uma ajuda de 5,5 mil milhões (53% do valor foi garantido pela Bélgica) para recapitalizar o Dexia SA, sociedade financeira moribunda, que viu desaparecer os seus próprios fundos. De acordo com Le Soir: «os capitais próprios do Dexia-casa-mãe passaram de 19,2 mil milhões para 2,7 mil milhões de euros entre o final de 2010 e o final de 2011. E a nível de grupo, o total dos fundos próprios foi negativo (-2,3 mil milhões em 30 de junho de 2012)» |6|. No final de 2011, as dívidas a exigir de imediato ao Dexia SA ascendiam a 413 mil milhões de euros e os montantes devidos em termos de contratos de derivados eram superiores a 461 mil milhões de euros. A soma desses dois valores era superior a mais de duas vezes e meia o PIB da Bélgica! No entanto, os dirigentes do Dexia, o belga vice-primeiro-ministro Didier Reynders e os principais meios de comunicação social ainda alegam que o problema do Dexia SA é em grande parte causado pela crise da dívida soberana no sul da zona do euro. A verdade é que os créditos do Dexia SA em relação à Grécia não excediam 2 mil milhões de euros em Outubro de 2011, ou seja, duzentas vezes menos do que a dívida a pagar de imediato. Em outubro de 2012, as ações do Dexia valiam cerca de 0,18 euros ou 100 vezes menos do que em setembro de 2008. Apesar de tudo, os estados francês e belga decidiram, mais uma vez, salvar esse « mau banco», aumentando de repente a dívida pública dos seus países. Em Espanha, a quase falência do Bankia foi também causada por acordos financeiros duvidosos e não por qualquer tipo de incumprimento por parte do Estado. O cenário repetiu-se pelo menos trinta vezes na Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes públicos estiveram sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos privados, financiando o seu resgate através do endividamento público.
De volta ao início da crise em 2007
A construção gigantesca de dívidas privadas começou a ruir com a explosão da bolha especulativa no mercado imobiliário dos Estados Unidos (seguido pelo mercado imobiliário da Irlanda, do Reino Unido e de Espanha,...). A bolha imobiliária explodiu nos Estados Unidos quando o preço das habitações construídas em grandes quantidades começou a cair, porque cada vez mais as casas não tinham compradores.
As explicações truncadas e enganadoras sobre a crise que eclodiu nos Estados Unidos em 2007, que teve um enorme efeito de contágio principalmente na Europa Ocidental, prevaleceram nas explicações dadas pelos principais meios de comunicação social. Com regularidade, em 2007 e durante boa parte de 2008, explicou-se à opinião pública que a crise tinha começado nos Estados Unidos, porque os pobres estavam muito endividados por terem comprado casas que não eram capazes de pagar. O comportamento irracional dos pobres foi apontado como tendo sido o causador da crise. A partir de finais de setembro de 2008, após a falência do Lehman Brothers, o discurso dominante mudou e começou-se a apontar o dedo às ovelhas negras que no mundo das finanças tinham pervertido o funcionamento virtuoso do capitalismo. Mas mantêm-se as mentiras ou as explicações truncadas, que continuaram a circular. Passou-se dos pobres responsáveis pela crise para as maçãs podres da classe capitalista: Bernard Madoff, que montou um golpe 50 mil milhões de dólares, ou Richard Fuld, o patrão do Lehman Brothers.
As premissas da crise remontam a 2006, quando se inicia nos Estados Unidos a queda dos preços do imobiliário, causada pela superprodução que foi provocada pela bolha especulativa, que, inflacionando os preços do imobiliário, levou o sector da construção a aumentar exageradamente a sua actividade em relação à procura existente. Foi a queda dos preços do imobiliário que levou a um aumento do número de famílias incapazes de pagarem as mensalidades das suas hipotecas subprimes. De facto, nos Estados Unidos, as famílias têm a oportunidade e o costume, quando os preços dos imóveis sobem, de refinanciar as suas hipotecas, após dois ou três anos, a fim de obterem condições mais favoráveis (em particular no sector subprime, a taxa inicial a dois ou três anos é baixa e fixa e ronda os 3%, mas depois dispara e torna-se variável no terceiro ou quarto ano). Dado que os preços do imobiliário começaram a cair em 2006, as famílias que utilizaram empréstimos subprime deixaram de ser capazes de refinanciar a sua hipoteca favoravelmente. Os incumprimentos começaram a aumentar de forma acentuada a partir do início de 2007, o que provocou a falência de 84 empresas de hipotecas nos Estados Unidos, entre janeiro e agosto de 2007.
Apesar de a crise ser explicada com frequência de forma simplista pela explosão de uma bolha especulativa, na realidade, a causa deve ser procurada tanto no sector produtivo como ao nível da especulação financeira. É certo que o facto de a bolha ter sido criada, e de acabar por rebentar, apenas multiplica os efeitos da crise que começou no sector produtivo. Todos os empréstimos subprime e produtos estruturados, criados desde meados dos anos noventa, entraram em colapso, o que teve efeitos terríveis sobre a produção em vários sectores da economia real. As políticas de austeridade ampliaram ainda mais o fenómeno que gera depois o período depressivo e de recessão, que se arrasta e mantém como refém a economia dos países industrializados.
A crise do imobiliário nos Estados Unidos e a crise bancária que se lhe seguiu provocaram um enorme efeito de contágio a nível internacional, levando muitos bancos europeus a investirem de forma massiva em produtos estruturados e derivados norte-americanos. Desde os anos noventa, o crescimento dos Estados Unidos e de várias economias europeias foi apoiado por uma hipertrofia do sector financeiro privado e um aumento muito grande das dívidas privadas: endividamento das famílias |7|, dívida das empresas financeiras e não-financeiras. Ao contrário, as dívidas públicas tenderam a diminuir entre a segunda metade dos anos noventa e os anos de 2007-2008.
Hipertrofia do sector financeiro privado, portanto. O volume de ativos dos bancos privados europeus, em relação ao produto interno bruto, cresceu de maneira exponencial a partir da década de noventa, atingindo, na União Europeia, três vezes e meia o PIB dos 27 países membros da UE em 2011 |8|. Na Irlanda, em 2011, os ativos dos bancos representavam oito vezes o produto interno bruto do país.
As dívidas dos bancos privados |9| da zona euro representam também três vezes e meia o PIB da zona. As dívidas do sector financeiro britânico atingem máximos em relação ao PIB: chegam a ser onze vezes superiores, representando a dívida pública cerca de 80% do PIB.
A dívida bruta dos Estados da zona do euro representava 86% do PIB dos 17 países em 2011 |10|. A dívida pública grega representava 162% do PIB grego em 2011. Por seu turno, as dívidas do sector financeiro representam 311% do PIB, ou seja, o dobro. A dívida pública espanhola atingiu 62% do PIB em 2011. No entanto, as dívidas do sector financeiro atingiram 203%, ou seja, o triplo da dívida pública.
Um pouco de história: a criação de uma regulação financeira rigorosa, na sequência da crise de 1930
O colapso de Wall Street em outubro de 1929, a enorme crise bancária de 1933 e o prolongado período de crise económica nos Estados Unidos e na Europa, na década de trinta, levaram o presidente Franklin Roosevelt, e de seguida a Europa, a regular fortemente o sector financeiro para evitarem a repetição de graves crises bolsistas e bancárias. Consequência: durante os 30 anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, o número de crises bancárias foi mínimo. É o que mostram dois economistas neoliberais norte-americanos, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, num livro publicado em 2009, intitulado Desta Vez É Diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira. Kenneth Rogoff foi economista-chefe do FMI e Reinhart Carmen, professor universitário, é conselheiro do FMI e do Banco Mundial. De acordo com esses dois economistas, que são tudo menos favoráveis a questionar o capitalismo, a quantidade muito reduzida de crises bancárias explica-se principalmente «pela repressão dos mercados financeiros nacionais (em diferentes níveis), e por um recurso massivo ao controlo de capitais, durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial» |11|.
Uma das medidas fortes tomadas por Roosevelt e pelos governos da Europa (nomeadamente sob a pressão de mobilizações populares na Europa, que surgiram após a libertação) consistiu em limitar e regular, de forma estrita, o uso que os bancos podiam fazer do dinheiro das pessoas. Esse princípio de protecção dos depósitos levou à distinção entre bancos comerciais e bancos de investimento, criados pela lei norte-americana Glass-Steagall Act, que foi a mais conhecida, tendo sido aplicada, com algumas variações, nos países europeus.
Devido a essa separação, só os bancos comerciais podiam receber depósitos do público, que beneficiavam de uma garantia do Estado. Paralelamente, o seu campo de atividade tinha ficado limitado à concessão de empréstimos a particulares e a empresas e excluía a emissão de títulos, de ações e de outros instrumentos financeiros. Os bancos de investimento deviam, por sua vez, ir buscar os seus recursos aos mercados financeiros, para poderem emitir títulos, ações e outros instrumentos financeiros.
A desregulação financeira e a viragem neoliberal
A viragem neoliberal de finais da década de setenta pôs em causa essas regulações. Após cerca de vinte anos, a desregulação bancária e financeira ficou concluída. Como revelam Kenneth Rogoff e Reinhart Carmen, as crises bancárias e bolsistas multiplicaram-se a partir dos anos oitenta e atingiram níveis cada vez mais preocupantes.
Segundo o modelo tradicional, herdado do período em que existia regulação, os bancos avaliam e assumem o risco, ou seja, analisam os pedidos de crédito, decidem ou não satisfazê-los e, uma vez os empréstimos concedidos, registam-nos nos seus balanços até ao final do prazo do empréstimo (estamos a falar do modelo originate and hold – «originar e manter»).
Aproveitando a tendência de profunda desregulação, os bancos abandonaram o modelo «originar para manter» com o objectivo de aumentarem o rendimento dos fundos próprios. Nesse sentido, os bancos inventaram novos procedimentos, em especial, a titularização, que significa transformar os créditos bancários em títulos financeiros. A finalidade era simples: consistia em não registar nas contas dos bancos os créditos e os respectivos riscos. Os bancos transformaram esses créditos em títulos, os denominados produtos financeiros estruturados, que vendiam a outros bancos e a outras instituições financeiras privadas. Estamos falar de um novo modelo bancário designado originate to distribute, «originar para distribuir», também chamado originate repackage and sell, que consiste em conceder o crédito, titularizá-lo e vendê-lo. Para o banco, a vantagem é dupla: reduz o risco porque os créditos concedidos baseiam-se em ativos e, por outro lado, dispõe de meios suplementares para poder especular.
A desregulação permitiu ao sector financeiro privado, nomeadamente aos bancos, acionar com frequência o chamado efeito de alavancagem. Xavier Dupret descreve, com clareza, o fenómeno: «O mundo bancário envididou-se muito, nos últimos anos, devido ao chamado efeito de alavancagem. A alavancagem significa recorrer ao endividamento para aumentar a rentabilidade sobre o capital próprio. E para funcionar, é necessário que a taxa de rentabilidade do projeto selecionado seja superior às taxas de juro a pagar sobre o montante que se pediu emprestado. Os efeitos de alavancagem tornaram-se cada vez mais importantes ao longo do tempo. É evidente que isso gerou problemas. Na primavera de 2008, os bancos de investimento de Wall Street desencaderam efeitos de alavancagem que oscilavam entre 25 e 45 (para um dólar de fundos próprios, pediam emprestado entre 25 e 45 dólares). O Merrill Lynch, por exemplo, tinha um efeito de alavancagem de 40. Essa situação tornou-se obviamente explosiva, porque uma instituição que tem uma alavancagem de 40 para 1 vê os seus fundos próprios caírem 2,5% (1/40) do valor dos ativos adquiridos.» |12|
Devido à desregulação, os bancos puderam desenvolver atividades que envolviam grandes volumes de financiamento (e, portanto, de dívida), sem registarem isso nos seus balanços. As operações fora do balanço atingiram tal dimensão que, em 2011, o volume da atividade em causa excedia os 67 biliões de dólares (o que equivale aproximadamente à soma do PIB de todos os países do mundo): é o que se chama sistema de bancos-sombra, o shadow banking |13|. Quando as operações fora do balanço provocam perdas avultadas, isso afeta, mais cedo ou mais tarde, a saúde dos bancos que levaram a cabo essas operações. São, sobretudo, os grandes bancos que dominam essa atividade sombra. A ameaça de falência leva os Estados a irem em seu socorro, procedendo a recapitalizações. Apesar de os balanços oficiais dos bancos registarem uma diminuição de volume, desde o início da crise em 2007-2008, o volume das operações fora de balanço, o shadow banking, não seguiu a mesma tendência. Depois de ter caído entre 2008 e 2010, voltou em 2011 e 2012 ao nível de 2006-2007, o que é um sintoma claro da perigosidade da situação das finanças privadas mundiais. De repente, o raio de ação nacional e internacional das instituições públicas, que têm a obrigação, para usar o vocabulário deles, de levar a finança a assumir um comportamento mais responsável, é muito limitado. Os reguladores não disponibilizam os meios necessários para que se conheça a actividade real dos bancos que eles têm o dever de controlar.
O Conselho de Estabilidade Financeira (CEF), o órgão instituído pelo G20 e encarregue de supervisionar a estabilidade financeira mundial, divulgou os números de 2011. «A dimensão do shadow banking, escapando a todo tipo de regulação, é de 67 biliões de dólares, de acordo com o relatório que estuda 25 países (90% dos ativos financeiros mundiais). São mais 5-6 biliões do que em 2010. Esse sector “paralelo” equivale, por si só, a metade do volume dos ativos totais dos bancos. Tomando por referência o Produto Interno Bruto dos países, a banca sombra prospera em Hong Kong (520%), Holanda (490%), Reino Unido (370%), Singapura (260%) e Suíça (210%). Mas, em termos absolutos, os Estados Unidos continuam em primeiro lugar com um sector paralelo de 23 biliões de ativos em 2011, seguido da zona euro (22 biliões) e do Reino Unido (9 biliões).» |14|
Uma grande parte das transações financeiras escapa totalmente ao controlo oficial. Como foi referido anteriormente, a dimensão da actividade dos bancos sombra representa metade do volume dos ativos totais dos bancos! É preciso também avaliar o mercado fora de bolsa (OTC*) – isto é, o mercado que não é controlado pelas autoridades reguladoras dos mercados – os produtos financeiros derivados. O volume de produtos derivados cresceu de forma exponencial entre os anos noventa e os anos 2007-2008. Tendo diminuído ligeiramente no início da crise, o valor nocional dos contratos de derivativos no mercado fora de bolsa atingiu, em 2011, a soma astronómica de 650 biliões de dólares (650 000 000 000 000 $), cerca de 10 vezes o PIB mundial. O volume do segundo semestre de 2007 foi ultrapassado e o do primeiro semestre de 2008 está em vias... os swaps de taxas de juros representam 74% do total, os derivados sobre os mercados de divisas representam 8%, os Credit default swaps (CDS) 5%, os derivados sobre os mercados de ações de 1%, o resto reparte-se por múltiplos produtos.
Após 2008 os resgates bancários não geraram comportamentos mais responsáveis
A crise financeira de 2007 viu os bancos, ainda que culpados por má conduta e por assumirem posições arriscadas e imprudentes, receberem injeções maciças de fundos por intermédio de vários e caros planos de resgate. Num estudo bem documentado |15|, dois investigadores tentaram verificar «se as operações públicas de resgate foram seguidas de uma maior redução do risco na concessão de novos empréstimos pelos bancos resgatados, comparativamente aos bancos que não foram resgatados». Com esse objectivo, os autores analisaram os balanços e os empréstimos sindicalizados (trata-se de créditos concedidos a uma empresa por vários bancos) relativos a 87 grandes bancos comerciais internacionais. Os autores verificaram que «os bancos ajudados continuaram a conceder empréstimos sindicalizados mantendo o risco», adiantando que «os empréstimos sindicalizados dos bancos que receberam ajuda eram, depois do resgate, mais arriscados do que antes da crise, comparando com as instituições que não receberam ajuda». Em vez de serem um remédio e uma proteção eficaz contra os caprichos dos bancos, os planos de resgate dos Estados tornaram-se, pelo contrário, muitos deles, um forte incentivo à continuação e intensificação das práticas pecaminosas. Na verdade, «a perspectiva de um apoio por parte do Estado pode constituir um álibi moral e pode levar os bancos a aumentarem o risco». |16|
Em suma, a grave crise das dívidas privadas, provocada pelo comportamento irresponsável dos grandes bancos, levou os dirigentes norte-americanos e europeus a irem em seu socorro, utilizando fundos públicos. A sirene lancinante da crise das dívidas soberanas pôde, então, ser acionada para impor sacrifícios brutais aos povos. A desregulação financeira dos anos noventa foi terreno fértil para esta crise com consequências sociais dramáticas. Enquanto não regularem a finança internacional, os povos continuarão subjugados. A luta deve ser intensificada o mais depressa possível.

Tradução Maria da Liberdade. Publicado na página do CADTM
O autor agradece a Patrick Saurin, Daniel Munevar, Damien Millet e Virginie de Romanet pela ajuda que deram na elaboração do artigo.
Notas
|1| A dívida soberana é a dívida de um Estado e dos organismos públicos que lhe estão associados.
|2| Em geral o termo «ativo» significa um bem que possui um valor realizável ou que pode gerar rendimentos. Por outro lado, entende-se por «passivo» a parte do balanço que é composta pelos recursos que uma empresa possui (capitais próprios gerados pelos associados, provisões para riscos e encargos, dívidas).Ver:http://www.banque-info.com/lexique-....
|3| Muitos bancos dependem de financiamento a curto prazo, porque têm grande dificuldade em emprestar ao sector privado a custos sustentáveis (ou seja, o mais baixo possível), em especial sob a forma de emissão de títulos de dívida. Como veremos a seguir, a decisão do BCE de emprestar um pouco mais de um bilião de euros a uma taxa de 1%, por um prazo de três anos, a mais de 800 bancos europeus funcionou como tábua de salvação para muitos deles. Na sequência, devido a esses empréstimos do BCE, os bancos mais sólidos tiveram de novo a oportunidade de emitir títulos de dívida para se financiarem. Isto não teria sido possível, caso o BCE não tivesse assumido o papel de credor de último recurso durante um período de três anos.
|4| Sobre o episódio de outubro de 2011, ver Eric Toussaint, «Krach de Dexia : un effet domino en route dans l’UE ?», 4 de outubro de 2011
|5| Sobre o episódio de outubro de 2012, que levou a um novo resgate sob a forma de recapitalização, ver Eric Toussaint, «Fallait-il à nouveau injecter de l’argent dans Dexia ?», Le Soir, 2 de novembro de 2012; ver também: CADTM, «Pour sortir du piège des recapitalisations à répétition, le CADTM demande l’annulation des garanties de l’Etat belge aux créanciers du groupe Dexia», 31 de outubro de 2012; CADTM, «Pourquoi le CADTM introduit avec ATTAC un recours en annulation de l’arrêté royal octroyant une garantie de 54 milliards d’euros (avec en sus les intérêts et accessoires) à Dexia SA et Dexia Crédit Local SA», 22 de dezembro de 2011
|6| Pierre-HenriThomas, Bernard Demonty, Le Soir, edição de 31 de outubro de 2012, p. 19, http://archives.lesoir.be/dexia-ser...
|7| As dívidas das famílias incluem as dívidas que os estudantes americanos contraíram para pagar os seus estudos. As dívidas dos estudantes nos Estados Unidos atingiram o montante colossal de um bilião de dólares, isto é, mais do que o total das dívidas externas públicas da América Latina (460 mil milhões de dólares), de África (263 mil milhões) e do Sul da Ásia (205 mil milhões). Para ver o montante de dívida desses «continentes»: Les Chiffres de la dette 2012, tabela 7, p. 9. Download
|8| Ver: Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 30, p. 23. A tabela baseia-se em dados fornecidos pela Federação europeia do sector bancário, http://www.ebf-fbe.eu/index.php?pag.... Ver também Martin Wolf, «Liikanen is at least a step forward for EU banks», Financial Times, edição de 5 de Outubro de 2012, p. 9.
|9| As dívidas dos bancos não devem ser confundidas com os seus ativos. Elas fazem parte do seu «passivo». Ver mais a cima a nota de rodapé sobre «ativo» e «passivo» dos bancos.
|10| Ver Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 24, p. 18. Na tabela utiliza-se a base de dados de Morgan Stanley, assim como: http://www.ecb.int/stats/money/aggr... e http://www.bankofgreece.gr/Pages/en...
|11| Carmen M. Reinhart, Kenneth S. Rogoff, Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière, Pearson, Paris, 2010. A edição original foi publicada em 2009 pela Princeton University Press.
|12| Xavier Dupret, «Et si nous laissions les banques faire faillite ?», 22 de agosto de 2012, http://www.gresea.be/spip.php?artic...
|13| Ver: Daniel Munevar, «Les risques du système bancaire de l’ombre», 21 avril 2012, Ver também: Tracy Alloway, «Traditional lenders shiver as shadow banking grows», Financial Times, 28 de dezembro de 2011.
|14| Ver : Richard Hiault, « Le monde bancaire « parallèle » pèse 67.000 milliards de dollars », Les Echos, edição de 18 de novembre de 2012, http://www.lesechos.fr/entreprises-... *Nota de tradução: OTC ou Over the Counter em inglês.
|15| Michel Brei e Blaise Gadanecz, “Have bailouts made banks’loan book safer ?”, Bis Quaterly Review, setembro de 2012, pp. 61-72. As citações deste parágrafo são tiradas deste artigo.
|16| Ibid.
Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo) e membro do conselho científico da ATTAC França. Escreveu com Damien Millet, AAA. Audit Annulation Autre politique, Seuil, Paris, 2012.

Sobre o/a autor/a

Eric Toussaint
Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo

sábado, 10 de novembro de 2012

Brasil, país dos contrastes

 





Frei Betto

Escritor e assessor de movimentos sociais


Stefan Zweig intitulou Brasil, país do futuro seu livro de ensaios lançado em 1941, quando veio conhecer o país que o acolheria e no qual morreria no ano seguinte. Ora, pode ser aplicado ao futuro o que diz Eduardo Galeano a respeito da utopia: como o horizonte, está sempre ali na frente, mas não se pode alcançá-la, por mais que se caminhe em sua direção.
Prefiro afirmar que o Brasil é um país de contrastes. Com população de 192 milhões de habitantes (dos quais 30 milhões na zona rural, onde predomina o latifúndio com grandes extensões de terras improdutivas), apenas 6,6 milhões de brasileiros se encontram na universidade. E dos 92 milhões de trabalhadores, quase a metade não tem carteira assinada.
Temos a maior área fundiária da América Latina e nunca se fez aqui uma reforma agrária. Somos o principal exportador de carne e temos a segunda maior frota de helicópteros das Américas, e convivemos com a miséria de 16 milhões de habitantes (dos quais 40% têm até 14 anos de idade e 71% são negros e pardos).
As marcas de 350 anos de escravidão no Brasil ainda são visíveis no fato de a maioria da população negra ser pobre e, com frequência, discriminada. O Brasil, considerado hoje a 6ª economia do mundo, ocupa a vergonhosa posição de 84º lugar no IDH da ONU (2012).
Embora 65% da renda nacional se concentrem em mãos de apenas 10% da população, o país experimenta sensíveis melhoras nesses primeiros anos do século XXI. Graças aos programas sociais dos governos Lula e Dilma, 30 milhões de pessoas deixaram a miséria. O controle da inflação, o crédito facilitado e a redução dos juros ampliam o segmento da classe média. A desoneração da indústria automobilística e dos produtos de linha branca (geladeiras, máquinas de lavar etc.) dão acesso a bens de consumo.
No entanto, 4 milhões de menores de 14 anos de idade ainda se encontram fora da escola e submetidos a trabalhos indignos. Cinco milhões de agricultores sem-terra se abrigam em precários acampamentos à beira de estradas ou habitam assentamentos com baixo índice de produtividade. Dos domicílios, 47,5% carecem de saneamento básico. Isso abrange um universo de 27 milhões de moradias nas quais vivem 105 milhões de pessoas.
Há cerca de 25 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo, sobretudo nos Estados da Amazônia, cujo desmatamento, provocado pelo agronegócio e a exploração predatória feita por empresas mineradoras, não cessa de despir a floresta de sua exuberância natural.
Na ponta mais estreita da pirâmide social, os brasileiros gastam, em viagens no exterior, US$ 1,8 bilhão por mês! O rombo nas contas externas atingirá, este ano, a cifra recorde de US$ 53 bilhões. Nos últimos anos, a baixa cotação do dólar em relação ao real afetou a indústria nacional e favoreceu a entrada de produtos estrangeiros.
Como a economia brasileira está ancorada principalmente na exportação de commodities, a crise financeira mundial reduz progressivamente as encomendas, tornando pífio o crescimento do PIB, previsto este ano para 1,2%.
Considerado o segundo maior consumidor de drogas no mundo (atrás apenas dos EUA), o Brasil convive com expressiva violência urbana. Os homicídios são a principal causa de mortes de jovens entre 12 e 25 anos.
Embora a situação social do Brasil tenha melhorado substancialmente na última década (a ponto de europeus afetados pela crise financeira migrarem para o nosso país em busca de emprego), falta ao governo implementar reformas estruturais, como a agrária, a tributária e a política.
O sistema de saúde pública é precário e somente neste ano os deputados federais propuseram dobrar para 10% do PIB o investimento federal em educação. Convivemos com 13,6% de adultos analfabetos literais e 29% de adultos analfabetos funcionais (sabem ler e assinar o nome, mas são incapazes de escrever uma carta sem erros ou interpretar um texto).
Segundo o Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê apenas 4 livros por ano. E apenas 5% da população é capaz de se expressar em inglês, dos quais a maioria sem domínio do idioma.
O poder público brasileiro, com raras exceções, é avesso à cultura. O orçamento 2012 do Ministério da Cultura é de apenas R$ 5 bilhões (o PIB atual do Brasil é de R$ 4,7 trilhões). O que explica o país dispor de apenas 3 mil livrarias, a maioria concentrada nas grandes cidades do Sul e do Sudeste do país.
Apesar das dificuldades que o Brasil atravessa, somos um povo viciado em otimismo. Temos, por hábito, guardar o pessimismo para dias melhores...
Agora o nosso horizonte de felicidade se coloca na Copa das Confederações em 2013; na Copa do Mundo em 2014; e nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.
Como o nosso país estará no centro das atenções mundiais, o governo apressa obras, reforma estádios, aprimora a infraestrutura e promete festas que nos farão esquecer que ainda somos, socialmente, uma das nações mais desiguais do mundo.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Nova bolha imobiliária está em gestação nos EUA, diz analista


Poderemos ver, em breve, um aumento da atividade econômica no setor habitacional nos Estados Unidos, à medida que os bancos dispuserem dos 40 bilhões de dólares mensais jogados no mercado como subsídios do FED para fazer a coisa funcionar e emprestar loucamente, de novo. O mercado financeiro está chantageando o governo. Os bancos estão dizendo que não farão novas hipotecas enquanto não tiverem o que querem. E o que eles querem é imunidade legal e não ficar com aconta nas mãos quando o sistema financeiro explodir mais uma vez. O artigo é de Mike Whitney.

  !


É possível que Richard Cordray seja hoje o homem mais poderoso nos Estados Unidos e você provavelmente nunca ouviu falar dele. Como dirigente da nova Agência de Proteção Financeira ao Consumidor dos EUA [CFPB na sigla em inglês], Cordray pode efetivamente voltar o relógio para 2005 e inflar uma outra gigantesca bolha imobiliária sem esforço algum. Tudo o que ele tem de fazer é definir o termo “hipoteca qualificada”, seguindo os critérios dos grandes bancos e – rapidamente – 40 bilhões de dólares por mês começarão a fluir em novas hipotecas. É simples assim. Eis a história contada pela Bloomberg:

Credores estadunidenses podem obter forte proteção contra ações judiciais relativas às hipotecas regulamentadas pelas regras mantidas pela Agência de Proteção Financeira ao Consumidor, de acordo com fontes ligadas à política de direito do consumidor do país.

As assim chamadas regulamentações de hipotecas qualificadas dariam a bancos, inclusive ao JP Morgan, ao Chase & Co. (JPM) e o Wells Fargo & Co. (WFC) garantias contra ações legais oriundas dos processos de subscrição de seguros, de acordo com fontes que falaram com a condição do anonimato, porque as discussões a respeito não são públicas (a agência Bloomberg noticiou assim: “A Agência de Proteção Financeira ao Consumidor dos EUA afirma que dará mais proteção aos credores”).

Então, é por isso que os bancos não têm intensificado a criação de suas hipotecas, mesmo que o FED [Banco Central dos EUA] tenha dito que comprará 40 bilhões de dólares em títulos lastreados em hipotecas via o programa QE3 [1]? É porque querem assegurar a imunidade legal frente a ações judiciais de proprietários de imóveis que venham a ser executados injustamente. Mas por que é que Cordray os está ajudando? Por que ele está tornando mais difícil paras vítimas processarem os meliantes que as expulsam de seus lares? Seu trabalho não é proteger consumidores? Em vez disso, ele está sob o comando dos bancos. Aqui, mais do que a Bloomberg diz:

A agência do consumidor, que está negociando as regras como parte de uma ampla revisão do controle do financiamento habitacional, revelou seus planos num encontro com outras agências reguladoras ontem (17/10). Em torno de 80% dos empréstimos segurados pelo Fannie Mae (FNMA), Freddie Mac ou seguradoras governamentais, como a Federal Housing Administration Housing Administration, estariam se qualificando para dispor de um porto seguro contra ações judiciais, de acordo com dados da Agencia de Administração do Financiamento Habitacional.

Então está feito, é isso? Eles só precisam fazer um pouquinho, antes do grande anúncio. Mas preste atenção nos detalhes: “80% dos empréstimos... seriam qualificados para dispor de um porto seguro contra ações judiciais nos planos da agência”. Que piada. Fannie [Mae] e Freddie [Mac] já seguram 90% de todas as novas hipotecas, agora se vai garantir imunidade legal para contratos de hipoteca de que eles já detêm a titularidade, gratuitamente? É um grande brinde para os bancos, você não acha? Por que não dar-lhes logo as chaves do Fort Knox agora mesmo e era isso? O fato é que Cordray não deveria estar fazendo concessão alguma. A coisa toda é ridícula. Mais da Bloomberg:

As proteções cobririam empréstimos feitos com taxas de juros para os mutuários cujo endividamento não ultrapasse 43% de sua renda total.

Por quanto tempo você acha que será capaz de manter a sua cabeça acima da água se 43% do seu salário desapareceu antes mesmo que você ponha a mão nele? Não muito, eu apostaria. Na verdade, os especialistas acham que pagamento de financiamento imobiliário jamais deveria ultrapassar 33% da renda total. Então, o que isso nos diz? Diz que Cordray fez um acordo que custará ao contribuinte um pacote para cobrir as hipotecas novas que os bancos farão assim que as tintas promocionais [do anúncio do QE3] secarem. Mas tudo bem, certo, porque ao menos os bancos farão um bolo e cortarão pedados desse lixo em partes seguradas e as venderão ao FED com o dólar nas alturas. Que truque!

Pense a respeito, por um minuto. Se o FED está dizendo que comprará 40 bilhões de dólares em títulos lastreados em hipotecas por mês, então o dinheiro da finança irá dragar contratos de hipoteca o suficiente para vender ao adquirente, certo? Porque você precisa de hipotecas para segurar hipotecas. Bem, adivinhem, os bancos não dão a mínima se os novos candidatos a obterem hipotecas pagam ou não. Por que eles se preocupariam? À medida que consigam inscrever essas hipotecas nas novas definições, eles obterão seu recurso segurado de todo jeito. Eles querem apenas ter certeza de que estarão protegidos quando Joe quebrar (porque foi atraído para um contrato de hipoteca que ele claramente não poderia pagar). Querem uma garantia de que ele não poderá processá-los alegando cláusulas frouxas para fornecimento de crédito. Agora, Joe terá de matar no peito e pagar um aluguel barato em algum lugar, porque o senhor Cordray o vendeu para os gângsters do sistema financeiro. Obrigado, Rich.

E ainda há mais: porque os bancos não estão somente buscando carta branca nas garantias de seus contratos bumerangues de hipotecas. Eles também querem estar assegurados de que não terão de arcar sequer com 1% das suas novas hipotecas-lixo. Eles acham que poderão criar tanto crédito quanto quiserem, sem qualquer risco para si mesmos ou para os seus acionistas. É uma arrogância levada ao extremo. Eis um trecho de uma segunda página no Whashington Post, do economista Mark Zandi, que explica o que está acontecendo:

Uma segunda decisão que está para ser tomada, com grandes implicações para o crédito hipotecário envolve algo chamado de regra da “hipoteca residencial qualificada”. Embora o nome seja similar, é bem diferente da definição de hipoteca qualificada, e está desenhada para coibir maus empréstimos ao forçar os credores a arcarem com uma parte dos riscos dos contratos mais arriscados de hipotecas.

Sob a lei Dodd-Frank, um credor deve arcar com 5% de qualquer empréstimo que não seja uma “hipoteca residencial qualificada” (QRM na sua sigla em inglês), de modo que, se esta for executada, o credor também perde algo. Isso em princípio faz sentido, mas, assim como no caso da regra da hipoteca qualificada, o diabo mora nos detalhes. E estes são bastante complicados, refletem os medos de regulação que os credores trabalharão duro para contornar. Mas complexidade acrescenta custos, e como resultado, empréstimos que não sejam “QRM” correm o risco de ter um custo significativamente mais elevado dos que os “QRM”. (“Definindo uma ‘hipoteca qualificada’, Marz Zandi, Wahsington Post).


Certo, isso também é complicado para você entender, Senhor Contribuinte, então vamos ao seu negócio e deixe conosco, os experts, para resolver o seu problema. Nós “cuidaremos de tudo”. Ah, por favor, Zandi, ninguém entende desse troço. Os bancos simplesmente não querem arcar com capital suficiente para cobrir o seu lixo. É isso, não é? Eles querem poder criar mais títulos tóxicos em seus falsos balanços, mas não mantêm dinheiro suficiente para pagar aos investidores quando o barco afundar. A isso se chama “retenção de risco” e não é diferente em nada de se requerer das companhias de seguro que tenham reservas o bastante para pagar os segurados em caso de sua casa incendiar. Aqui tem mais de Zandi:

Na medida em que a lei Dodd-Frank estipula que os empréstimos feitos pelas agências federais são hipotecas residenciais qualificadas, por definição o modo como as QRM são definidas ajudará a traçar o papel das agências federais no mercado de hipotecas. Se a definição for muito estreita, credores privados não poderão competir, dada a alta taxa de juros com que terão de arcar para compensar o risco excessivo. O governo deve então continuar a dominar o mercado de crédito de hipotecas no curto prazo. Por outro lado, se o Fannie Mae e o Freddie Mac vierem a ser privatizados, uma definição estreita de QRM encolheria significativamente o papel do governo no mercado hipotecário, potencialmente ameaçando a existência dos empréstimos hipotecários por 30 anos.

Ah, por favor! Esqueça o papel do governo no mercado habitacional; isso é completamente irrelevante. Aquilo em que estamos interessados é que os bancos tenham alguma grana a mais em caixa para recuperarem suas ações lixo quando o próximo zeppelin cair. Isso também é perguntar muito? O fato é que capitalismo requer capital, é simplesmente assim que funciona. Você não pode simplesmente continuar girando empréstimos sem garantia suficiente para reavê-los mesmo quando o menor dos desvios no mercado envie o sistema financeiro para o esquecimento. Credores precisam ter lastro suficiente para cobrirem as suas perdas potenciais e para evitar outro derretimento que requeira trilhões do governo para preencher o buraco negro que eles (os bancos) criaram.

Você consegue ver o que está errado aqui? Por trás de toda essa conversa barroca, os mercados estão é chantageando o governo. Eles estão dizendo que não farão novas hipotecas enquanto não tiverem o que querem. E o que eles querem é um porto seguro (imunidade legal) e não mais custos regressivos. (Hipotecas que os bancos foram forçados a refazer porque contêm “substantivas subscrições e deficiências documentais” em seus contratos.) Em outras palavras, eles não querem ficar com a conta nas mãos quando o sistema financeiro explodir, de novo. Isso significa que o modo como Cordray define “hipoteca qualificada” importa muito, porque determinará se os bancos emprestarão em padrões baratos, se aumentarão a originação de hipotecas, se estimularão o crédito para aplicações paralelas, e se darão conta do sonho de [Ben] Bernanke de inflar uma nova bolha imobiliária. É isso o que está em jogo. A definição de hipoteca qualificada pela Agência de Proteção Financeira ao Consumidor pode implicar um profundo impacto na direção da economia, então tem muita coisa em jogo, aqui.

Infelizmente, parece que Cordray tem cedido em todos os aspectos, o que significa que poderemos ver, em breve, um aumento da atividade econômica habitacional, à medida que os bancos dispuserem dos 40 bilhões de dólares mensais jogados no Mercado como subsídios do FED para fazer a coisa funcionar e emprestar loucamente, de novo.

Não parece que estamos cometendo os mesmos erros, mais uma vez?

NOTA
[1] Terceira rodada de “Quantitative Easing”, lançado pelo FED. É um programa que visa a, ao menos nominalmente, injetar dinheiro no mercado para prover o fluxo de crédito, lançado há poucos dias, pelo atual presidente do FED, Ben Bernanke.

Tradução: Katarina Peixoto

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Competitividade, símbolo dos paradoxos da globalização

A palavra “competitividade” figura em todas as bocas e já não se restringe as empresas. Agora cidades, regiões e até mesmo as nações devem concentrar suas energias nesse objetivo. Com esse fim, nossos governantes são convidados a se inspirar nas teorias de administração desenvolvidas pelas escolas de comércio dos EUA
por Gilles Ardinat no LE MONDE -BRASIL

Singular unanimidade. Diante do anúncio da demissão de 8 mil funcionários da Peugeot em 12 de julho de 2012, Jean-François Copé, secretário-geral da União por um Movimento Popular (UMP), identificou uma “prioridade absoluta”: “a competitividade de nossa indústria”. Momentos antes, o ex-ministro do Trabalho Xavier Bertrand observava: “Não é apenas uma questão de quantidade, mas também de custo de trabalho e competitividade”.1 Outro argumento retomado no mesmo dia pelo senador e ex-primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin apelava para um “choque de competitividade”, a única forma de aquecer a economia francesa, segundo ele.
Assim ecoava o perfeito coro de tenores formado pelos dirigentes da UMP e políticos dos salões dos palácios do Eliseu e de Matignon. O presidente François Hollande identificou a competitividade como o principal eixo de trabalho. E, 48 horas antes, o primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault havia definido um objetivo fundamental para a nação: “Melhorar a competitividade de nossas empresas”.
Da estratégia de Lisboa, que em 2000 definiu um “novo objetivo” para a União Europeia (“transformar a economia do conhecimento na economia mais competitiva e dinâmica do mundo”), aos “acordos de competitividade e emprego” lançados pelo presidente Nicolas Sarkozy no fim de seu mandato; das injunções para a “competitividade fiscal” do patronato britânico aos planos de “competitividade industrial” de seu homólogo espanhol, a palavra “competitividade” figura em todas as bocas e já não se restringe ao meio empresarial. A partir de agora, cidades, regiões e até mesmo as nações devem concentrar suas energias nesse objetivo prioritário. Com esse fim, nossos magistrados e governantes são convidados a se inspirar nas teorias de administração desenvolvidas pelas escolas de comércio norte-americanas e colocar em prática seus conceitos:2 controle de custos de produção (“competitividade-custo”), benchmarking(os países são comparados e classificados como empresas em um meio concorrencial), marketing territorial (os territórios devem “vender-se”)3 e pesquisa de financiamento (atração de capitais). Ao passo que o uso dessa caixa de ferramentas aumenta, a competitividade se impõe como o novo padrão de performance dos territórios na globalização. Mas como ela é medida?
Em sentido amplo, a competitividade designa a capacidade de enfrentar com êxito a concorrência. Aplicada aos territórios, essa noção mede o nível de inserção na geografia econômica mundial. Contudo, basta consultar obras e artigos – abundantes – consagrados ao tema para identificar um primeiro paradoxo: apesar do entusiasmo que suscita, esse conceito se revela particularmente frágil no âmbito científico. Isso acontece porque transpõe uma noção microeconômica (a competitividade de produtos e empresas) à esfera política (a competitividade de territórios). Essa analogia é denunciada pelo economista Paul Krugman, agraciado em 2008 pelo Banco Central da Suécia com o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel: “A competitividade é uma palavra vazia de sentido até o momento em que é aplicada às economias nacionais. A obsessão pela competitividade é, ao mesmo tempo, falsa e perigosa”.4
Numerosos especialistas tentaram remediar essa carência construindo uma definição mais consensual para o termo, como a do economista austríaco Karl Aiginger, para quem esse conceito descreve cada vez mais uma “aptidão para gerar bem-estar” no meio concorrencial. Ele indica que “o salário e o emprego são gerados em processos nos quais a rivalidade e a performance relativa desempenham um papel”.5 Essa concepção, aplicada ao cenário atual, supõe que a concorrência generalizada entre territórios seja compatível com o melhoramento do nível de vida.
Ainda assim, permanece a questão: é possível considerar territórios e empresas como instituições de mesma natureza? Um território, espaço apropriado e delimitado por uma fronteira, oferece a um povo suporte físico, assim como boa parte de suas referências culturais e políticas. Ele não se reduz a dados macroeconômicos: as notas (papel das agências de risco), as taxas (inflação, juros, desemprego) ou os salários (comerciais, orçamentários) refletem apenas um aspecto – superficial e material – da nação. Contrariamente a uma empresa, o objetivo maior de um território não é lucrar. Sua ação se inscreve no tempo longo da história, não no imediatismo dos mercados. Enfim, uma nação não faz balanços nem pode ser liquidada.
É sobre essa assimilação, contudo, que se constrói a teoria da competitividade, um dos pilares da globalização. Aplicada aos territórios, essa noção marca uma nova etapa da “mercantilização do mundo”, porque subentende que existe um “mercado de territórios” em que as empresas podem escolher suas bases a partir do jogo da concorrência. Em um mundo onde tudo, ou quase tudo, pode ser cotizado na Bolsa (direitos de poluir, títulos de dívidas, matérias-primas), a competitividade faz as vezes de bússola para os investidores ao avaliar a suposta performance de um território.
Detenhamo-nos às declarações oficiais: alimentar a competitividade estimularia o emprego, a produtividade e o nível de vida. Segundo os especialistas delegados pela Comissão Europeia, “a concorrência é aliada, e não inimiga, do diálogo social”.6 A globalização ofereceria ao Ocidente a possibilidade de se livrar das atividades manufatureiras e da fabricação de produtos de pouco valor agregado em favor de empregos altamente qualificados e mais bem remunerados. Em resumo, uma operação vantajosa para todas as partes: de um lado, os países industrializados se beneficiariam com a especialização de serviços e da alta tecnologia (“competitividade estrutural”, que depende da capacidade de inovação e exploração da propriedade intelectual); do outro, o Terceiro Mundo sairia da pobreza graças aos deslocamentos de empresas para seus territórios (guiados pela “competitividade-preço”, ou seja, pela diminuição dos preços dos produtos em função dos baixos salários, da desvalorização da moeda e do crédito com juros baixos).
Esse cenário – que certos “países cobaias”, considerados simplesmente territórios low cost, não considerariam muito vantajoso – corresponde à realidade? Nenhuma economia, por mais sofisticada que seja, pode se emancipar dos problemas de custos. A Alemanha, muito usada como exemplo, é um país de forte tradição industrial. No entanto, aumentou sua competitividade por meio da estagnação salarial e de um imposto sobre o consumo considerado “social” (uma redução das contribuições patronais compensadas pelo aumento das taxas sobre o consumo de bens duráveis). Essas medidas unilaterais coincidem com a decolagem de seus excedentes comerciais. Além disso, apesar dos mitos sobre o atraso insuperável, os países emergentes se mostram cada vez mais competitivos pelas inovações em filões importantes do mercado (informática na Índia, energias renováveis na China).
Não seria ilusório, então, dividir o mundo em países de competitividade “estrutural” e países de “competitividade-preço”, condenados a ser apenas o lado mais fraco da globalização? O relatório Blanc de 2004,7 que inspirou a política francesa dos polos de competitividade, afirmava que, “para retomar uma vantagem significativa, a economia deve escolher entre alinhar-se ao modelo social asiático ou tomar a dianteira na inovação”. Com base nessa visão binária, os dirigentes da zona atlântica do euro retificaram os deslocamentos das últimas décadas. E, em seus discursos, raramente figurava a ideia de repatriar os milhões de empregos perdidos no setor têxtil, siderúrgico ou na indústria de brinquedos. Os países cuja produção se respaldou no Estado seriam condenados por “falência econômica”, teriam de reimportar esses produtos e se especializar em serviços e pesquisa.
Mas a estratégia da competitividade estrutural não seria outra forma de designar a renúncia política? Para além da frivolidade do “todos ganham” e da promessa de melhorar quantitativa e qualitativamente o emprego, em geral se trata da imposição de medidas impopulares: aumento de imposto, arrocho salarial, austeridade fiscal. Assim, foi em nome da competitividade que a União Europeia e o FMI exigiram a redução dos salários na Grécia.8 Menos performático que seus vizinhos, o país deveria baixar significativamente a remuneração do trabalho, enquanto os planos de salvamento garantiriam provisoriamente a remuneração do capital, ou seja, o pagamento dos juros ao sistema financeiro. Nesse sentido, a competitividade mascara o que, em realidade, parece um dumping generalizado.
Na década de 1980, a expressão “dumping monetário” foi abandonada (em teoria, denunciada pelo FMI) para dar lugar ao termo “desvalorização competitiva” – operação que consiste em manter o câmbio de uma moeda artificialmente baixo para favorecer as exportações. O termo dumping conservava uma característica pejorativa, razão pela qual foi substituído por “competitividade”, suficientemente respeitável para autorizar um governo a tomar medidas antissociais sem ser estigmatizado. Em resumo, essa palavra permite formular de maneira politicamente aceitável a imposição de se adaptar à concorrência, estratégia que a população não necessariamente escolheu, mas que é um dos pilares da globalização neoliberal.
Promessa de prosperidade que desemboca em políticas de dumping: esse discurso paradoxal de duplo sentido repousa sobre o dogma da concorrência entre sistemas produtivos. Se a ideia de uma “concorrência livre e perfeita” guiou diversas leis antitruste e antidumping,9 sua transposição aos territórios apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar, não existe nenhuma autoridade de regulação confiável para a concorrência entre nações. Nem a Organização Mundial do Comércio (OMC) nem a Organização Internacional do Trabalho (OIT) parecem estar em condições de regulamentar os diferentes dumpings. Assim, a China pode acumular livremente dumping social (baixos salários), ambiental (livre poluição pelas indústrias), monetário (desvalorização deliberada do yuan), regulamentário (flexibilidade das leis) e fiscal (restrições nos serviços sociais estatais e multiplicação de zonas isentas de impostos). A lei do mercado, ao ser aplicada aos territórios, se revela fundamentalmente distorcida.
O discurso sobre a competitividade tenta mascarar esse panorama com a correção das disparidades entre os diferentes locais de produção. Esses esforços parecem irrisórios quando as abismais diferenças de custos são levadas em conta: o bloqueio dos salários no Ocidente, por exemplo, permite realmente que o salário dos trabalhadores franceses seja comparado ao de seus homólogos vietnamitas? Para cumprirem esse objetivo oficial (“ganhar a batalha da competitividade”), essas políticas respondem às tentativas do setor empresarial de reduzir os custos do trabalho. Surpreendente coincidência, a busca pela competitividade, pouco contundente em sua luta contra os deslocamentos de indústrias, constituiria, assim, um álibi cômodo para garantir ou aumentar a remuneração do capital. Nesse sentido, evocar os termos “território” ou “nação” constitui um artifício retórico, porque os benefícios não são coletivos (noção de interesse geral ou nacional), e sim categorizados (aumento do lucro de alguns).
Por outro lado, a concorrência frontal dos sistemas produtivos gera um efeito depressivo inerente sobre os salários, a arrecadação de impostos e a proteção social – todos eles com tendência ao reajuste para baixo. Esse fenômeno não prejudica apenas os assalariados (perda do poder de compra) e os Estados (redução da receita fiscal): também reduz a demanda dos mercados. Sem mencionar que, se os países decidissem simultaneamente impor suas demandas, precipitariam uma grave depressão. Analogicamente, no “mercado dos territórios” os excedentes comerciais não poderiam ser retirados todos de uma vez: é preciso necessariamente países no vermelho para que outros estejam no verde.10 A obsessão de uma “convergência de competitividades” segundo o modelo alemão, portanto, não passa de uma fábula.
A partir do momento em que se constata a fragilidade teórica do discurso sobre a competitividade – porque conduz a diagnósticos enganosos e ao dumping dissimulado –, como explicar seu enaltecimento por parte de dirigentes políticos? Talvez porque essa noção responda às exigências das empresas e dos mercados internacionais. Sem meios de controlar uns aos outros, os eleitos se adaptam às suas exigências. O objetivo da competitividade mascara a perda de autoridade e de soberania dos Estados-nação, e permite eliminar da ação política qualquer possibilidade de proteção social. Enquanto isso, o território – tradicionalmente considerado uma barreira contra as ameaças exteriores (sejam elas militares ou comerciais) com suas fronteiras e instituições políticas – perde gradualmente essa função protetora com o enfraquecimento das barreiras aduaneiras e prerrogativas do Estado.

Gilles Ardinat
Geógrafo


Ilustração: Alves


 
1  Agência France Presse (AFP), 12 jul. 2012.
2  Michael Porter, L’avantage concurrentiel des nations[A vantagem concorrencial das nações], Inter-Editions, Paris, 1993.
3  Ler François Cusset, “La foire aux fiefs” [A feira nos feudos], Le Monde Diplomatique, maio 2007.
4  Paul Krugman, “Competitiveness: a dangerous obsession” [Competitividade: uma perigosa obsessão], Foreign Affairs, Tampa, v.73, n.2, mar.-abr. 1994; “The competition myth” [O mito da competitividade], The New York Times, 23 jan. 2011.
5  Aiginger Karl, “From a dangerous obsession to a welfare creative ability with positive externalities” [De uma perigosa obsessão à habilidade criativa para gerar bem-estar com externalidades positivas], Journal of Industry, Competition and Trade, v.6, n.2, jun. 2006.
6  Alexis Jacquemin e Lucio Pench, Pour une compétitivité européenne. Rapport du groupe consultatif sur la compétitivité [Por uma competitividade europeia. Relatório do grupo de consultoria sobre a competitividade], De Boeck, Bruxelas, 1997.
7  Christian Blanc, “Pour un écosystème de la croissance. Rapport au premier ministre” [Por um ecossistema do crescimento. Relatório ao primeiro-ministro], La Documentation Française, Paris, 2004.
8  Ler Anne Dufresne, “Le consensus de Berlin” [O consenso de Berlim], Le Monde Diplomatique, fev. 2012.
9  Os Estados Unidos votaram, por exemplo, no Ato Antitruste de Sherman (1890) e o no Ato Antitruste de Clayton (1914), para melhorar o funcionamento do mercado.
10            Ler Till van Treeck, “Victoire à la Pyrrhus pour l’économie allemande” [Vitória de Pirro para a economia alemã], Le Monde Diplomatique, set. 2010.