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sábado, 26 de abril de 2008

A doença do glúten


Drauzio Varella

Há pessoas que fazem via-sacra pelos consultórios sem que os médicos atinem com o mal que as aflige. Refiro-me às portadoras de doenças mais raras, causadoras de sintomas comuns a muitas patologias, caso típico da doença celíaca, que acomete cerca de 1% das crianças e adultos.

As manifestações variam de acordo com a faixa etária. Nas crianças pequenas: diarréia, distensão abdominal e problemas de desenvolvimento. Vômitos, irritabilidade, falta de apetite e mesmo prisão de ventre podem fazer parte do quadro. Na puberdade e adolescência: anemia, baixa estatura e sintomas neurológicos. Nos adultos, a apresentação clássica é de crises de diarréia, acompanhadas de dor e desconforto abdominal. A diarréia, no entanto, não é o sintoma dominante na metade dos casos. Ao lado dessas manifestações, outras mais silenciosas: anemia por deficiência de ferro, osteoporose, emagrecimento, dermatites, redução dos níveis de cálcio, alterações hepáticas, sintomas neurológicos e prisão de ventre. Para cada caso em homens, existem dois ou três em mulheres.

É uma das poucas doenças auto-imunes em que o agente precipitante é conhecido: o glúten. Glúten é uma proteína existente no trigo, centeio e cevada, digerida com dificuldade na parte alta do trato gastrointestinal. Um de seus componentes, a gliadina, contém a maior parte dos componentes nocivos.

Em pessoas predispostas, moléculas não digeridas de gliadina, em contato com as camadas mais internas da mucosa intestinal, disparam uma reação imunológica no intestino delgado, causadora do processo inflamatório crônico responsável pelos sintomas.

A doença não se desenvolve em quem não seja portador do gene HLA-DQ2 ou HLA-DQ8, condição necessária, mas não suficiente, para a sua instalação.

A amamentação protege a criança predisposta. A introdução de alimentos ricos em glúten antes dos 4 meses de idade aumenta o risco. Por romper a integridade da mucosa, a ocorrência de infecções intestinais, como aquelas causadas pelos rotavírus, também aumenta o risco na infância.

É óbvio que o primeiro passo para chegar ao diagnóstico é o médico lembrar que a doença existe.

O diagnóstico requer dois procedimentos: a realização de endoscopia, com biópsia do duodeno para identificar a presença do infiltrado inflamatório característico, e a adoção de uma dieta livre de glúten para verificar se há melhora da sintomatologia. Nos casos em que o resultado da biópsia é duvidoso, exames de sangue para detectar anticorpos antigliadina e os alelos HLA-DQ2 e HLA-DQ8 podem ser úteis.

Em parte significativa dos pacientes, a enfermidade é descoberta por acaso, através da realização de endoscopia por suspeita de úlcera duodenal ou refluxo gastroesofágico. Em outros, durante a investigação de deficiências de vitamina B12, ácido fólico, ferro, cálcio e de quadros de anemia e de osteoporose, condições freqüentes na doença celíaca. O tratamento consiste na eliminação definitiva de alimentos que contenham glúten (trigo, cevada e centeio). Essa medida provoca melhora clínica em dias ou semanas, mas as alterações visíveis nas biópsias de delgado podem persistir meses ou anos. É muito importante corrigir as deficiências de vitaminas e sais minerais e avaliar a densidade dos ossos, a presença de anemia e de déficits de crescimento.

A aderência disciplinada a dietas com restrição de glúten não é tarefa simples, porque ele está presente na maioria dos alimentos industrializados. Os que não o contêm são mais caros e difíceis de achar. Países como Holanda, Itália, Inglaterra, Suécia e Finlândia subsidiam sua produção.

Há anos, as associações defensoras dos direitos dos portadores de doença celíaca cobram das autoridades rigor no cumprimento da lei que obriga os fabricantes a estampar no rótulo dos alimentos a presença de glúten. Essa medida, ridiculamente simples, evitaria o sofrimento de milhares de pessoas.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

De Jéssia para Isabella





Roberto Malvezzi

Oi, Isabella. Fiquei sabendo de sua morte. Fiquei imaginando como alguém pode pegar uma criança como você, maltratar, asfixiar e depois ainda atirar pela janela do apartamento. Nunca consegui entender essa crueldade humana. Acho até que nem humanos são. Por isso, acho até normal que tanta gente se interesse pela sua morte, embora grande parte goste mesmo de sensacionalismo ou apenas de ganhar audiência em seus programas.

Queria lhe dizer que eu também já morri. Um dia, no assentamento que eu morava, tive que buscar água no canal de irrigação para o pessoal lá de casa. Era sempre assim. A gente não tinha água no assentamento e eu tinha que roubar uns 20 litros por dia para nossa família beber. Teve uns tempos que fui sem terra. No assentamento, eu e minha família éramos sem água. Então, um dia, quando eu estava roubando um balde de água no canal de quinze metros de altura, caí e morri.

Gente como eu, os sem terrinha, não tem muito espaço na mídia. Quem sente nossa falta são apenas nossos pais e nossos amigos. É só no coração deles que deixamos algum vazio. De resto, viramos estatísticas. Sabe, a gente entra numa lista, mas ninguém conhece o rosto que está por detrás daquele número. São muitos que morrem aí por essas beiras de estrada, debaixo da lona preta, seja por um motivo ou por outro. Quando acontecem chacinas, as crianças também são mortas, assim como jovens e adultos. Mas a gente só busca ter um pedaço de terra, ter uma casa, poder estudar, ter os bens que todo mundo tem, como uma TV, uma geladeira e até mesmo um celular. Queremos também um Brasil justo e decente. Nem vamos falar dos adolescentes e crianças que morrem por arma de fogo, no tráfico, ou aqueles que morreram ainda na infância de dengue, fome, sede e outras misérias. O país onde nascemos ainda não é um lugar para gente. Nós duas sabemos bem.

Pois é, agora estamos as duas do lado de cá. Já não temos distância, tempo, classe social, nem preconceitos a nos separar. Vamos nos encontrar e sair brincando por aí. O infinito é nosso limite.

Roberto Malvezzi é coordenador da CPT.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

VALE A PENA REPOSTAR...

O Analfabeto midiático(Marcelo Salles)

(homenagem a Bertolt Brecht)

O pior analfabeto é o analfabeto midiático. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos midiáticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das construções midiáticas. O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia discutir mídia. Não sabe o imbecil que da sua ignorância midiática nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o jornalista vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

terça-feira, 25 de março de 2008

Em liquidação, a auto-estima

No Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, vale notar que as crianças tornaram-se o público-alvo preferido da publicidade. Ainda em formação, são bombardeadas com a idéia de que os prazeres se compram — o que prolonga a imaturidade, acentua frustrações e produz, no futuro, adultos infantilizados

Maria Helena Masquetti

"Pode-se evitar os raios solares com as persianas, e combater o gelo com um bom fogo na lareira; mas a umidade penetra furtivamente em nós enquanto dormimos; ela é silenciosa, imperceptível, ubíqua". Esta descrição de Virgínia Woolf serve bem como ilustração para a penetração sorrateira da comunicação mercadológica em nossas vidas. Neste Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, 15 de março, esta questão chama ainda mais nossa atenção quando nos lembramos do modo como as crianças foram eleitas à categoria de público alvo-preferido das estratégias de vendas. Focando em primeiro lugar crianças e adolescentes, a publicidade atinge justamente seus pontos vulneráveis — ou seja, o fato de a criança ser propensa a crer em tudo o que ouve e vê.

Elevado à categoria de necessidade, por mensagens dirigidas muito mais à emoção do que à razão, cada produto parece dizer, tal como no bordão cômico, "Seus problemas acabaram!". Por não estarem ainda maduras física e mentalmente, é natural das crianças tentar evitar o desconforto das frustrações inerentes à vida civilizada. Em contrapartida, deve ser natural dos adultos a capacidade de ajudar a criança a governar seus impulsos e suportar o vazio de não poder ter tudo, ensinando a ela que o sentido de existir é exatamente participar da vida como ela é e não do modo artificial como a mídia tenta reinventá-la.

"Prazer de dirigir", "prazer de morar", "prazer de comer". Com tanto prazer à venda, tornam-se cada vez mais insuportáveis as frustrações naturais da condição humana. Não se pode ganhar sem trégua, assim como não se pode esperar que faça somente verão o ano todo. Neste mundo do consumo, estamos sempre tentando chegar "lá". Lá onde, afinal? Consumir sem limites e perceber, no minuto seguinte, que o vazio continua igual ou pior, é tão desolador quanto ver reduzida a um padrão universal a singularidade de cada criança. Com suas mensagens dúbias, a publicidade obriga fingindo não obrigar, e exclui justamente ao não diferenciar os que podem esbanjar dos que sequer podem comer.

Embora as crianças não possam praticar os atos da vida civil, como trabalhar ou ganhar dinheiro, a comunicação mercadológica contradiz essa disposição, ao abordá-las como consumidoras

"Para você que já tem idade para brilhar", promete a nova linha de cosméticos. Em que moral e ética baseia-se o anúncio, veiculado recentemente, em revista dirigida às pré-adolescentes, para afirmar qual a idade certa para uma criança brilhar? Antes dessa idade elas eram o que, então? As crianças, quando livres da compulsão consumista, limitam, isto sim, o brilho as vendas. É assim que dia-a-dia deixamo-nos penetrar pela imposição vertical de conceitos que nos dizem o que querem e não ouvem sequer nossas perguntas mais simples: "Como assim?", "Por quê?", "Quem disse?". Lembrando as palavras do filósofo e psicólogo Pedrinho Guareschi: "A consciência é o quanto de resposta alguém consegue oferecer a uma pergunta e, diante da publicidade, a criança não tem o recurso necessário para sequer fazer a pergunta".

Se, para nós, adultos, dotados de juízo crítico, o poder material se confunde com a realização íntima, o que pensar dos pequenos diante da manobra astuta de vendas que, no lugar da qualidade do tênis, oferece como atributo o sucesso na carreira esportista? Esse fato faz com que a luta pelos direitos do consumidor se estenda para além dos direitos à segurança, qualidade, opção, informação, atenção e direito de escolha. Mesmo que todos esses requisitos fossem cumpridos ao pé da lei pelo mercado, não estariam contemplando o problema maior que é o fato da criança ser elevada à categoria de consumidor sem ter condições físicas ou mentais para isso, ou seja, quando ela ainda está construindo sua cidadania.

Ninguém duvida que uma criança não pode comprar um apartamento ou carro. Embora as crianças não possam praticar os atos da vida civil, entre eles trabalhar, ganhar dinheiro e adquirir produtos, a comunicação mercadológica contradiz essa disposição legal ao abordar a criança como consumidora. Jean Baudrillard denuncia esta contradição numa cultura que enquanto protege as crianças de um lado as desprotege do outro: "A criança é transformada pela mídia no modelo ideal de consumidor. Se, por um lado, ela não é considerada socialmente como um ser completo, por outro, na perspectiva de sua inserção na cultura, ela é plena para o exercício do consumo".

Precisamos testar em nós mesmos o bem-estar que um não pode causar. Um bom começo é parar de comprar o prazer pré-determinado e dar uma chance ao gosto de escolher sem ser escolhido

Do brincar espontâneo de nossas crianças já quase não temos registro. Uma volta, volta e meia e plim!: a infância desapareceu. Aos seis anos ou menos, o cavalinho e a pipa já são brinquedos de "nerd". E por falta de pilhas, o pião não pode mais rodopiar. Este vampirismo moderno visa implantar nas crianças a vida falsa do consumismo, sugando-lhes, em troca, a seiva do prazer de existir. Precisamos protegê-las disso, antes que as previsões da psicóloga e autora Alice Miller, colhidas ao longo de sua experiência clínica, possam se confirmar para sempre: "Enquanto não nos sensibilizarmos pelo sofrimento das crianças, esse exercício de poder continuará despercebido, tomado como irrelevante e totalmente trivializado, por tratar-se ’apenas de crianças’. Em vinte anos, essas crianças se tornarão adultos que farão seus filhos pagar a conta".

Tomando para si o gosto infantil do fazer de conta, a publicidade finge querer o melhor para as crianças com toda sorte de apelos em busca de sua atenção. Assim, o bombardeio publicitário não cessa no admirável mundo da gratificação imediata e do nem parece que é - hospitais que nem parecem hospitais, bancos que nem parecem bancos, roupinhas de bebê que nem parecem roupas de bebê e mães que nem parecem que acabaram de dar a luz. Tudo para nos vender produtos de uma realidade construída sobre a base arenosa de um mundo só de prazer. Com mensagens dirigidas muito mais à emoção que à razão, cada produto parece ser a resposta exata aos nossos mais profundos anseios. Nunca os adultos foram tão tratados como crianças e nunca as crianças foram tão promovidas precocemente a adultos.

Procurar evitar a dor ou os aborrecimentos faz parte das defesas humanas. Porém, não é bom que tenhamos êxito nisso constantemente. Suportar o vazio da ausência de alguém ou de um objeto desejado, ao mesmo tempo que dói, nos impede de mascarar a dor e, sobretudo, ativa os recursos internos de que dispomos para sobreviver a ela. Nossa sanidade mental depende disso. É uma lástima ver tanta gente – principalmente crianças e jovens – fugindo, via consumo, para o mundo do alívio ilusório. Quanto mais destemidos e protetores forem os ’nãos’ que dissermos às nossas crianças, maior a sensação de segurança que elas introjetarão. Antes, porém, de dizermos o ’não’, precisamos testar em nós mesmos o bem-estar que ele pode causar. Um bom começo pode ser parar de comprar todo esse prazer padrão pré-determinado e dar uma chance ao gosto de escolher sem ser escolhido. E, no lugar do zapear de canais, pôr para tocar a música que, talvez agora, possa fazer mais sentido do que nos fazia antes: "Ou feia ou bonita, ninguém acredita na vida real".

sexta-feira, 21 de março de 2008

PASSEIO SOCRÁTICO

Por Frei Beto


Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no
Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na
pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha,
feijão, frutas e hortaliças.
"Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse.
O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo:
refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e
não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor
simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que
se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável.
É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais -
manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e
a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido
litúrgico.
A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido
de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa
coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e,
sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais.
Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano
comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.
Marx já havia se dado conta do peso da geladeira.
Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o
valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos
bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós".
O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores,
somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens
simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social.
Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da
pobreza e à cultura da exclusão.
Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas,
tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa
interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígine cultua
uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de
desdém.
Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um vinho guardado na
adega, uma jóia?
Assim como um objeto se associa ao seu dono nas comunidades tribais, na
sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife.
Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro,
e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa
pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um
famoso estilista a gata borralheira transforma-se em Cinderela...
Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura
neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre
como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos
ricos, do poder. Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos
objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E
se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa
frustração, depressão, infelicidade.
Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é
alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também
objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas
não é ela: bens, cifrões, cargos etc.
Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são
desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.
Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o
vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de
vizinhança, como ainda ocorre na feira.
Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola
abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta
de convívio é compensada pelo consumo supérfluo.
"Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo
a ordem que a destrói."
E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da
cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e
contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam
indagando se necessito algo.
"Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo.
Olham-me intrigados.
Então explico:
Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo.
Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas.
E, assediado por vendedores como vocês, respondia:
"Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser
feliz".
O "ethos" (a convivência humana e a responsabilidade social, eis o nosso porto.
A "paidéia", com este horizonte, é a caminhada educacional - escolar e a social -
a nos fazer cidadãos,profissionais e pessoas, em construção permanente.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Anjos das ruas


Pedro Salgueiro
Especial para O POVO
Ao contar uma história de solidariedade, o escritor Pedro Salgueiro abre o questionamento: se uma pessoa de boa vontade consegue salvar uma vida, o que não fariam os poderes estaduais, municipais e federais se tivessem um mínimo de boa vontade?
Silvio Tadeu parecia fazer parte da paisagem de Fortaleza (Foto: Sebastião Bisneto)
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Silvio Tadeu parecia fazer parte da paisagem de Fortaleza (Foto: Sebastião Bisneto)

Faz uns dez anos que perambula pelas ruas de nossa sonsa loirinha descabelada pelo sol um negro alto, cabelos fartos, sujo, roupas em farrapos, às vezes vestida sobre outra já em tiras.
Distingue-se pelo porte altivo, cabeça levantada e pelo quase silêncio que o acompanha: poucos escutam as palavras que pronuncia baixinho, não raro esbraveja com alguém imaginário ou faz estranhos cálculos matemáticos.

Não pede esmola, mas lhe dão dinheiro, roupa e comida; quase sempre redistribui ou deposita as cédulas amassadas e rabiscadas com números em baixo de cones, desses usados em sinalizações de trânsito, e de papelões de outros moradores de rua, nada guarda para o dia seguinte. Come pouquíssimo e toma café e fuma em abundância (que lhe dão sem ele ao menos pedir).

De dia freqüenta os logradouros no centro: Praça Murilo Borges, rua Assunção, praça Coração de Jesus e uma calçada de estacionamento na Duque de Caxias, onde passa a maior parte da tarde acocorado em silêncio; de noitinha vai em direção à Praia de Iracema até a avenida Aquidabã, lá fica também acocorado em uma calçada em frente a um posto de gasolina. Não se sabe onde dorme, como faz suas necessidades fisiológicas, muito menos o que pensa e balbucia em quase preces noturnas.

Cumpre há uma década o mesmo ritual de sempre, dizem que ele faz as mesmas coisas, nas mesmíssimas horas (até para atravessar as ruas é sempre em locais determinados), o exato itinerário, quer faça chuva ou sol: o mesmo porte altivo, o olhar contemplativo de superioridade e paz. Não se apressa nunca, nem altera o semblante; nem se importa se ao seu lado passa uma bela jovem (que quase sempre aperta a bolsa e desce a calçada) ou um outro morador de rua.

Já apareceu em diversos ensaios fotográficos sobre o centro da cidade e foi até personagem de crônica de Airton Monte: faz parte, definitivamente, da paisagem dessa Fortaleza de Todos os Perdidos-Anjos.

Pois bem, acho que cumpriria este seu eterno ritual de perambular pelas calçadas, de se esgueirar pelos becos, de se acocorar pelas calçadas, até o final dos tempos, não fosse a alma enorme e boa do meu colega de repartição (e ex-baixista da banda de regue Rebel Lions) Jânio Alcântara, que puxou conversa, com uma paciência de Santo, com nosso personagem: descobriu o nome de sua cidade natal - Paranapanema, São Paulo) e o nome da mãe, Jandira Aparecida da Cruz (completo e com seu nome de solteira e de casada).

O novo amigo foi a Internet pesquisar e conseguiu falar por telefone com a mãe, uma senhora forte e saudável morando no interior de São Paulo; em poucos dias se encontrava em nossa cidade a mãezona (que há dez anos não sabia o paradeiro do filho) e a irmã mais nova, Sidelça, uma bela jovem parecidíssima com o nosso herói-de-rua.Jânio não ficou por aí, conseguiu internamento e tratamento dignos para o agora ex-morador das ruas sujas de nossa meretríssima loirinha descamisada pelo sol.

Moral de nosso conto de fada: se uma pessoa de boa vontade (com a ajuda de outros anjos bons) consegue salvar uma vida, o que não fariam os poderes estaduais, municipais e federais se tivessem um mínimo de boa vontade, competência e solidariedade.

P.S.: Para não deixar o leitor curioso com o destino de Silvio Tadeu da Cruz, ele está internado, limpo e bem vestido. A família o espera para levá-lo de volta, pois sua avó de 99 anos de idade há dez anos não se cansa de perguntar toda noite por ele. Duas de suas irmãs moram na Europa, os outros vivem bem em Paranapanema (SP). A mãe diz que seu descontrole começou quando ele presenciou a morte, em acidente de automóvel, do irmão de que mais gostava, depois agravado pela dificuldade em pagar a faculdade de engenharia que cursava já no 2º ano, após ser despedido do banco em que trabalhava. Diz-me (agora sua belíssima irmã) que ele era o mais inteligente da família, também o mais vaidoso...

Pedro Salgueiro é escritr. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.


sábado, 1 de março de 2008

Gordura do bem


Alguns tipos de gordura, como ômega-3 e ômega-6, ajudam a fortalecer o sistema imunológico, a manter uma pele saudável, e podem fazer parte
de uma dieta equilibrada


Por Soraia Nigro




Saudável

Consumo freqüente de alguns peixes diminui o risco de doenças degenerativas

Aprende-se cedo que gordura não faz bem à saúde e deve ser deixada de lado, por exemplo, quando se saboreiam picanha, frango assado, ou salgadinhos. Pouca gente sabe, porém, que nem todos os tipos de gordura fazem mal. Ao contrário, os ácidos graxos, ômega-3 e ômega-6, são um tipo de gordura que o organismo não consegue sintetizar e sem o qual não funciona adequadamente. Por essa razão são considerados essenciais por médicos e devem ser incluídos numa dieta alimentar saudável.

A maioria dos alimentos possui mais de um tipo de gordura. Alguns, como nozes, têm ótima combinação de ômega-6 e ômega-3. O ômega-6 também pode ser encontrado em óleos vegetais e em algumas sementes, como a de girassol e a soja. Mas há os alimentos que contêm combinação de gordura prejudicial à saúde, transaturada e saturada, como a batata frita e as carnes gordas, que devem ser evitadas.

O ômega-3 está presente em peixes marinhos, como salmão, bacalhau, sardinha, truta, e em menores concentrações na castanha e no óleo de canola. Seu consumo freqüente diminui o risco de doenças degenerativas e retarda o envelhecimento, entre inúmeros outros benefícios.

De acordo com Paulo Olzon Monteiro, chefe da disciplina de Clínica Médica da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), as pessoas que mantêm alimentação balanceada e consumo regular de peixes costumam ter menos doenças reumatológicas, cardíacas e degenerativas, como Parkinson, Alzheimer e câncer. “Os orientais, que por tradição consomem peixe in natura, são o povo com maior longevidade no mundo, e em geral envelhecem com qualidade de vida”, exemplifica. A ingestão de ômega-3 ideal é de uma porção para cada cinco, no máximo, de ômega-6. A maioria da população consome uma porção de ômega-3 para cada 20 de ômega-6.

Para se ter um parâmetro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o consumo total de gordura seja entre 20% e 30% do total de calorias ingeridas. Assim, se um indivíduo ingere 2 mil quilocalorias por dia, 600 devem ser provenientes de gordura. O ômega-3 médio diário deve estar contido em cerca de 3% (18 kcal, ou 2 gramas).

O médico Paulo Giorelli, integrante da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), lembra que o ômega-3 auxilia ainda na diminuição dos níveis de triglicérides e colesterol total, melhora a circulação sanguínea e aumenta a imunidade. “Além disso, esse ácido graxo é um importante mediador de alergias e processos inflamatórios e deve ser ingerido também por pessoas que se exercitam regularmente, já que aumenta a disposição”, diz o nutrólogo. Ele recomenda o consumo de ômega-3 duas vezes por semana como parte de uma dieta equilibrada, pois se ingerido em excesso pode ser prejudicial à saúde, retardando a coagulação sanguínea.

Faro fino

Gorduras monoinsaturadas Presentes em azeite de oliva, abacate, amendoim. Abaixa o LDL e o colesterol total. Deve corresponder à maior parte de gorduras ingeridas.

Gorduras saturadas Carnes gordas, laticínios e coco. Alguns tipos podem levar ao entupimento das artérias. Limite-as a menos de 10% de sua ingestão de calorias.

Transaturadas Batata frita, margarina e biscoitos amanteigados. Aumenta o colesterol e o risco de doença cardíaca.

Ômega-3 Presente em peixes como atum, anchova, carpa, arenque, salmão, sardinha, bacalhau, entre outros, frutos do mar, óleos vegetais e nozes. Abaixa o nível de triglicérides e do colesterol total. Mas seu consumo exagerado pode retardar a coagulação sanguínea.

Ômega-6 Presente em sementes oleaginosas, óleo de milho, girassol, soja e nozes. Reduz o LDL e o colesterol total, mas se o consumo for alto demais pode baixar o benéfico colesterol HDL. Limite a 10% do total de sua ingestão de calorias.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Montagens fotográficas

Créditos:AhoraeaVez

Ensaio fotográfico do britânico Carl Warner, com cenário feito de alimentos. Chamado de "foodscapes" - paisagens de alimentos -, os cenários sugerem cavernas, florestas, cachoeiras, mares, montanhas, tudo feito com frutas, legumes, queijos e massas.
As fotos são tiradas sobre uma mesa de 1,2 metro de largura por 2,4 metro de comprimento. Warner pretende fazer um livro para promover alimentação saudável para crianças.
Clique nas imagens para ampliar













































quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Recebi por email, mas não tenho certeza se é verdadeiro, vou postar pra ver a repercussão...por favor opinem...

PIONEIRA Há mais de três décadas Clara Brandão criou um composto alimentar que revolucionou a nutrição infantil
A cena foi comovente. O vice-presidente José Alencar preparava-se para plantar uma árvore em Brasília quando foi abordado por uma nissei de 65 anos e 1,60 m de altura. Era manhã da quinta-feira 6. A mulher começou a mostrar fotografias de crianças esqueléticas, brasileiros com silhueta de etíopes, mas que tinham sido recuperadas com uma farinha barata e acessível, batizada de 'multimistura'. Alencar marejou os olhos. Pobre na infância no interior de Minas, o vice não conseguiu soltar uma palavra sequer. Apenas deu um longo e apertado abraço naquela mulher, a pediatra Clara Takaki Brandão. Foi ela quem criou a multimistura, composto de farelos de arroz e trigo, folha de mandioca e sementes de abóbora e gergelim. Foi esta fórmula que, nas últimas três décadas, revolucionou o trabalho da Pastoral da Criança, reduzindo as taxas de mortalidade infantil no País e ajudando o Brasil a cumprir as Metas do Milênio. E o que a pediatra foi pedir ao vicepresidente? Que não deixasse o governo tirar a multimistura da merenda das crianças. Mais do que isso, ela pediu que o composto fosse adotado oficialmente pelo governo. Clara já tinha feito o mesmo pedido ao ministro da Saúde, José Gomes Temporão - mas ele optou pelos compostos das multinacionais, bem mais caros. 'O Temporão disse que não é obrigado a adotar a multimistura', lamenta Clara.
Há duas semanas a energia elétrica da sala de Clara dentro do prédio do Ministério da Saúde foi cortada. Hoje, ela trabalha no escuro. 'Já me avisaram que agora eu estou clandestina dentro do governo', ironiza a pediatra Mas ela nem sempre viveu na escuridão. Prova disso é que, na semana passada, o governo comemorou a redução de 13% nos óbitos de crianças entre os anos de 1999 e 2004 - brasileiros, com a ajuda da Pastoral da Criança, reduto do PT. Os compostos da multimistura têm até 20 vezes mais ferro e vitaminas C e B1 em relação à comida que se distribui nas merendas escolares de municípios que optaram por comprar produtos industrializados. Desde 1973, quando chegou à fórmula do composto, Clara já levou sua multimistura para quase todos os municípios, período em que a multimistura tinha se propagado para todo o País.
Sem contar a economia: 'Fica até 121% mais caro dar o lanche de marca', compara Clara.

Quando ela começou a distribuir a multimistura em Santarém, no Pará, 70% das crianças estavam subnutridas e os agricultores da região usavam o farelo de arroz como adubo para as plantas e como comida para engordar porco. Em 1984, o Unicef constatou aumento de 220% no padrão de crescimento dos subnutridos. Dessa época, Clara guarda o diário de Joice, uma garotinha de dois anos e três meses que não sorria, não andava, não falava. Com a multimistura, um mês depois Joice começou a sorrir e a bater palmas. Hoje, a multimistura é adotada por 15 países. No Brasil só se transformou em política pública em Tocantins.
Clara acredita que enfrenta adversários poderosos . Segundo ela, no governo, a multimistura começou a ser excluída da merenda escolar para abrir espaço para o Mucilon, da Nestlé, e a farinha láctea, cujo mercado é dividido entre a Nestlé e a Procter & Gamble
. 'É uma política genocida substituir a multimistura pela comida industrializada', ataca a pediatra. A coordenadora nacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns, reconhece que a multimistura foi importante para diminuir os índices de desnutrição infantil. 'A multimistura ajudou muito', diz. 'Mas só ela não é capaz de dizimar a anemia; também se deve dar importância ao aleitamento materno.' ISTO É' procurou as autoridades do Ministério da Saúde ao longo de toda a semana, mas nenhuma delas quis se pronunciar. 'O multimistura é um programa que não existe mais', limitou-se a informar a assessoria de imprensa.



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Aline(anfitriã), Tania, Tarso e estêvão

Retornando...

Enfim chegamos das pequenas férias na Praia do Cassino, em Rio Grande-Rs. Ficamos hospedados na belíssima residência da AMIGA Aline Cruz, que como anfitriã foi fantástica(valeu o carinho Aline).Comi bastante camarão e filé de linguado(no cassino custavam R$8,00 e R$12,00 o kilo, respectivamente).Lamentável apenas o vento frio, o tempo chuvoso e a falta de moral e ética(para não dizer semvergonhice mesmo) dos donos de muitos bares da praia que vendiam, às claras, bebidas alcóolicas para menores de idade.Presenciei um caso numa loja de conveniência de um posto de combustível, onde uma menina de 10 anos havia comprado uma caixa de cerveja.Quando questionei a vendedora ela disse que era uma prática normal nessa praia. tentei ligar para o Conselho Tutelar, mas não fui atendido, falei com uma policial da brigada militar que não me deu atenção, depois de mais três tentativas e ameaças de minha parte de que iria chamar a imprensa, o chefe do policiamento dirigiu-se até o posto onde fez apenas uma advertência ao proprietário, mesmo que na entrada do estabelecimento tivesse passado por ele duas menores com latas de cerveja aberta, numa clara intenção de proteger a ganância exploradora de empresários salafrários que não respeitam a vida de menores e suas consequencias do alcoolismo que são evidentes nas estradas gauchas, onde ocorrem muitos acidentes e mortes pelo consumo de álcool. mas enfim, é nova forma de governar de nosso estado, onde Segurança pública, Educação e Saúde não vale um tostão.pena!

Um fato positivo, mas individual meu, depois de assistir aos documentários: A carne é Fraca e Terráqueos, virei vegetariano, não consumindo mais carne.Recomendo a todos que assistam e se preparem para se enojar com a falta de humanidade daqueles que usam os animais para lucrarem, contaminando o meio-ambiente, principalmente os lençóis hidricos, e a nossa saúde corporal pelo excesso de porcarias que ingerimos junto com a carne.

Continuaremos publicando nesse blog tudo que encontrarmos na Net que possibilite a maioria um acesso democrático e socializador à cultura, seja ela de cinema, música, política ou do cotidiano. Repetimos que continuaremos fazendo isso de forma gratuita com a única intenção de fazer um contra ponto à midía manipuladora.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

DIREITO AO DELÍRIO

Eduardo Galeano

Já está nascendo o novo milênio. Não dá para levar muito a sério o assunto: afinal, o ano 2001 dos cristãos é o ano 1421 dos muçulmanos, o 5114 dos maias e o 5761 dos judeus. O novo milênio nasce num 1.º de janeiro por obra e graça de um capricho dos senadores do Império Romano, que um bom dia decidiram quebrar a tradição que mandava celebrar o ano-novo do começo da primavera. E a conta dos anos da era cristã deriva de outro capricho: um bom dia, o papa de Roma decidiu datar o nascimento de Jesus, embora ninguém saiba quando nasceu. O tempo zomba dos limites que lhe atribuímos para crer na fantasia de que nos obedece; mas o mundo inteiro celebra e teme essa fronteira.
Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.
Verdade seja dita, não há quem resista: numa data assim, por arbitrária que seja, qualquer um sente a tentação de perguntar-se como será o tempo que será. E vá-se lá saber como será. Temos uma única certeza: no século 21, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, do milênio passado.
Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível:
O ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das humanas paixões;

Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães;

As pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado e nem olhadas pelo televisor;

O televisor deixará de ser o mais importante membro da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa;

As pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar;

Será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;

Em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar o serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo;

Os economistas não chamarão nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;

Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas;

Os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos;

Os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas;Ninguém acreditará que a solenidade é uma virtude e ninguém levará a sério aquele que não for capaz de deixar de ser sério;

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavaleiro;

Ninguém será considerado herói ou pascácio por fazer o que acha justo em lugar de fazer o que mais lhe convém;

O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se em falência;

A comida não será uma mercadoria e nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos;

Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;

Os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua;

Os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos;

A educação não será privilégio de quem possa pagá-la;

A polícia não será o terror de quem não possa comprá-la;

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro contra ombro;

Uma mulher, negra, será presidente do Brasil, e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru;

Na Argentina as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória;

A Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo;

A Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte";

Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;

Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de tanto esperar e os que se perderam de tanto procurar;

Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo;

A perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como fosse o primeiro.

Eduardo Galeano - De pernas para o ar - A escola do mundo ao avesso
SENTIDO DE HUMOR E DA FESTA

Por Leonardo Boff - Teólogo

Os tempos não são bons. A humanidade é conduzida por líderes na maioria negativos e medíocres. As religiões, quase todas, estão doentes de fundamentalismo, arrogância e dogmatismo, sem excluir setores da Igreja Católica Romana, contaminados pelo pessimismo cultural do atual Papa.

Mesmo assim há ainda lugar para o humor e o sentido da festa? Creio que sim. Apesar dos absurdos existenciais, a maioria das pessoas não deixa de confiar na bondade fundamental da vida. Levanta-se pela manhã, vai ao trabalho, luta pela família, procura viver com um mínimo de decência (tão traída pelos políticos) e aceita enfrentar sacrifícios por valores que realmente contam. O que se esconde por detrás de tais gestos cotidianos? Ai se afirma de forma pré-reflexa e inconsciente: a vida tem sentido; aceitamos morrer, mas a vida é tão boa, como disse, antes de morrer, François Mitterand.

Sociólogos como Peter Berger e Eric Vögelin tem insistido em suas reflexões que o ser humano possui uma tendência inarredável para ordem. Onde quer que ele emirja, cria logo um arranjo existencial com ordens e valores que lhe garantem uma vida minimamente humana e pacífica.

É esta bondade intrínseca da vida que permite a festa e sentido de humor. Através da festa, no sacro e no profano, todas as coisas se reconciliam. Como afirmava Nietzsche, “festejar é poder dizer: sejam bem-vindas todas as coisas”. Pela festa o ser humano rompe o ritmo monótono do cotidiano, faz uma parada para respirar e viver a alegria de estar-juntos, na amizade e na satisfação de comer e de beber. Na festa, o beber e o comer não têm uma finalidade prática de matar a fome ou a sede, mas de gozar do encontro e de celebrar a amizade. Na festa o tempo do relógio não conta e é dado ao ser humano, por um momento, vivenciar o tempo mítico de um mundo reconciliado consigo mesmo. Por isso, inimigos e desconhecidos são estranhos no ninho da festa, pois esta supõe a ordem e a alegria na bondade das pessoas e das coisas. A música, a dança, a gentileza e a roupa festiva pertencem ao mundo da festa. Por tais elementos o ser humano traduz seu sim ao mundo que o cerca e a confiança em sua harmonia essencial.

Esta última confiança dá origem ao senso de humor. Ter humor é possuir a capacidade de perceber a discrepância entre duas realidades: entre os fatos brutos e o sonho, entre as limitações do sistema e o poder da fantasia criadora. No humor ocorre um sentimento de alívio face às limitações da existência e até das próprias tragédias. O humor é sinal da transcendência do ser humano que sempre pode estar para além de qualquer situação. No seu ser mais profundo é um livre. Por isso pode sorrir e ter humor sobre as maneiras que o querem enquadrar, sobre a violência com a qual se pretende submetê-lo. Somente aquele que é capaz de relativizar as coisas mais sérias, embora as assuma num efetivo engajamento, pode ter bom humor.

O maior inimigo do humor é o fundamentalista e o dogmático. Ninguém viu um terrorista sorrir ou um severo conservador cristão esboçar um sorriso. Geralmente são tão tristes como se fossem ao próprio enterro. Basta ver seus rostos crispados. Não raro são reacionários e até violentos.

Em última instância, a essência secreta do humor reside numa atitude religiosa, mesmo esquecida no mundo profano, pois o humor vê as realidades todas em sua insuficiência diante da Ultima Realidade. O humor e a festa revelam que há sempre uma reserva de sentido que nos permite ainda viver e sorrir.

domingo, 20 de janeiro de 2008

O Preço de Ser Mulher

por Vera Ghimmel - veraghimel@oi.com.br

Contam-nos que cerca de 4 milhões de mulheres foram torturadas e mortas pela “Santa Inquisição”, instituição da Igreja Católica, com a finalidade de reprimir a heresia. Esse momento da história da humanidade se equipara a um holocausto, com motivos diferentes.

A mulher que demonstrasse amor aos animais e cultivasse plantas medicinais era considerada bruxa, sendo presa, torturada e queimada como pagã. Tanto o Catolicismo quanto o Islamismo, o Judaísmo e o Budismo consideravam a mulher como uma ajudante do papel masculino ou seja, cuidar da família (casa, filhos e marido) e mais nada. A expressão feminina era proibida, como se fosse algo errado ou até demoníaco.

Mas tivemos culturas como a egípcia, a celta e a da suméria que respeitavam o papel feminino e até o reverenciava. O que foi que aconteceu para essa brutal mudança?
Bem, os homens da época precisavam fazer desacreditar o poder feminino. As mulheres por não cultivarem o EGO estavam mais sintonizadas com a real natureza de sua essência, portanto, com uma capacidade psíquica mais evidenciada e uma percepção da vida melhor. Enquanto o EGO masculino crescia e era cultivado, associado à negação do seu próprio lado feminino, a mulher se identificava menos com a mente, tornando-se assim unificada com o Todo. O homem da época via isso como uma ameaça ao seu poder. E assim iniciou-se a guerra dos sexos.

Com o tempo, as mulheres para sobreviverem passaram a suprimir o seu lado feminino, o que causou muita dor, na época (e ainda hoje). Até Deus foi definido com expressão masculina, o que é um grande equívoco. O Todo não tem expressão fragmentada.

Somos empurrados pelo julgamento do bem e do mal. Qualificamos coisas e pessoas de boas e más. Estamos presos ao pensamento e ele nos conduz equivocadamente às dicotomias e dualidades. Tudo o que está à nossa volta nos conduz a esse princípio. Basta dar uma boa olhada ao redor que estaremos exercendo a força do pensamento. E é aí que mora o perigo. O pensamento é limitado - a consciência não. E o que vem a ser a consciência? É a ligação verdadeira com o CRIADOR, com o TODO. Estar consciente é estar UNO. Não há margem de erro, pois vemos o fato sem julgá-lo, sem nos desequilibrar. O desequilíbrio é proveniente de nosso “particular pensamento” que por sua vez é regido pelo sistema de crenças vigente, pela educação que tivemos e pelos nossos medos, ansiedades, complexos (corpo de dor) etc. Conduzir a nossa vida pelo pensamento é como entregar um carro potente na mão de uma criança. O pensamento constrói e fortalece o EGO. A consciência é imparcial, segura, e vive no agora.

Todos os que depositam as suas fichas no pensamento - e basta dar um boa pesquisada na vida de muitos homens que se orgulharam por viverem sob a custódia apenas do seu pensamento - que veremos histórias de pessoas atormentadas, deprimidas, isoladas, desesperançadas.

As mulheres que seguiram as mesmas receitas também ficaram assim. Perderam a Paz!

Muitos diriam que se não fossem essas pessoas chamadas de “pensadores da humanidade”, não teríamos avançado tanto…Mas eu pergunto:

- “Avançado exatamente pra onde?” O que eu vejo em termos gerais é um grande e eminente desastre estrutural da humanidade. Os ditos avanços foram engolidos pelos motivos escusos por detrás deles. A Humanidade está cavando o seu próprio buraco e não somos exemplo de nada para um desavisado extraterrestre que vem nos visitar pela primeira vez. Com certeza, eles devem se assustar com tamanho atraso.

Mas tudo começou porque decidimos pelo EGO e não pela CONSCIÊNCIA. O mesmo EGO que acredita na verdade imposta pelo sistema, na escravidão da moda, no consumismo, na máxima do “sucesso a qualquer custo” etc.

As mulheres têm um papel fundamental na esperança da mudança. Primeiro, não temer a sua porção feminina e ensinar aos seus filhos homens e mulheres a UNIDADE. Não julgar, deixar a vida fluir e se desapegar. Podemos construir uma vida saudável, próspera e amorosa, sem precisar usar a receita do EGO, a qual o homem ainda está preso.

Faremos com isso o nosso melhor papel que é o de verdadeiramente SER.
Texto revisado por: Cris



domingo, 6 de janeiro de 2008

Tecnologia aumenta desigualdade de gênero no mundo


O acesso e a utilização das novas tecnologias estão abrindo brechas digitais, mas não só entre o mundo ocidental e os países pobres; também entre homens e mulheres, e neste caso não há distinções por zonas geográficas. Os dados que chegam dos países mais desenvolvidos indicam que as mulheres estão ficando para trás, que não têm tanto tempo quanto gostariam para navegar sem rumo determinado na Internet, que não encontram na rede o que procuram e que sua formação acadêmica, menos tecnológica que a dos homens, não favorece uma aproximação fluida do computador.

Por Carmen Morán, do El Pais



Como se explica, então, que entre as mulheres e os homens com diploma universitário haja de 15 a 20 pontos de diferença na hora de conectar um modem ou uma impressora? "Neste caso, como ambos têm os mesmos estudos, a lacuna se deve à sua especialização acadêmica. Os homens se matriculam mais em carreiras tecnológicas e elas em outros setores mais sociais, de humanidades ou saúde, e essa é outra brecha que aumenta cada vez mais em toda a Europa", explica a catedrática de Economia Aplicada da Universidade Complutense de Madri, Cecilia Castaño.


Algo parecido ocorre quando os estudos são inferiores: eles sempre levam vantagem nas tarefas mais complexas ao manejar programas de informática. "É uma questão educacional: aos meninos se transmite mais confiança nas máquinas", afirma Castaño.


Os homens e as mulheres com estudos universitários também não passam o mesmo tempo na Internet; entre ambos há uma diferença de 20 pontos. Elas alegam falta de tempo, conteúdos que não lhes agradam e o uso que fazem do computador se circunscreve ao trabalho e algumas consultas de caráter prático. "Consultam possíveis empregos, assuntos relacionados à educação ou à saúde da família..." Mas os homens parecem ter tempo, porque parte de sua navegação é por lazer e consumo: esportes, a Bolsa, pornografia...


Usos distintos


A equipe de Cecilia Castaño passou um ano inteiro interpretando os dados da pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC) do INE (Instituto Nacional de Estatística) para escolher as diferenças entre homens e mulheres e buscar os porquês. Para isso reuniram um grupo de mulheres (estudantes universitárias, professoras de segundo grau, engenheiras e trabalhadoras da área de informática, empresárias com seus próprios negócios, teletrabalhadoras) e um grupo de homens com as mesmas características.


A partir daí puderam saber que eles passam mais tempo na Internet, a utilizam mais para questões administrativas, compras e transações bancárias; elas a usam menos e de forma mais prática, para resolver questões de saúde ou buscar informação laboral ou acadêmica. Também compram menos pela Internet e sobretudo produtos para o lar, enquanto entre os homens as aquisições mais habituais são de material de informática.


"A impressão mais clara é que transferiram os papéis habituais para o campo das novas tecnologias", afirma Castaño. Tanto que as mulheres usam mais o celular e o correio eletrônico para falar e relacionar-se, enquanto os homens dão utilidade mais prática a esses sistemas de comunicação.


Consultados homens e mulheres sobre essas diferenças, eles se atribuem maior interesse e destreza com as novas tecnologias, mas afirmam que as mulheres jovens já apresentam essas mesmas características. E opinam que os papéis de gênero marcam essa diferença.


As mulheres, por sua vez, indicam fatores sócio-educacionais históricos e uma incorporação tardia da mulher ao trabalho como uma das causas de sua aproximação mais difícil às novas tecnologias. Também pensam que a mulher tem maior habilidade verbal que tecnológica, o que na sua opinião favorece os homens. Mas queixam-se de que os conteúdos que encontram estão muito pensados para os homens e que também influem os fatores econômicos.


"Quando em uma família há jovens estudantes, é mais provável que haja computador e que os pais queiram navegar com eles, mas isso sempre beneficia o pai e afeta negativamente a mãe. Ela não encontra tempo, exatamente por atender outras tarefas relacionadas aos filhos, enquanto para o pai acompanhá-los aumenta seu contato com o computador", afirma Castaño.


Os estudos e a menor relação da mãe com o computador exercem uma grande influência nos filhos, mas essa questão as pesquisas não indagam.


Questão de talento?


A criatividade e o talento são fatores que as empresas dizem levar muito em conta na seleção e promoção do pessoal. Também são apreciadas no setor das novas tecnologias, pelo visto, embora os homens continuem ocupando os cargos de responsabilidade e as mulheres expondo queixas tradicionais que as impedem de quebrar o telhado de vidro tecnológico.


Nas entrevistas mantidas com diretoras e mulheres membros de conselhos administrativos do setor de novas tecnologias (sete mulheres e dois homens), percebe-se que entre os homens que chegaram aos altos cargos há uma experiência prolongada na empresa, pontilhada por promoções. Enquanto isso, as diretoras passaram por outros setores e demonstraram capacidade de adaptação e uma grande paixão por seu trabalho. "A maioria delas faz malabarismos para conciliar sua vida de trabalho e pessoal e teve de fazer sacrifícios. Eles também reconhecem obstáculos para avançar, mas pagam o preço com mais prazer", diz o estudo de Cecilia Castaño.


"Fala-se em talento, mas quem o mede?", diz Castaño. "Na hora da verdade, nos postos de responsabilidade das empresas entram pessoas mediante cotas políticas, nem sempre por talento. E as mulheres costumam ser invisíveis nisso", explica. Castaño dá o exemplo da Orquestra Sinfônica de Boston: "Nunca entravam mulheres, até que fizeram uma audição às cegas; não se via o aspirante, e aí a coisa mudou".

Créditos: Vermelho

terça-feira, 1 de janeiro de 2008


Frei Betto * Adital

Uma pergunta que sempre me fazem: por que a data do Carnaval é alterada todo ano e quais os critérios? Este ano o domingo de Carnaval caiu em 18 de fevereiro; em 2008, será dia 3 do mesmo mês. Mudam também as datas da Semana Santa, de Corpus Christi de outras efemérides litúrgicas.

Nosso calendário gregoriano é solar, ou seja, regido pela translação da Terra em torno da estrela que nos ilumina. O calendário litúrgico é lunar, espelha-se nas fases da Lua.

A Páscoa é festa central da liturgia, tanto judaica (os hebreus libertos da escravidão no Egito) quanto cristã (a ressurreição de Jesus). Páscoa significa "passagem" (da opressão à libertação ou da morte à vida plena).

É sempre comemorada pelos judeus na primeira lua cheia do mês de Nisan. Este mês do calendário judaico corresponde ao período entre 22 de março e 25 de abril.

Para evitar confusão com a festa judaica de mesmo nome, a Igreja adotou o domingo seguinte ao da Páscoa judaica como o da celebração da ressurreição de Jesus. Para nós que vivemos no hemisfério Sul, o domingo de Páscoa é, portanto, aquele que se segue à primeira lua cheia do outono. Neste ano, 8 de abril; em 2008, 23 de março.

E como se determina a data do Carnaval? Esta é uma festa originariamente religiosa. Carnaval significa "festa da carne", ou seja, período prévio à Quaresma - que se inicia na Quarta-Feira de Cinzas -, e no qual os cristãos se fartavam de carne, já que, outrora, a Igreja exigia-lhes dela se abster no decorrer dos quarenta dias seguintes.

O domingo de Carnaval é sempre o sétimo antes da Páscoa cristã. A quinta-feira de Corpus Christi é sempre a primeira depois do domingo da Santíssima Trindade, comemorado 57 dias depois da Páscoa.

Assim, o domingo da Páscoa é a data de referência das demais festas litúrgicas chamadas móveis, pois há as imóveis, como o Natal, comemorado invariavelmente a 25 de dezembro, não importa o dia da semana em que caia.

A política não é tudo, mas em tudo há política. Disso o calendário é um bom exemplo. Outrora o mês de julho era chamado de quintilis, quinto mês do calendário romano, que se iniciava em março. Agosto era o sextilis, o sexto. Os nomes dos meses seguintes ainda guardam ressonância daquele calendário: setembro (sétimo), outubro (oito), novembro (nove) e dezembro (dez).

O imperador Júlio César (100 a.C. - 44 a.C.) decidiu batizar o mês de seu nascimento, quintilis, com o próprio nome: Julho. Sucedido no trono pelo imperador Caio Júlio César Octaviano Augusto (63 a.C - 14 d.C.), este achou por bem merecer honra equivalente a de seu antecessor e, assim, trocou o nome de sextilis para agosto.

Havia, porém, uma pequena diferença: julho possui 31 dias e, agosto, na época, apenas 30, conforme a alternância dos meses. Como vontade de rei é lei, arrancou-se um dia de fevereiro, de modo a tornar agosto igual a julho em número de dias. Se Júlio César nasceu a 13 de julho, Otávio Augusto, por coincidência, morreu a 19 de agosto.

Todos os povos que seguem um calendário anual celebram a chegada do ano-novo, denominada, entre nós, réveillon, do verbo francês réveiller, que significa "despertar". Foi o imperador Júlio César que, no ano 46 a.C., decretou o 1º de janeiro como primeiro dia do ano-novo. Celebrava-se na data a festa de Jano, deus dos portões, dotado de duas faces, uma virada para frente, outra para trás. De Jano se originou janeiro.

Os nomes dos dias da semana se originam, em português, da classificação de Martinho de Dume, bispo de Braga, Portugal, no século VI. Ele denominou, em latim, os dias da Semana Santa como aqueles nos quais não se devia trabalhar: feria secunda (segundo dia de feriado ou férias), feria tertia etc. Feria resultou na corruptela feira.

O imperador Constantino (280-337), convertido ao cristianismo, já havia denominado Dies Dominica, "dia do Senhor", domingo, o primeiro dia da semana. No sétimo dia foi mantido a nome judaico, sábado, que vem do hebreu shabbat.

Outros idiomas latinos conservam os nomes pagãos dos dias, concernentes aos planetas, como é o caso do francês, do italiano e do espanhol. Na língua de Cervantes segunda-feira é lunes, de Lua; terça, martes, de Marte etc.

Todas essas convenções e denominações estão calcadas em dois fenômenos inelutáveis: em sua dança cabrocha em torno do mestre-sala, o Sol, a Terra conhece quatro estações, e não apenas a Estação Primeira de Mangueira: verão, outono, inverno e primavera. E nós, a infância, a adolescência, a juventude, as idades adulta e idosa, ainda que, hoje, muitos insistam em perpetuar a terceira fase e encarem a velhice como vergonhosa fatalidade da qual tentam escapar camuflando-a sob os recursos da bioplastia. Ignoram que juventude é estado de espírito, e nada mais feio do que, num corpo esbelto, uma alma enrugada.

Feliz Ano-Novo, queridos leitores e leitoras!

[Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros].


* Frei dominicano. Escritor.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Feliz Ano Novo!!!!

Ano novo, estou aqui para lhe propor um acordo.
Eu sempre espero muito de você,
e acho que a decepção é recíproca,
porque a cada dia que passa,
em vez de rejuvenescer, eu envelheço,
em vez de ficar rico, vou ficando mais pobre,
e em vez de ser amado, vou sendo cada vez mais esquecido.

Você realmente rejuvenesce, ou pensa que o faz,
quando abre suas asas sobre o mundo
anunciando ser mais um que se inicia.

Mas ao contrário do que deveria acontecer
com tudo que é novo,
você já nasce trazendo no colo crianças famintas,
homens amargurados, governos inescrupulosos,
muito desamor
e guerra... sempre guerra!

Eu duvido que se emocione como deveria,
com os fogos que são calorosamente oferecidos
em sua homenagem...

Eu duvido que consiga vibrar
nos seus primeiros minutos,
ouvindo a sirene das ambulâncias,
e o matraquear do fogo cerrado
que se estabelece entre irmãos de uma mesma favela...

Eu duvido que consiga se sentir NOVO,
meu querido ano novo.

Por isso, eu queria lhe propor,
que em vez de você ser NOVO,
que seja diferente, apenas diferente...

Que você plante no coração das pessoas,
a semente do amor.
Mas que faça isso com vontade, com determinação,
não aceitando que nasça dessas sementes,
nada menos, que muito amor.

Que o ser humano, governante ou mendigo,
sinta em seu interior a necessidade de amar,
de querer bem, de procurar fazer a sua parte,
seja ela governar ou caminhar à beira da estrada,
sem ferir, sem abusar.

E sabe Ano Novo... que isso fique entre nós,
mas junto com a semente do amor,
alguns corações precisam de um reforço,
por isso, você deve jogar displicentemente,
uma sementinha de decência,
de humanidade, de caridade humana.
São aqueles que detém o poder,
os multimilionários que se fartam desse mundo
como se fossem os donos,
limpando os pés no resto da humanidade.

E então sim, você poderá se auto intitular ANO NOVO!!!
E eu poderei vibrar a cada vez que você chegar...
pulando as sete ondas,
soltando fogos
ou simplesmente abraçando o meu irmão!!!
Porque será, incontestavelmente...
ANO NOVO!!
VIDA NOVA!!"

anônimo


sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Da lama para o mundo

Conheça a história do Mangue Beat, mistura de rock com maracatu idealizada por Chico Science que abriu caminho para a cultura da periferia do Recife e conquistou admiradores mundo afora

Texto, fotos e vídeos de João Mauro Araújo, especial para a Repórter Brasil

Dez anos atrás, um acidente automobilístico tirava a vida de Chico Science, o músico que promoveu a fusão entre maracatu e rock e, com isso, agitou o cenário artístico do Recife, dando origem ao movimento que ficou conhecido como Mangue Beat - numa referência aos próprios mangues, abundantes na cidade.
Grafite em túnel do Recife homenageia o criador do Mangue Beat

Ao aliar a batida forte de tambores com o som distorcido de guitarras elétricas, Science criou um gênero musical que conquistaria admiradores pelo Brasil afora e também no exterior, onde ele e sua banda, a Nação Zumbi, realizaram algumas turnês. Com letras ao mesmo tempo bem-humoradas e recheadas de crítica social, ele influenciou não só músicos, como artistas de outras áreas.

Além de colocar, na década de 1990, a capital pernambucana na vanguarda da produção musical, o Mangue Beat teve o mérito de despertar a auto-estima da juventude da periferia, ao valorizar as manifestações artísticas de grupos locais e tradicionais.

Mangue Beat associou complexidade dos manguezais a cena musical diversificada
Corria o segundo semestre de 1992 quando um release com um título estranho - "Caranguejos com cérebro" - chegou à redação dos principais jornais do Recife. O texto, considerado o primeiro manifesto do Mangue Beat, falava de um grupo que vinha realizando eventos musicais na capital pernambucana e nos municípios de Olinda e Jaboatão dos Guararapes. Inspirados na biodiversidade dos manguezais, os jovens que integravam esse movimento pretendiam criar um gênero que unisse elementos da cultura popular com as vibrações sonoras mundiais.

A grande projeção que as bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A alcançaram, principalmente em meados da década de 1990, além de estimular a formação de novos conjuntos locais, teve forte influência sobre outros segmentos da produção artística pernambucana. Com o passar do tempo, porém, o movimento foi perdendo fôlego, e muitos músicos abandonaram o rótulo Mangue. Mesmo estes, no entanto, reconhecem a importância do papel dos "mangueboys" nos alicerces da cena atual.

Dez anos após o acidente de carro que vitimou Chico Science - notável articulador do movimento -, em fevereiro de 1997, a diversidade cultural introduzida pelo Mangue Beat continua a dar frutos. Basta acompanhar, durante o carnaval, as apresentações no palco do Pólo Mangue do Morro, no centro antigo do Recife, para constatar que ainda há muita gente tirando energia da lama.

Origem

As preocupações sociais de Chico Science são atribuídas à influência do pai, Francisco Luís França, que chegou a ser vereador em Olinda
A temática do mangue sempre esteve presente na obra de eminentes escritores, que reproduziram as imagens da penosa interação das pessoas pobres com esse ecossistema no cotidiano recifense. Perto do desfecho de Morte e Vida Severina, por exemplo, João Cabral de Melo Neto (1920-99) expõe ao personagem retirante a dramática situação dos mocambos, a partir do discurso de um de seus moradores: "Minha pobreza tal é/ que não trago presente grande:/ trago para a mãe caranguejos/ pescados por esses mangues;/ mamando leite de lama/ conservará nosso sangue". Já o professor Josué de Castro (1908-73) chegou a afirmar: "Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife. (...) homens e caranguejos nascidos à beira do rio, à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama".

Ao contrário dos poetas que o antecederam, Francisco de Assis França, o Chico Science, conseguiu enxergar riqueza naquela paisagem pantanosa. Sua idéia foi associar a complexidade orgânica dos manguezais a uma proposta de cena musical diversificada.

Repentes e literatura de cordel acompanharam infância do compositor
Nascido no Recife, Science foi batizado com nome de santo por sua mãe, Rita Marques de França, que sonhava ver o filho padre. Ela conta com orgulho as peripécias do menino nos teatrinhos da igreja, embora já soubesse que aquele "não era o caminho dele". Dona Rita recorda que o avô de "Chiquinho" trazia repentistas para cantar em Surubim (PE), sua cidade natal: "Meu pai era apaixonado por tocador de viola e gostava muito daqueles folhetos, romances, que comprava e pedia para eu ler". Esse gosto foi transmitido ao neto, pois, segundo parentes e amigos, Science era também apreciador da literatura de cordel. Esses trabalhos poéticos - em que se contam histórias de Lampião, Antônio Conselheiro, causos policiais, pelejas clássicas... - seriam retomados nas letras do cantor.

As apresentações nos palcos e nos videoclipes gravados com a banda Nação Zumbi traziam sempre, também, referências a caranguejos, que Chico Science conhecia desde os quatro anos de idade, quando a família mudou para o bairro de Rio Doce, em Olinda. A irmã Maria Goretti Lima relembra essa época, quando ele costumava brincar de apanhá-los com os amigos: "Perto de casa havia um rio e um manguezal enorme. Às vezes apareciam alguns caranguejos até no nosso quintal". Já as preocupações sociais e uma certa inclinação política do Malungo (palavra de origem africana que significa "companheiro"), como Science também era conhecido, costumam ser atribuídas à influência do pai, Francisco Luís França, que compara o filho à estrela-d´alva, por conta da luz que se apaga de maneira repentina.

Técnico de enfermagem na área de saúde ocupacional, primeiro em hospital, depois na indústria, seu França militou no sindicato dos enfermeiros, no Recife, e chegou a ser vereador de Olinda. Vestindo um avental branco, os olhos ocultos por trás dos óculos escuros, ele conta que, certa vez, chegou a ser demitido por defender o direito dos trabalhadores.

Atualmente, seu França trabalha no Espaço Ciência, um imenso museu a céu aberto localizado entre Recife e Olinda. No pavilhão de exposições onde desempenha suas funções, há algumas fotos de Chico Science. Fora do prédio, o artista também é lembrado, e a homenagem não poderia ser melhor: desde outubro de 1997 o local onde fica a trilha ecológica do parque leva seu nome. A área, de aproximadamente 20 mil metros quadrados, é o que restou de um manguezal depois dos aterros realizados na segunda metade do século passado sobre o estuário dos rios Beberibe e Capibaribe.