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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Viomundo não vai fechar


Por Igor Felippe

Há homens que lutam um dia e são bons,
há outros que lutam um ano e são melhores,
há os que lutam muitos anos e são muito bons.
Mas há os que lutam toda a vida
e estes são imprescindíveis"
Bertold Brecht


Caro amigo Azenha,

Tenho certeza que o blog Viomundo não vai fechar. Porque você e a Conceição Lemes são imprescindíveis.

E aqueles que são imprescindíveis lutam a vida inteira.

O vaticínio é de Bertold Brecht, o dramaturgo alemão comunista que saiu do seu país com a chegada de Hitler ao poder.

A sua vontade individual, Azenha, vale pouco agora. Para o bem e para o mal.

O Viomundo cresceu e se tornou o melhor blog do Brasil.

É o melhor porque informa, agita, educa e chama â reflexão seus leitores, tratando de temas da conjuntura política e de questões profundas da sociedade brasileira.

Com isso, conta com a contribuição de dezenas de pessoas e tem milhares de leitores.

O blog já saiu das suas mãos, Azenha e Conceição.

Vocês são apenas síndicos desse condomínio, formado por aqueles que têm uma visão crítica da realidade, que não se satisfazem com a mediocridade da velha mídia e que querem transformar profundamente este país.

Os sujeitos cumprem um papel importante na história. E você, Azenha, é um desses sujeitos.

A emergência da internet criou um canal de comunicação para além das TVs, rádios e jornais concentrados nas mãos de uma oligarquia intolerante e truculenta.

As contradições criadas no seio da sociedade brasileira com a eleição de um torneiro mecânico aproximaram jornalistas exiladas nos grandes meios de comunicação das organizações políticas progressistas.

Vamos ser diretos: aproximou jornalistas críticos da luta de classes, para usar uma expressão fundamental para compreender a realidade contemporânea.

O Brasil passou pela escravidão e por duas ditaduras, que perseguiram, torturaram e mataram aqueles que defendiam a liberdade e a igualdade.

A burguesia brasileira é intolerante. Não tolera pensamento diferente, não tolera críticas e não tolera traição.

A saída da Globo, as críticas ao jornalismo do grupo e o sucesso do Viomundo representam uma traição para os poderosos.

No Brasil, perfilaram na trincheira da luta pela liberdade e igualdade inúmeros lutadores do povo, como Zumbi, Apolônio de Carvalho, Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella, Francisco Julião, João Pedro Teixeira, Helenira Rezende, Florestan Fernandes, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro...

Todos enfrentaram os poderosos. Foram derrotados pela morte. Lutaram até o fim da vida.

Azenha, a condenação imposta por uma Justiça do Rio de Janeiro que se submete às vontades das Organizações Globo é mais um capítulo da luta de classes no Brasil.

É a luta dos detentores do poder contra aqueles que representam obstáculos para o exercício do poder, por se associar às causas do povo brasileiro.

Essa luta é dura, inglória, desgastante e, especialmente, perigosa.

O grande professor Florestan Fernandes escreveu sabiamente que “contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres”.

Não podemos transigir. Cabe a todos nós fazer uma grande campanha para denunciar a perseguição da Globo, arrecadar recursos para pagar a multa e intensificar a luta pela democratização do sistema de comunicação.

Azenha, cabe a você continuar o seu grande trabalho, porque o fechamento do blog representaria uma derrota para todos nós.

Então, vamos coletivamente enfrentar esses desafios, para que juntos possamos impor uma derrota para aqueles que mandam neste país.

Um grande abraço, Igor Felippe

quinta-feira, 21 de março de 2013

Gullar e a revolução na Venezuela


Por Max Altman via BLOG DO MIRO

Existe um expressão comum no mundo político da Venezuela – “saltar la talanquera” – que poderia ser traduzido por ‘pular sobre a barricada’ e que significa passar para o outro lado. Muita gente que na sua juventude, e por largos anos, abraçou os ideais do socialismo, resolveu “saltar la talanquera’, renegando, sob os mais variados pretextos, tudo o que pensava e defendia, e muda de lado, de mala e cuia. Como necessitam ser bem recebidos pelos novos correligionários, mostram-se crescentemente mais realistas que o rei. Ou seja, homens com uma história de esquerda passam a defender algumas das teses mais caras à direita. Mudar de lado não é um ato gratuito. Há que se pagar pedágio sempre – e ele é caro e exigente -, demonstrando por atos e palavras que são leais à nova trincheira e aos seus valores. É o caso de Arnaldo Jabor, Roberto Freire, Marcelo Madureira, Alberto Goldman e tantos outros. E do poeta e cronista Ferreira Gullar.

Gullar publicou na Folha de domingo, 17 de março, artigo sob o título “A revolução que não houve”. Não vou refutar suas posições ideológicas ou políticas. Eles tem as deles, nós, as nossas, e assim vamos travando a batalha de idéias. O que quero rebater são suas inverdades e distorções – e até um grave vilipêndio - acerca de fatos concretos. O poeta Gullar não pode alegar desconhecimento, pois é jornalista, nem ignorância, posto que é intelectual.

O articulista afirma que Hugo Chávez “não só fechou emissoras de televisão como criou as Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista, inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do governo”. O sinal eletro-eletrônico, lá como aqui, é de propriedade do Estado. A concessão de transmissão por sinal aberto da RCTV – e este foi um caso único – deixou de ser renovada, entre muitas outras razões, pelo fato da emissora ter tramado e liderado o Golpe de Estado de abril de 2002 contra o presidente Chávez, fato cabalmente demonstrado no documentário “A Revolução Não Será Televisionada”. Nos Estados Unidos, por exemplo, esta ocorrência levaria os donos da estação a uma condenação severíssima. O sinal fechado da RCTV continua funcionando normalmente. 

À parte a odiosa e absurda comparação com as milícias hitleristas, a Lei Orgânica da Força Armada Bolivariana da Venezuela (FABV) estabelece que a Milícia Bolivariana, subordinada ao Comando Estratégico Operacional da Força Armada Bolivariana da Venezuela, tem como missão treinar, preparar e organizar o povo para a defesa integral com o fim de complementar o nível de prontidão operacional da FANB, contribuir para a manutenção da ordem interna, segurança, defesa e desenvolvimento integral da Nação com o propósito de coadjuvar e independência, soberania e integridade do espaço geográfico da Nação. Repto o Sr. Gullar ou qualquer outro a mencionar um só caso em que a Milícia Bolivariana tenha sido utilizada para inviabilizar, pela força ou não, qualquer manifestação política ou de outra ordem da oposição.

Diz mais o cronista: “O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele tentou encobrir. Quando não pode mais, lançou mão da teoria conspiratória, segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos.” Agora mesmo estamos assistindo à autorização da família do ex-presidente João Goulart para a sua exumação, 37 anos após o falecimento, porque há forte suspeita que ele tenha sido envenenado para induzir o ataque cardíaco pela Operação Condor, sabidamente apoiada e orientada pela CIA. Foi possível com Jango, porque não poderá ser com Chávez. A ciência provavelmente irá dirimir a dúvida em ambos os casos.

“De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença...” Não é nada claro, Sr. Gullar. Vindo do Equador e do Brasil desce Chávez em Havana, caminhando com dificuldade e apoiado numa muleta. Foi estar com Fidel e com ele se queixou das dores. Fidel lhe fez uma enxurrada de perguntas e o convenceu a passar imediatamente por uma bateria de exames no melhor hospital de Havana. Foi nesse momento que se descobriu que carregava na região pélvica um tumor “do tamanho de uma bola de beisebol.” E lá mesmo passou pela primeira das quatro operações cirúrgicas. 

A Venezuela e o mundo todo souberam imediatamente da gravidade da doença e com algum detalhe. Razões de Estado sempre cercam enfermidades de chefes de Estado e de governo. Não obstante, no caso de Chávez foram 27 comunicados públicos ao longo dos quase dois anos, feitos por ele mesmo ou por ministros do governo. François Mitterrand passou dois setenatos carregando um câncer de próstata, que o acabou matando, sem que a opinião pública soubesse de algo. Antes dele, o presidente Georges Pompidou morreu no exercício do cargo, inesperadamente, de Macroglobulinemia de Waldenström e ninguém soube de nada, salvo alguns jornalistas que suspeitaram de seu súbito inchaço.

Gullar omite e distorce quando diz que “Para culminar, (Chávez) fez mudarem a Constituição para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder.” Na verdade, Chávez fez questão que a emenda constitucional permitindo a postulação indefinida passasse por referendo popular e não simplesmente aprovada pela Assembleia Nacional onde detinha praticamente a totalidade das cadeiras. (A oposição se recusara a concorrer às eleições legislativas.) Houve ampla e livre campanha e o SI ganhou por boa margem. O povo assim decidiu. 

A propósito, nos Estados Unidos havia uma tradição de apenas dois mandatos de quatro anos mas nada na Constituição impedia a postulação indefinida. Roosevelt foi eleito em 1932, reeleito em 1936, novamente eleito em 1940 e outra vez eleito em 1944. Faleceu em abril de 1945 com apenas 63 anos. Seria facilmente reeleito pela 5ª, 6ª e 7ª vez, pois saíra vitorioso da Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos confirmavam a condição de super-potência. Alguém tisnou de anti-democrático a contínua reeleição de Roosevelt ? Essa possibilidade foi revogada posteriormente por uma eventual maioria republicana.

O articulista envereda sibilina e maliciosamente pelo terreno jurídico. “Contra a Constituição, Nicolás Maduro ... assume o governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que o mandato do próprio Chávez terminara.” E mais adiante “Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça – de maioria chavista, claro – legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu.” 

O sr. Gullar nunca se referiu ao nosso STF como de maioria tucana, claro, em especial durante o julgamento midiático da AP 470. Os membros da Suprema Corte na Venezuela, que devem ser cidadãos de reconhecida honorabilidade e juristas de notória competência, gozar de boa reputação e ter exercido a advocacia ou o magistério em ciências sociais por pelo menos 15 anos, e possuir reconhecido prestígio no desempenho de suas funções, são eleitos por um período único de 12 anos. Postulam-se ou são postulados ante o Comitê de Postulações Judiciais. O comitê, ouvida a comunidade jurídica, envia uma pré-seleção ao Poder Cidadão, que, por sua vez, faz uma nova pré-seleção e a envia à Assembleia Nacional que fará a seleção definitiva. (arts. 263 e 264 da Constituição Bolivariana). 

Cabe, por outro lado, à Sala Constitucional do Tribunal Supremo da Venezuela (art. 266) exercer a jurisdição constitucional, como única intérprete da Constituição. E ela considerou, em decisão articulada e bem fundamentada, que: a) pelo fato de estar ainda em curso a licença concedida pela Assembleia Nacional ao presidente Chávez; b) que havia uma continuidade administrativa pois Chávez havia sido reeleito; a posse poderia se dar em outro momento e ante o TSJ, fato também previsto na Constituição e que Nicolás Maduro poderia continuar exercendo a vice-presidência executiva. (Na Venezuela o vice-presidente é indicado pelo presidente e não eleito conjuntamente.) Com a morte de Chávez, aplicou-se o art. 233, passando Maduro a exercer o cargo de Presidente Encarregado, obrigando-se a convocar eleições em 30 dias, o que foi feito.

E onde reside o vilipêndio, a ignomínia de Ferreira Gullar ? Repetindo maquinalmente o que a extrema-direita golpista e corrupta da Venezuela alardeou, afirma que a farsa prosseguiu até a morte de Chávez, que ninguém sabe quando de fato ocorreu. Isto é uma grave ofensa antes de mais nada à dignidade dos pais, irmãos e filhos de Hugo Chávez, porquanto afirmar que ninguém sabe quando ocorreu a morte é imputar à família do presidente participação numa farsa. As filhas de Chávez em discursos emocionados, num e noutro momento, repeliram a rancorosa e covarde acusação, reafirmando que Chávez faleceu, quase diante de seus olhos, no dia 5 de março no hospital militar de Caracas, exatamente às 16h25.

E por quê afirmo no título que há uma revolução socialista bolivariana em marcha ? Evidentes êxitos dos programas sociais do governo Chávez não a caracterizaria. Esta proeza pode ser alcançada por países em regime capitalista. Há, porém, um dado da realidade na Venezuela: a massa pobre e de trabalhadores alcançou um bom nível de consciência política e ideológica e está organizada. Vale-se do Partido Socialista Unido da Venezuela para a sua mobilização. E dispõe-se a respaldar o governo a fim de levar adiante o “Plano Socialista da Nação – 2013-2019”, programa histórico de cinco objetivos fundamentais, que tem por lema ‘desenvolvimento, progresso, independência, socialismo’.

Sempre com fundamento na Constituição que estabelece que a soberania reside intransferivelmente no povo que a exerce diretamente na forma prevista na Carta Magna e nas leis e indiretamente, mediante o sufrágio direto e secreto, Chávez liderou a expansão da democracia participativa, diminuiu o peso do empresariado, dos meios comerciais de comunicação e das casamatas mais retrógadas do aparelho estatal, especialmente no sistema judiciário. Criou com isso a base social que permite agora avançar na transformação socialista em curso, trazendo a Força Armada para dela lealmente participar.

Uma das mais relevantes medidas de transferência de poder ao povo é a criação e o desenvolvimento do poder comunal. Trata-se de pequenas áreas geográficas, distritos ou bairros, que funcionam como instituições políticas e que também podem organizar seus próprios serviços públicos, constituir empresas para diferentes atividades e receber financiamento direto do governo nacional. Busca-se, assim, esvaziar os estamentos burocráticos ainda controlados ou corrompidos pelos antigos senhores.

Ao contrário de outras experiências de identidade socialista, a ampliação da democracia direta não foi acompanhada pela redução de liberdades, mesmo daqueles setores que participaram do golpe de Estado em 2002 ou que insistem na oposição golpista. Não se tolheu a liberdade de expressão nem a liberdade de imprensa. Partidos de cariz neoliberal, de direita, sociais-democratas ou ultra-esquerdistas continuam a funcionar normalmente com ampla liberdade de organização e manifestação pacífica.

Dois fortes sinais indicam que a revolução socialista bolivariana está atingindo um ponto de não retorno. O primeiro foi o extraordinário comportamento do povo venezuelano diante da morte de seu comandante-presidente. Milhões saíram às ruas para homenageá-lo. Embora comovido, mostrou-se sereno, pacífico, responsável e democrático. Isto permitiu que o governo funcionasse e, principalmente, a estabilidade institucional fosse garantida. Não caiu nas provocações alimentadas por setores raivosos da direita. Reagiu com senso civilizado extraordinário, com dignidade. No entanto, como se pôde assistir, disposto a qualquer coisa para defender o legado de Hugo Chávez, o progresso e as conquistas sociais, o desenvolvimento da economia, a soberania e a independência da pátria, a consolidação da integração regional latino-americana.

O segundo sinal está por vir e será a confirmação desta vontade popular. No dia 14 de abril serão realizadas eleições livres, justas e transparentes, como garante o Conselho Nacional Eleitoral, para presidente da Venezuela. A vitória de Nicolás Maduro constituirá um marco histórico e dará início a uma nova etapa da revolução socialista bolivariana.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Pablo Neruda: “Eu não me calo”


averdade.org

Sha
Neruda e MatildeA Poesia é a arte que coordena as ideias e as palavras de modo a expressar o pensar e o sentir de forma bela. Fala ao coração. É o belo em forma de Linguagem. Mas a divisão da sociedade em classes, a violência gerada pela exploração da minoria opressora, violam também a arte em todas as suas formas. Em vez de terna, a poesia se torna dura, embora não deixe de ser bela. É que o poeta tem “apenas duas mãos e o sentimento do mundo” (Carlos Drummond de Andrade).
É isso que explica a evolução poética de Pablo Neruda, o maior poeta chileno e um dos maiores da Literatura universal. Do lirismo de “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” aos versos combatentes de “Espanha no Coração” e “Canto Geral”.
Ele não nasceu com o nome com o qual se consagrou, e sim como Neftali Ricardo Reyes Basoalto. Não era um nome poético, não gostava. Ainda na adolescência, adotou o pseudônimo de Pablo Neruda (referência ao escritor checo Jan Neruda, que apreciava), oficializando-o depois mediante ação judicial.
Neruda veio ao mundo na localidade de Parral, em 12 de julho de 1904. Seu pai era o operário ferroviário José Del Carmen Reyes Morales. Sua mãe, Rosa Basoalto Opazo, professora primária, morreu quando ele tinha apenas um ano de vida. A mãe que conheceu foi Trinidade Candia Marverde, a segunda esposa de José Reyes, a quem chamava de “Mamadre”,
Recebeu o primeiro prêmio aos quinze anos.  Em 1921, a família se mudou para Santiago, onde estudou Pedagogia na Universidade do Chile e seguiu ganhando prêmios com suas poesias. “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” é publicado em 1923, um sucesso de público e crítica.
Diplomacia e Militância Política
Ingressou na carreira diplomática em 1927, atuando em vários países. Despertou para a militância política no ano de 1936, lutando contra o franquismo na Espanha ao lado do amigo e magnífico poeta Federico García Lorca, assassinado pelos fascistas em agosto daquele ano. Então a ternura deu lugar ao combate, pois a poesia, como disse Jorge Amado, “pode ferir como bala de fuzil”. Neruda escreveu Espanha no Coração. Perdeu o cargo e abandonou a carreira diplomática.
Em 1945, ingressou no Partido Comunista do Chile; foi eleito senador em 1948; teve o mandato cassado e ingressou na clandestinidade. Exilou-se, andou por diversos países, escrevendo no México Canto Geral, que retrata a luta, a vida, o sentimento dos povos da América Latina.
De volta ao Chile, o PC o indicou como candidato à Presidência da República, mas ele não aceitou, defendendo o apoio a Salvador Allende, eleito em 1970 por uma ampla Frente Popular. (Sobre Salvador Allende, leia A Verdade, nº96).  Apoiou Allende até o fim, que se deu com o golpe de Estado que implantou uma longa noite de terror e agonia sobre o Chile (1973-1990). Em 1971, Neruda recebera o Prêmio Nobel de Literatura.
Suspeita de assassinato
Doze dias após o golpe, morria Pablo Neruda, pois sua voz não se calou. Continua emocionando e incentivando os lutadores do povo.  Os legistas diagnosticaram o câncer como causa mortis. Sua esposa, Matilde Urrutia, disse que o poeta “morreu de tristeza”. A tristeza de presenciar o enterro da democracia, a morte de seus amigos Salvador Allende e Victor Jara, célebre cantor e compositor, que transformava em música a vida e a luta dos trabalhadores, do povo do Chile.
É fato que o poeta sofria de câncer na próstata, mas seu médico havia garantido que ele ainda viveria ainda de cinco a seis anos. Pessoas que assistiram à sua internação na Clínica Santa Maria, em Santiago, testemunharam que ele não parecia um doente terminal; apenas estava muito nervoso. Aplicaram-lhe um calmante e nunca mais o poeta acordou.
O motorista do casal Neruda, Manuel Arraya, assegura que era bom o estado de saúde do poeta. Ele até se preparava para uma viagem ao México, onde falaria sobre a situação política do Chile. Conta Arraya que Neruda vinha recebendo telefonemas ameaçadores e, logo após sua morte, a residência, em Isla Negra, foi totalmente saqueada.
Diante das evidências, o juiz Mário Carroza reabriu a investigação e determinou a exumação dos restos mortais do poeta, que se encontram em sua casa na Isla Negra, onde funciona um museu em homenagem a sua vida e obra. Os resultados deverão ser divulgados por ocasião dos 40 anos do golpe, que se completam a 11 de setembro próximo.
Poesia Perigosa
É muito provável que a mão que torturou e mutilou Victor Jara para calar sua voz e os acordes do seu violão também tenham silenciado o poeta, pois, como ele mesmo dissera, “o poeta que sabe chamar o pão de pão e o vinho de vinho é perigoso para o agonizante capitalismo” (Confesso que Vivi).
Eu não me calo.
Eu preconizo um amor inexorável.
E não me importa pessoa nem cão:
Só o povo me é considerável,
Só a pátria é minha condição.
Povo e pátria manejam meu cuidado,
Pátria e povo destinam meus deveres
E se logram matar o revoltado
Pelo povo, é minha Pátria quem morre.
É esse meu temor e minha agonia.
Por isso no combate ninguém espere
Que se quede sem voz minha poesia.
(Neruda, 1980) 
Pablo Neruda: A meu Partido
Me deste a fraternidade para o que não conheço. Me acrescentaste a força de todos os que vivem. Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento. Me deste a liberdade que não tem o solitário. Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo. Me deste a retidão que necessita a árvore. Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens. Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos. Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos. Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha. Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético. Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria. Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Revelado elo entre escravidão e riqueza de ingleses

Pesquisa disponibiliza documentos inéditos com valores e nomes de donos de escravos que foram beneficiados com indenizações públicas após a abolição.

A reportagem é de Maurício Hashizume e publicada pela agência Repórter Brasil.

Além do retorno financeiro obtido pelo próprio negócio da escravidão transatlântica (que funcionava de modo bastante similar ao de uma bolsa de valores dos dias de hoje), “investidores” privados da venda de pessoas ainda foram recompensados com grandiosas indenizações do governo inglês quando da abolição legal.

Dados tornados públicos a partir desta quarta-feira (27/02) em um arquivo na internet disponível para consulta revelam que quantias equivalentes a bilhões de libras esterlinas foram transferidas dos cofres públicos para “empreendedores” escravagistas, ou seja, muitas das fortunas de hoje estão diretamente ligadas à abolição da escravidão.

Pelos cálculos dos responsáveis pela pesquisa – centralizada na University College, de Londres –, nada menos que um quinto da riqueza dos britânicos da Era Vitoriana guardava relação com a escravidão. Entre os beneficiados, encontram-se, por exemplo, parentes do atual primeiro-ministro inglês, David Cameron, do Partido Conservador, assim como familiares do escritor George Orwell.

“Ao focalizar os proprietários de escravos, o nosso objetivo não é ‘nomear para envergonhar’ ['naming and shaming', na expressão em inglês]. Buscamos desfazer o esquecimento: a ‘re-relembrar’, como diz Toni Morrison, reconhecer as formas pelas quais os frutos da escravidão fazem parte da nossa história coletiva – incorporado em nosso país, nas casas de nossas cidades, nas instituições filantrópicas, nas coleções de arte , nos bancos comerciais e nas pessoas jurídicas, nas estradas de ferro, e nas formas que continuamos a pensar sobre raça”, explica Catherine Hall, pesquisadora-chefe da iniciativa, em artigo publicado no diário inglês The Guardian. “Proprietários de escravos estavam ativamente envolvidos na reconfiguração de corrida após a escravidão, popularizando novas legitimações para a desigualdade que permanecem parte do legado do passado colonial da Grã-Bretanha”, emenda.

O arquivo reúne 46 mil pedidos de “indenização” encaminhados por ex-donos de escravos ao governo britânico. São registros detalhados que, conforme descreve Catherine, “foram mantidos longe de todos aqueles que reivindicavam compensações” e que tinham sido sistematicamente estudados antes. Segundo ela, os documentos consistem em uma “nova luz” para se entender “como o negócio da escravidão contribuiu de forma significativa para a Grã-Bretanha tornar-se a primeira nação industrial”. O esforço de pesquisa vai de encontro, segundo a historiadora, ao desejo de homens e mulheres que almejavam que suas identidades como proprietários de escravos fossem esquecidas.

A exposição das entranhas políticas, econômicas e culturais da escravidão antiga se dá no mesmo contexto em que se fortalece um movimento nos países do Caribe (com Barbados à frente) que reivindica, junto aos governos das nações colonizadoras, formas de compensação pelos profundos danos causados pela exploração do comércio transatlântico de vidas humanas ao conjunto de ex-colonizados. Para a responsável pela pesquisa, o trabalho, que dá contornos mais palpáveis à dívida da “moderna” Grã-Bretanha com a escravidão “antiga”, tem o objetivo de contribuir “para uma compreensão mais rica e mais honesta das histórias conectadas do império”.


Marcação a ferro, prática recorrente nas antigas formas de escravidão (Foto: Reprodução)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Franz Kafka e a Segunda-feira


Ao contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a "Pequena Fábula" possa receber um título mais adequado aos tempos atuais: "segunda-feira". O artigo é de Flávio Ricardo Vassoler.


No início do século XX, Franz Kafka escreveu uma

Pequena Fábula (*)

“‘Ah’, disse o rato, ‘o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro’. – ‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o”.

Muitas teses e antíteses já entraram em entrechoque para tentar determinar o sentido cabal que daria conta da labiríntica fábula em questão. Assim, ora a vastidão inicial do mundo estaria relacionada ao Jardim do Éden, a utopia mítica, ora ela diria respeito aos primórdios das revoluções, em que a euforia coletiva pela nova miríade de oportunidades daria vazão a um perigoso caos político que logo precisaria de restrições para não se transformar em completa balbúrdia. As paredes que acabam por despontar à direita e à esquerda seriam, então, o sinal da Queda dos homens – a perda da liberdade original pela expulsão do Éden idílico – e/ou a chegada de um ditador que, com pulso firme, colocaria ordem na desordem, uma vez que não poderia haver vácuo no poder. Religiosos e políticos fariam um breve armistício, no entanto, diante da fraqueza original do homem – o rato trêmulo – que demandaria a tutela infalível de Deus e/ou do Guia Genial dos Povos – eis a onisciência e a onipresença do gato. (Iconoclastas tanto da tradição quanto do poder, os anarquistas de plantão discordariam de ambos os lados e diriam ser necessário pôr abaixo o labirinto; se tal fato acontecesse – dizem os religiosos e políticos que apenas por ora voltam a concordar –, o bebê seria jogado fora junto com a água do banho, já não haveria motivo para discordâncias, já não haveria nem mesmo a fábula de Kafka, “nós não teríamos o que fazer, ficaríamos todos desempregados, e vocês, anarquistas, já não teriam o que destruir”.)

Diante do labirinto polissêmico de Kafka, que arremessa as interpretações contrárias e contrariadas em um turbilhão infindável de contradições, uma máxima de Oscar Wilde parece dar o tom para a contenda fabular entre Tom e Jerry. “Quando os críticos discordam entre si, o artista concorda consigo mesmo” (**).

E se ao invés de perguntarmos o que a pequena fábula quis dizer, passarmos a interrogar como ela o fez? Se voltarmos nossas atenções para a forma kafkiana de estruturação e movimentação dos conflitos, talvez cheguemos à conclusão de que a dinâmica da História está inconclusa; de que a desigualdade entre gato e rato permanece, de modo a conferir atualidade à dialética entre liberdade e autoritarismo; de que o sentido está não no conteúdo unívoco que a fábula possa conter, mas na forma polissêmica que norteia e desnorteia as mais diversas interpretações e cuja dinâmica prolonga as contradições sem reconciliar os conflitos que a História ainda não resolveu. A meu ver, a atualidade de Kafka reside na plasticidade da moldura de seu labirinto, cujas galerias comportam os entrechoques das mais diversas teses e antíteses. Analisemos, então, o modo pelo qual a forma distópica, em estreito diálogo com as contradições históricas, transforma os discursos utópicos em antecâmaras do labirinto, ao fim do qual a saída não passa de uma nova entrada. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, é preciso salientar o caráter fabular da breve estória kafkiana. Animais com características humanas vivenciam experiências e procuram torná-las inteligíveis para si próprios – e para os leitores. Animais sociais que somos, nós não vivemos em meio à natureza sem a mediação das transformações históricas. Assim, o processo de identificação entre o leitor humano e as personagens animais apresenta, desde o princípio, um sentido trágico e cínico para a fábula: como a humanidade ainda não conseguiu superar as contradições de um capitalismo voraz que arremessa seus súditos em relações de competição contínua e autofágica, a personificação dos animais e a animalização das pessoas medem a distância histórica entre a utopia não realizada e a distopia de nosso cotidiano. Ademais, a cadeia alimentar que coage os animais – mas que não deveria coagir os animais racionais – estabelece uma hierarquia inequívoca entre gato e rato: predador e presa. Quando entreveem essa assimetria, muitos leitores associam imediatamente a figura do gato ao poder, enquanto o rato representaria o povo secularmente acossado. Tal leitura não leva em consideração a lógica impessoal do poder que subjaz à construção kafkiana.

O século XX, século kafkiano, demonstrou que a revolução bem pode degringolar em contrarrevolução. O líder fascista Benito Mussolini certa vez afirmou que, após a revolução, resta o problema dos revolucionários. Seria possível exercer contínuas autocríticas sem municiar os opositores que almejam o poder? Mas sem o exercício contínuo da crítica e da autocrítica, como garantir que o poder e os poderosos não demandarão a autocracia? Ora, os primórdios da revolução pareciam ter transformado o mundo em mera imagem e representação, tudo parecia possível. Trótski certa vez profetizou que, em meio à sociedade transformada pelo socialismo, o nível médio dos cidadãos seria comparável a Marx e a Aristóteles. Antes que conservadores onipresentes riam do revolucionário russo, é preciso levar em consideração o profundo otimismo histórico que embasava tal colocação. A revolução prometia romper os aguilhões que impediam o desenvolvimento humano. Artistas russos chegaram a declinar da autoria de suas obras. “Não fomos nós que as criamos, a história falou através de nós, o proletariado é o grande autor”. Mas os interrogatórios vindouros da polícia política de Stálin acabariam com o otimismo da autoria coletiva. “Vamos, confesse!” O patíbulo e o degredo na Sibéria como testemunhas oculares.

A esquerda tende a se endireitar quando toma as rédeas do poder. A direita não sabe bem o que fazer com o bastão da oposição, mas precisa minimamente contestar se quiser sobreviver em sua mais nova e insólita posição. A História nos ensina que a lógica do poder tende a subverter e a inverter as prerrogativas do líder, grupo e partido que ocupam o trono.

Nesse sentido, gato e rato são menos papéis demarcados e unívocos do que funções dinâmicas a serem ocupadas ora por um ator, ora por outro. Se os esquerdistas não estudarmos as lições de Kafka, estaremos fadados a vestir ainda uma vez a fantasia do gato para colocarmos os trajes de rato naqueles que a revolução obrigou a ceder as velhas vestes de felino. Assim, campos de concentração siberianos, os Gulags de Stálin, revoluções culturais que queimaram livros e paredões não conseguiram romper a lógica taliônica do poder que os revolucionários outrora afirmavam utilizar apenas momentaneamente enquanto o capitalismo não era superado por completo. (Quando os porões da Estação da Luz ficavam superlotados, os torturadores do DOPS paulistano não tinham quaisquer escrúpulos em voltar a dar aulas prática de lógica do poder àqueles que ousavam não delatar os camaradas que ainda não haviam sido presos.)

Ao voltarmos ainda uma vez para a Pequena Fábula, descobrimos que, a princípio, o rato se lamenta pela crescente estreiteza do mundo. O rato, animal combalido em face do gato vindouro, parece demandar maior liberdade. (Se a estória parasse por aqui, os anarquistas iriam a Praga a fim de convidar Franz Kafka para o congresso literário de maio de 1968.) Mas a frase seguinte – a antítese em face da tese que a primeira frase apresenta – narra um ratinho temerário em relação à vastidão inicial do mundo. Podemos deduzir, então, que havia uma imensidão anterior à contínua estreiteza do mundo com a qual o rato se depararia posteriormente. Como decidir qual a posição efetiva do rato? Ele teme as múltiplas possibilidades de um mundo vasto, mas ao mesmo tempo se lamenta por conta do contínuo emparedamento a que o mundo transformado o coage. Enquanto os críticos partidários quiserem atribuir um conteúdo unívoco à trajetória do rato, não será possível ver que a lógica poética de Kafka, ao mimetizar os movimentos contraditórios da História, arremessa o roedor ora à direita, ora à esquerda, ora como sujeito de suas demandas, ora como súdito de seu medo, de modo que a leitura que opte por um único sentido acaba resolvendo artisticamente um conflito que, no terreno da luta de classes, ainda não foi superado. Assim, a despeito da boa intenção inicial que não sabe agir sem tachar amigos e inimigos, camaradas e inimigos do Estado, companheiros e opositores, a tentativa de arregimentar Kafka em um partido ou tendência únicos dilui a enorme atualidade de sua forte crítica social que está presente na dinâmica de sua estória, na lógica poética de sua fábula. O problema para a crítica partidária é que a crítica social kafkiana não resolve as contradições que a História só faz prolongar, e então ela se mostra impessoal e sem muita utilidade para aqueles que só cumprirão os desígnios do poder sem romper com a sua lógica histórica que delineia e define as fronteiras das ações políticas.

O advérbio finalmente, na segunda frase da fábula, traz um certo alento ao pobre ratinho que, enfim, vê as paredes de Deus, do Pai, do pai, do partido, da empresa, do casamento, do clube etc. do etc. lhe darem novamente um mínimo de segurança. Para aqueles que não estamos acostumados a viver segundo o ritmo incerto da liberdade socialmente construída, as contradições históricas sussurram que tende a haver uma grande contiguidade entre o medo de caminhar com as próprias pernas e a entrega da própria autonomia a terceiros para que a incerteza pessoal seja permutada pela tutela alheia. (Se o labirinto de Kafka tivesse os contornos de uma catedral, o ratinho comeria a hóstia e se confessaria com o padre “por séculos e séculos, amém”.) Mas, novamente, Kafka dá dinamismo ao movimento da contradição, já que o ratinho passa a sentir que, agora, “essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra”. Vale a pena retomarmos o fio da meada: primeiro o rato é altivo, pois reclama da estreiteza do mundo – rato revolucionário; depois o ratinho sente medo pela vastidão inicial e se alivia com o fato de que, à distância, à direita e à esquerda, as paredes, isto é, os limites, passam a se delinear – ratinho reacionário; agora, ele volta a se contrapor ao movimento do labirinto, uma vez que as paredes que se estreitam cada vez mais passam a coagi-lo. Além de sugerir que há uma contiguidade entre os extremos, como se a liberdade total e a coação totalitária trouxessem temores e tremores parelhos, a pequena fábula de Kafka nos leva ao “último quarto”, em cujo canto fica a ratoeira para a qual o rato se encaminha.

Abstraiamos o conteúdo da micronarrativa e tentemos desenhar o trajeto patibular de Mickey Mouse. O descampado idílico do Gênesis não tem fronteiras. O olhar do roedor não consegue abraçar o horizonte. (E, se pensarmos bem, será que conseguimos imaginar a noção do infinito sem que, no limite, coloquemos algum tipo de delimitação – uma cerca – para nos dar guarida?) De repente, o rato marcha – começa a correr de medo, a bem dizer – e as paredes convergem, à direita e à esquerda. Ora, salvo engano – e o poder bem gosta de nos ludibriar –, estamos cada vez mais diante de um funil, a metade de um losango, em cujo extremo desponta a ratoeira. Ora, o ratinho revolucionário e reacionário é provido de razão, só que o cérebro roedor precisa das proteínas do queijo para continuar a pensar, a questionar – e a temer. Mas – e o fluido das contradições kafkianas sempre desliza ao sabor de conjunções adversativas –, se as paredes convergem unidirecionalmente, basta ao rato dar meia-volta – a História fardada diria: “volver!” – para que as paredes antes convergentes passem a divergir e a se distanciar. O mundo voltará a ficar vasto, o Éden será então recuperado, mas e quanto ao medo, o irmão mais novo do pecado original? A Pequena Fábula de Kafka seria uma estória sem fim, já que a retomada da vastidão levaria o rato novamente à fuga para o extremo oposto em que está a ratoeira, e, ao se deparar com o beco sem saída, ele sentiria a nostalgia do paraíso perdido do qual fugiria ainda uma vez para logo em seguida voltar a buscá-lo – “por séculos e séculos, amém”.

Mas eis que a criatividade de Kafka acompanha as contradições irresolutas da História e faz surgir na estória uma nova personagem, o bichano que esta análise já havia anunciado. Leiamos o conselho que o gato, possível autor de best-sellers de autoajuda, tem a dar ao roedor – e aos leitores:

– Você só precisa mudar de direção.

Por um lado, se o rato seguir o conselho do gato, logo encontrará a diluição de seus temores e tremores no suco gástrico do estômago felino. Por outro, se o rato degustar o queijo gorgonzola que o magnetiza sobre a ratoeira, já não haverá mais choro e ranger de dentes. Que fazer?

Neste momento, o leitor me permitirá a heresia de apontar um certo anacronismo na Pequena Fábula kafkiana. O escritor tcheco complementou a colocação do gato com o seguinte arremate: “disse o gato e devorou-o”. Será que, no atual contexto histórico, seria preciso dizer que o gato devorou o rato? Onde estão as efetivas contestações? Onde está a revolução? Quando uma rede de fast food árabe utilizou, há alguns anos, o mote revolução nos preços para os preços revolucionários de suas esfihas abertas, cujos anúncios eram apresentados com a boina de Che Guevara, entrevi o labirinto histórico em que estamos encurralados. O discurso potencialmente emancipatório é cooptado como um lucrativo slogan de mercado. Ao contrário do que diziam os revolucionários de maio de 68, o capitalismo tardio sentencia que a revolução será televisionada.

O arremate de Kafka mostrou-se profético diante do espectro nazista que, nas primeiras décadas do século XX, já rondava a Europa. Hoje, no entanto, o carrasco parece ter sido introjetado, não sabemos muito bem onde está o poder – quem, ou pior, o que ele é. Mas ele nos acorda cotidianamente às 5h – ou às 8h, para o privilégio dos paulistanos que moram dentro do perímetro central circundado pelas marginais. Se retirarmos a última parte da frase que conclui a Pequena Fábula, levaremos às últimas consequências o labirinto kafkiano. Afinal, após o conselho do gato, o que é que o rato vai fazer? Fugirá do gato e correrá para o patíbulo da ratoeira? Tapeará a fome e renegará a ratoeira apenas para correr em direção ao corredor polonês da garganta do gato? Ou será que, diante deste novo fim não finalizado, desta nova resolução irresoluta que propomos, o rato não lançará mão de um dos últimos redutos que (ainda) não foram totalmente cooptados pelo poder – a imaginação? Por mais exígua e improvável que a escapatória se apresente, um final que pressuponha maior abertura daria continuidade à contradição da estória e da História: a possibilidade de fuga caminharia lado a lado com o prolongamento sádico da tortura do ratinho.

Ao contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a Pequena Fábula possa receber um novo título mais condigno com o prosaísmo (supostamente) despolitizado dos tempos atuais: Segunda-feira.

(*) In Narrativas do Espólio, tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 138.

(**) Aforismos ou mensagens eternas, tradução de Duda Machado. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 69.

Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O modelo indiano das Escolas-Ashram, no filme "O Invencível"

03012013 o invencivel cartazÍndia - PGL - [José Paz Rodrigues] Na antiga Índia um «Ashram», também chamado «Gurukul», era um eremitério e, ao mesmo tempo, uma escola no bosque ou floresta. Onde os sábios, os «sadhus» (santos), os «rishis» (ascetas), os mestres e os estudantes, seus discípulos, viviam em paz e tranquilidade em harmonia com a Natureza.

Tradicionalmente, estas escolas na floresta, chamadas assim mesmo «Topovanas», situavam-se afastadas das zonas urbanas e das vivendas, em florestas, bosques ou lugares montanhosos, no meio de amenos ambientes naturais, propícios para o ensino, as aprendizagens e a meditação espiritual. Com espaços adequados para todo o tipo de atividades: intelectuais, físicas, estéticas, exercícios corporais e todo o tipo de práticas e formas de ioga. Nas mesmas residiam os mestres e docentes com as crianças de diferentes níveis. A palavra «Ashram», a mais usada para este tipo de instituições educativas, que permanece na atualidade, deriva do termo sânscrito «aashraya», que significa «proteção». Houve em toda a Índia muitos «Gurukuls» ou «Ashrams», nos quais infinidade de rapazes se formaram e, em especial, nas aprendizagens apreciativas, no respeito pola paz e a natureza, ademais de adquirir as aprendizagens instrumentais da leitura, a escrita e o cálculo.
Os mais famosos, que ainda hoje subsistem, foram o «Sabarmati Ashram», perto da cidade de Ahmedabad, criado por Gandhi, e que serviu de sede durante a sua longa luita pela independência da Índia. O «Auronville» ou «Aurobindo Ashram», fundado polo grande bengali Aurobindo Ghosh na cidade de Pondichery, uma cidade que conserva muitas reminiscências francesas. E, especialmente, a escola Santiniketon (Morada da Paz), ashram criado por Robindronath Tagore em 22 de dezembro de 1901, na quinta que lhe cedeu seu pai, para fundar uma escola modelo, em que sabiamente integrou o modelo das antigas escolas indianas do bosque com o modelo das escolas novas europeias. As quais, de alguma forma, no contexto europeu, são similares aos ashrams indianos, por serem criadas em plena natureza e afastadas das cidades. O exemplo temo-lo na Odenwald de Paul Geheeb, na Escola das Rochas de Demolins ou na escocesa Abbotsholme de Cecil Reddie. Sem esquecer-nos das famosas escolas do bosque municipais de princípios do século vinte em Barcelona, dirigidas por Rosa Sensat. Ou das escolas monacais medievais que existiam nos mosteiros, nomeadamente nos beneditinos e nos cistercienses.
O rapaz protagonista do formoso filme do bengali Sotioyit Ray, considerado como uma obra-mestra do cinema mundial, antes de partir para Calcutá a prosseguir estudos superiores, como adolescente, frequenta uma escola-ashram do tipo que estamos a comentar. Ali desperta a sua inteligência e descobre que tem aptitudes para continuar a estudar, destacando entre os demais. O seu mestre anima-o a superar-se e continuar formando-se, pois sabe que tem qualidades para isso.
Ficha Técnica do filme:
Título original em bengali: Oporayito (O Invencível).
Diretor: Sotioyit Ray (Bengala-Índia, 1956, Branco e Preto, 115 min.).
Roteiro: S. Ray, baseado no romance de Bibhutibhushan Bondopadhai.
Música: Robi Shonkor. Fotografia: Subroto Mitro.
Atores: Kanu Banerji (Harihar Ray, o pai), Karuna Banerji (Sorboyoya, a mãe), Pinaki Sengupto (Opu jovem), Smaron Ghosal (Opu adolescente), Santi Gupto (Ginnima), Subodh Ganguli (o diretor da escola), Hemonto Chatteryi (o mestre), Horendrokumar Chokrovorti (o doutor) e outros.
Prémios: Leão de Ouro ao melhor filme no Festival de Veneza de 1957. Golden Gate ao melhor diretor no Festival de São Francisco e Melhor Filme Estrangeiro no BAFTA.
Argumento: Depois do falecimento de seu pai e de viver por algum tempo na cidade sagrada indiana de Benarés, o jovem Opu, de dez anos, muda-se com a sua mãe para a casa de um tio que os acolhe. Opu frequenta a escola local onde é um bom aluno, ao ponto de receber uma bolsa para realizar estudos superiores e ir estudar a Calcutá. Opu decide partir e sua mãe fica angustiada com a sua partida e com a sua crescente independência. Ela ama muito seu filho e pretende o seu sucesso, mas não quer ficar sozinha. O filme é sem dúvida uma comovente e bela história filmada sobre a vida e a morte no seio de uma família bengali. Configurou o segundo título da famosa trilogia de Ray intitulada «O Mundo de Opu».
Na Índia só um guru é um verdadeira modelo de mestre:
Um dia Tagore, diante dos estudantes, futuros mestres, da Escola Normal de Tóquio no Japão, pronunciou, entre outras, as lindas palavras seguintes: «Para ser mestre de crianças é completamente necessário ser como uma criança, esquecer o que sabemos e que já chegamos ao final dos conhecimentos. Se se quer ser um verdadeiro guia de crianças, não há que pensar em que se tem mais idade, nem que se sabe mais, nem nada polo estilo; há que ser um irmão mais velho, disposto a caminhar com as crianças pola mesma senda do saber elevado e da aspiração. E o único conselho que posso dar-vos nesta ocasião, se vos ides dedicar a ensinar aos filhos dos homens, é este: que cultiveis a alma da criança eterna».
Eis o modelo de mestre de um ashram, que teria que ser o de todas as escolas do mundo. Uma espécie de guru, palavra sagrada para os indianos, que só pode ser usada com aqueles mestres que reúnem as seguintes qualidades: ser alegre, otimista, altruísta, amar a vida, possuir profundos valores humanos, amar a paz, ser solidário, amar a natureza, respeitar a psicologia das crianças, adaptar-se às mesmas (não que estas se adaptem ao mestre), saber motivar e entusiasmar, saber provocar o interesse e a curiosidade, não impor as suas ideias respeitando as dos estudantes, caminhar ao lado dos alunos para refletir sobre os saberes e aprendizagens que se vão adquirindo, compreender as possíveis faltas dos educandos, não empregar a estratégia dos prémios e os castigos, fomentar a bondade e a generosidade, a verdade, os valores éticos e o disfrute da beleza ali onde existe, nas pessoas, em toda a natureza, no céu, o sol, a lua e as estrelas, a beleza da poesia, a música, a dança, o teatro, o cinema... E, acima de tudo, ser uma pessoa íntegra, que também tem profundos conhecimentos da cultura mundial, que sabe bem ensinar com acertadas estratégias didáticas. Não fechando-se às diferentes culturas e formas de ver a vida e não sendo sectário perante a diversidade que existe.
Um formoso filme cheio de belas imagnes da vida mesma:
O cinema de Ray, que se formou na universidade internacional Visva-Bharoti de Santiniketon e foi aluno de Tagore, é de um elevado realismo. Recebeu grande influência do grande diretor Jean Renoir e do neorrealismo italiano, especialmente do filme de De Sica Ladrão de bicicletas, que o entusiasmou quando o viu em Londres. Ray escreveu nos anos 40 estas belas palavras: «A crueza das imagens do cinema é a própria vida. É inacreditável como um país que inspirou tanta pintura, música e poesia, falhe perante o realizador de cinema. Ele só tem de ter os olhos abertos e os ouvidos atentos. Deixem-no fazê-lo». Foi grande amigo de Renoir, Antonioni e Kurosawa. Este chegou a dizer uma vez acertadamente: «Não ter visto o cinema de Ray significa existir no mundo sem ver o sol ou a lua». Precisamente aí radica a força do seu cinema, muito bem representado no filme que comentamos, o segundo da sua formosa e famosa trilogia intitulada «O Mundo de Opu».
O Invencível, título do filme, demonstra certa ironia, da própria vida retratada, que lhe tirou tudo ao rapaz protagonista, ficando ele só e os seus sonhos. O falecimento antes de seu pai e logo de sua mãe, uma cena além de muito bela, acompanha um dos simbolismos mais fortes para a personagem de Opu até então. Este momento conta-o em imagens de grande sensibilidade o cineasta bengali. A história da família, as personagens tratando de sobreviver e prosperar, chegam-nos diretamente ao coração e compreendem-se em qualquer parte do mundo. Tudo está contado e filmado de maneira singelamente magistral. Uma delícia cinematográfica que convida a refletir sobre a vida humana, sobre o esforço dos nossos pais para que saiamos adiante e sejamos mais que eles, sobre quão ingratos somos os filhos com os pais, algo que não reconhecemos até que se nos vão deste mundo e já não podemos olhá-los mais aos olhos.
O filme tem ritmo, fluidez e, embora com certa tristeza, esconde um transfundo de esperança. Não deixa de ser um reflexo da vida mesma, a inocência da infância que se vai forçosamente, dando passo à etapa em que se começa a ver o mundo mais claramente e a aprender dele. A aprender com boas formas, estudando, e com outras menos bem recebidas, com os golpes que dá o destino. Estamos perante um filme precioso, com uma história bem contada, de uma força prodigiosa. O impacto de cada imagem encontra-se na exuberância da paisagem de Bengala, na presença da natureza, nas modestas vivendas humanas, no modo de vida, nos costumes, nas tradições, nos exóticos sons dos instrumentos musicais autóctones e, especialmente, nas pessoas em si. As suas relações, conversas, preocupações, esperanças, tristezas e felicidade.
Possivelmente estamos perante o filme que melhor representou a etapa da adolescência, ademais de forma universal, fácil de entender em todos os lugares do mundo. No qual também se apresenta a dicotomia entre o campo e a cidade, o contexto rural e o urbano. Um representando a resignação e a tradição. O outro a vida moderna, o crescimento, o progresso e o futuro. Ao menos no contexto dos anos vinte desse grande e imenso país que é Índia. Tema este que hoje veríamos com outros olhos e outra atitude, pois são muitos os que, não só por razões económicas, voltam às aldeias e ao mundo rural, onde acham que há mais autenticidade, mais solidariedade, menos individualismo, mais cooperação e menos poluição.
Este formoso filme de Ray reflete à sua vez isso que chamamos «lei de vida», onde por desgraça ou por sorte assim é, e não há volta atrás na escolha dos nossos factos. Um filme que convida à reflexão e que é verdadeira poesia. E não só por mostrar o modelo das escolas-ashrams indianas. Também por mostrar o importante que é o papel e o labor das mães na educação dos filhos e na vida em geral dum país. Muitas vezes injusta e imoralmente pouco valorados. Uma obra-mestra realizada polo diretor bengali Ray, quem, merecidamente, em 1992, recebeu o Óscar por toda a sua magna e linda filmografia.
Temas para refletir:
- Analisar o importante que é ter bons mestres e docentes, com qualidades humanas e didáticas. Fazer propostas de como poderíamos escolhê-los e como formá-los adequadamente. Tomar como ponto de partida os únicos modelos de formação do professorado acertados que tivemos no país: o Plano Profissional de 1931 e o Plano de 1967.
- Analisar a linguagem cinematográfica utilizada por Ray neste filme: tipos de planos, movimentos de câmara, uso do tempo e do espaço, simbolismo das diferentes imagens e como amostra nitidamente que no cinema, mais que a palavra, a imagem é o mais importante. Por isso a mais acertada definição de cinema é que é a arte das imagens em movimento.
- Desenhar um plano de formação do professorado em exercício, para levar para a frente no país, com o objetivo fundamental de sensibilizar os atuais docentes de todos os níveis educativos sobre o seu importante ofício e também a sua responsabilidade perante os estudantes. Acompanhado de um importante projeto formativo sobre adequadas estratégias educativas para utilizar nas aulas. Este tema, nesta altura, com um tão nefasto ministro da educação, o pior em muitos anos, não deixa de ser uma utopia. Por isso o melhor, para o por em prática, é a auto-organização dos docentes. Como aquela que se teve que fazer nos anos sessenta e setenta durante as últimas décadas do franquismo.
(*) Académico da AGLP, didata e pedagogo tagoreano. Autor, igualmente, da coluna de opinião Dizer e Fazer.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Como foi inventado o povo judeu - Um livro importante de Shlomo Sand


Miguel Urbano Rodrigues
 
 
Embora crescentemente desmentidos pela arqueologia, pela genética e pela historiografia séria, os mitos de que se alimenta o sionismo continuam a constituir a base em que assenta a reivindicação de legitimidade do estado etnocrático, confessional, racista e colonialista de Israel. O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do país, um Estado nascido de monstruoso genocídio em terra alheia, um Estado cuja prática apresenta matizes neofascistas.

Uma chuva de insultos fustigou em Israel Shlomo Sand quando publicou um livro cujo título - «Como foi inventado o povo judeu” * - desmonta mitos bíblicos que são cimento do Estado sionista de Israel.
Professor de Historia Contemporânea na Universidade de Tel- Aviv, ele nega que os judeus constituam um povo com uma origem comum e sustenta que foi uma cultura especifica e não a descendência de uma comunidade arcaica unida por laços de sangue o instrumento principal da fermentação proto-nacional.
Para ele o «Estado judaico de Israel», longe de ser a concretização do sonho nacional de uma comunidade étnica com mais de 4 000 anos, foi tornado possível por uma falsificação da história dinamizada no seculo XIX por intelectuais como Theodor Herzl.
Enquanto académicos israelenses insistem em afirmar que os judeus são um povo com um ADN próprio, Sand, baseado numa documentação exaustiva, ridiculariza essa tese acientífica.
Não há aliás pontes biológicas entre os antigos habitantes dos reinos da Judeia e de Israel e os judeus do nosso tempo.
O mito étnico contribuiu poderosamente para o imaginário cívico. As suas raízes mergulham na Bíblia, fonte do monoteísmo hebraico. Tal como a Ilíada, o Antigo Testamento não é obra de um único autor. Sand define a Bíblia como «biblioteca extraordinária» que terá sido escrita entre os séculos VI e II antes da Nossa Era. O mito principia com a invenção do «povo sagrado» a quem foi anunciada a terra prometida de Canaã.
Carecem de qualquer fundamento histórico a interminável viagem de Moisés e do seu povo rumo à Terra Santa e a sua conquista posterior. Cabe lembrar que o actual território da Palestina era então parte integrante do Egipto faraónico.
A mitologia dos sucessivos exílios, difundida através dos séculos, acabou por ganhar a aparência de verdade histórica. Mas foi forjada a partir da Bíblia e ampliada pelos pioneiros do sionismo.
As expulsões em massa de judeus pelos Assírios são uma invencionice. Não há registo delas em fontes históricas credíveis.
O grande exilio da Babilónia é tão falso como o das grandes diásporas. Quando Nabucodonosor tomou Jerusalém destruiu o Templo e expulsou da cidade um segmento das elites. Mas a Babilonia era há muito a cidade de residência, por opção própria, de uma numerosa comunidade judaica. Foi ela o núcleo da criatividade dos rabinos que falavam aramaico e introduziram importantes reformas na religião mosaica. Sublinhe-se que somente uma pequena minoria dessa comunidade voltou à Judeia quando o imperador persa Ciro conquistou Jerusalém no séc. VI antes da Nossa Era.
Quando os centros da cultura judaica de Babilonia se desagregaram, os judeus emigram para a Bagdad abássida e não para a «Terra Santa».
Sand dedica atenção especial aos «Exílios» como mitos fundadores da identidade étnica.
As duas «expulsões» dos judeus no período Romano, a primeira por Tito e a segunda por Adriano, que teriam sido o motor da grande diáspora, são tema de uma reflexão aprofundada pelo historiador israelense.
Os jovens judeus aprendem nas escolas que «a nação judaica» foi exilada pelos Romanos apos a destruição do II Templo por Tito em 70, e posteriormente, por Adriano, em 132. Por si só o texto fantasista de Flavius Joseph, testemunha da revolta dos zelotas, retira credibilidade a essa versão, hoje oficial.
Segundo ele, os romanos massacraram então 1 100 000 judeus e prenderam 97 000.Isso numa época em que a população total da Galileia era segundo os demógrafos atuais muito inferior a meio milhão…
As escavações arqueológicas das últimas décadas em Jerusalém e na Cisjordânia criaram aliás problemas insuperáveis aos universitários e teólogos sionistas que «explicam» a história do povo judeu tomando a Torah e a palavra dos Patriarcas como referências infalíveis.
Os desmentidos da arqueologia perturbaram os historiadores. Ficou provado que Jericó era pouco mais do que uma aldeia sem as poderosas muralhas que a Bíblia cita. As revelações sobre as cidades de Canaã alarmaram também os rabinos. A arqueologia moderna sepultou o discurso da antropologia social religiosa.
Em Jerusalém não foram encontrados sequer vestígios das grandiosas construções que segundo o Livro a transformaram no seculo X, a época dourada de David e Salomão, na cidade monumental do «povo de Deus» que deslumbrava quantos a conheceram. Nem palácios nem muralhas, nem cerâmica de qualidade.
O desenvolvimento da tecnologia do carbono 14 permitiu uma conclusão. Os grandes edifícios da região Norte não foram construídos na época de Salomão, mas no período do reino de Israel.
«Não existe na realidade nenhum vestígio - escreve Shlomo Sand - da existência desse rei lendário cuja riqueza é descrita pela Bíblia em termos que fazem dele quase o equivalente dos poderosos reis da Babilonia e da Pérsia». «Se uma entidade política existiu na Judeia do seculo X antes da Nossa Era, acrescenta o historiador, somente poderia ser uma microrealeza tribal e Jerusalém apenas uma pequena cidade fortificada».
É também significativo que nenhum documento egípcio refira a «conquista» pelos judeus de Canaã, território que então pertencia ao faraó.

O SILENCIO SOBRE AS CONVERSÕES

A historiografia oficial israelense, ao erigir em dogma a pureza da raça, atribui a sucessivas diásporas a formação das comunidades judaicas em dezenas de países.
A Declaração de Independência de Israel afirma que, obrigados ao exilio, os judeus esforçaram-se ao longo dos seculos por regressar ao país dos seus antepassados,
Trata-se de uma mentira que falsifica grosseiramente a História.
A grande diáspora é ficcional, como as demais. Apos a destruição de Jerusalém e a construção de Aelia Capitolina somente uma pequena minoria da população foi expulsa. A esmagadora maioria permaneceu no país.
Qual a origem então dos antepassados de uns 12 milhões de judeus hoje existentes fora de Israel?
Na resposta a essa pergunta, o livro de Shlomo Sand destrói simultaneamente o mito da pureza da raça, isto é da etnicidade judaica.
Uma abundante documentação reunida por historiadores de prestígio mundial revela que nos primeiros séculos na Nossa Era houve maciças conversões ao judaísmo na Europa, na Asia e na Africa.
Três delas foram particularmente importantes e incomodam os teólogos israelenses.
O Alcorão esclarece que Maomé encontrou em Medina, na fuga de Meca, grandes tribos judaicas com as quais entrou em conflito, acabando por expulsá-las. Mas não esclarece que no extremo Sul da Península Arábica, no atual Iémen, o reino de Hymar adotou o judaísmo como religião oficial. Cabe dizer que chegou para ficar. No seculo VII o Islão implantou-se na região, mas, transcorridos treze seculos, quando se formou o Estado de Israel, dezenas de milhares de iemenitas falavam o árabe, mas continuavam a professar a religião judaica. A maioria emigrou para Israel onde, aliás, é discriminada.
No Imperio Romano, o judaísmo também criou raízes, mesmo na Itália. O tema mereceu a atenção do historiador Díon Cassius e do poeta Juvenal.
Na Cirenaica, a revolta dos judeus da cidade de Cirene exigiu a mobilização de várias legiões para a combater.
Mas foi sobretudo no extremo ocidental da África que houve conversões em massa à religião rabínica. Uma parcela ponderável das populações berberes aderiu ao judaísmo e a elas se deve a sua introdução no Al Andalus.
Foram esses magrebinos que difundiram na Península o judaísmo, os pioneiros dos sefarditas que, apos a expulsão de Espanha e Portugal, se exilaram em diferentes países europeus, na Africa muçulmana e na Turquia.
Mais importante pelas suas consequências foi a conversão ao judaísmo dos Khazars, um povo nómada turcófono, aparentado com os hunos, que, vindo do Altai, se fixou no seculo IV nas estepes do baixo Volga.
Os Khazars, que toleravam bem o cristianismo, construíram um poderoso estado judaico, aliado de Bizâncio nas lutas do Império Romano do Oriente contra os Persas Sassânidas.
Esse esquecido império medieval ocupava uma área enorme, do Volga à Crimeia e do Don ao atual Uzbequistão. Desapareceu da Historia no seculo XIII quando os Mongóis invadiram a Europa, destruindo tudo por onde passavam. Milhares de Khazars, fugindo das Hordas de Batu Khan, dispersaram-se pela Europa Oriental. A sua principal herança cultural foi inesperada. Grandes historiadores medievalistas como Renan e Marc Bloch identificam nos Kahzars os antepassados dos asquenazes cujas comunidades na Polonia, na Rússia e na Roménia viriam a desempenhar um papel fulcral na colonização judaica da Palestina.

UM ESTADO NEOFASCISTA

Segundo Nathan Birbaum,o intelectual judeu que inventou em 1891 o conceito de sionismo, é a biologia e não a língua e a cultura quem explica a formação das nações. Para ele, a raça é tudo. E o povo judeu teria sido quase o único a preservar a pureza do sangue através de milénios. Morreu sem compreender que essa tese racista, a prevalecer, apagaria o mito do povo sagrado eleito por Deus.
Porque os judeus são um povo filho de uma cadeia de mestiçagens. O que lhes confere uma identidade própria é uma cultura e a fidelidade a uma tradição religiosa enraizada na falsificação da Historia.
Nos passaportes do Estado Judaico de Israel não é aceite a na
cionalidade israelense. Os cidadãos de pleno direito escrevem «judeu». Os palestinos devem escrever «árabe», nacionalidade inexistente.
Ser cristão, budista, mazdeísta, muçulmano, ou hindu resulta de uma opção religiosa, não é nacionalidade. O judaísmo também não é uma nacionalidade.
Em Israel não há casamento civil. Para os judeus, é obrigatório o casamento religioso, mesmo que sejam ateus.
Essa aberração é inseparável de muitas outras num Estado confessional, etnocracia liberal construída sobre mitos, um Estado que trocou o yiddish, falado pelos pioneiros do «regresso a Terra Santa», pelo sagrado hebraico dos rabinos, desconhecido do povo da Judeia que se expressava em aramaico, a língua em que a Bíblia foi redigida na Babilónia e não em Jerusalém.
O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do país, um Estado nascido de monstruoso genocídio em terra alheia, um Estado cuja prática apresenta matizes neofascistas.
O livro de Shlalom Sand sobre a invenção do Povo Judeu é, além de um lúcido ensaio histórico, um ato de coragem. Aconselho a sua leitura a todos aqueles para quem o traçado da fronteira da opção de esquerda passa hoje pela solidariedade com o povo mártir da Palestina e a condenação do sionismo.
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Vila Nova de Gaia, 31 de Dezembro de 2012~
*Shlomo Sand, «Comment fut inventé le peuple juif» Flammarion, Paris 2010

domingo, 9 de dezembro de 2012

Bram Stoker vive!

Nikelen Witter
Especial para o Sul21

Não, ele não morreu. Acima, Christopher Lee como Drácula.

O título dramático pode parecer exagerado. Afinal, Bram Stoker jamais foi conhecido como um autor genial. Nem em sua época, nem passados 100 anos de sua morte. Sua criação, porém, assentou seu pé na imortalidade. Drácula, a obra-prima de Stoker, ganhou vida própria (com o perdão da ironia) e superou em muito seu criador. Se levarmos em conta, especialmente, a primeira metade do século XX, perceberemos, inclusive, que o autor praticamente sumiu das referências feitas a seu personagem mais famoso. Resgatado no título de uma adaptação de sua obra num filme dos anos 90, assinado pelo oscarizado Francis Ford Coppola, Stoker assumiu notoriedade como um dos principais autores no estilo do romance gótico vitoriano.

Lugosi em momento de concentração

Drácula é um excelente livro. Bem construído, elaborado com esmero ao longo de sete anos de pesquisas e trabalho. Foi considerado “a sensação da temporada” em 1897. Ainda assim, é da personagem, mais que a obra, de quem todos se lembram. É Drácula, o conde — seja ele assimilado ao empalador romeno, ou aos rostos (e vozes) carismáticos de Bela Lugosi e Christopher Lee — que assume a frente de tudo quando nos referimos à Stoker, a tal ponto de muitos tentarem, ainda hoje, ler na obra a vida do escritor. Isso porque, ao contrário de outros autores góticos, o irlandês teve uma vida ordinária, sem grandes feitos ou conexões, tendo escrito 12 romances e alguns volumes de contos. Era crítico teatral e pessoa de gostos convencionais. Foi batizado por seus pais e alimentava-se normalmente.

Bram Stoker: até virar título do filme de Coppola, o autor fora engolido por seu personagem

Bram Stoker

Nascido em 8 de novembro de 1847, em Clontarf, subúrbio ao norte de Dublin, Stoker foi o terceiro de sete filhos do casal Abraham Stoker — um funcionário público de pouca expressão — e Charlotte Mathilda Blake Thornley, uma escritora com tendências feministas. A infância foi marcada pela doença, estando ele, muitas vezes, à beira da morte e praticamente sem poder ficar em pé até quase os sete anos. Recuperado, o jovem Bram cursou uma escola privada e, mais tarde, graduou-se com honras no conceituado Trinity College, onde, inclusive, foi atleta em nível de competição universitária. Interessado em teatro, Stoker trabalhou para formar-se como crítico desta atividade e foi por meio dela que conheceu a pessoa que os biógrafos apontam como a mais importante de sua vida: o ator inglês Henry Irving.
Recém-casado com Florence Balcombe — disputada beldade local que fora cortejada inclusive por Oscar Wilde — Stoker aceitou o convite de Irving e mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar no teatro que pertencia ao ator, o Lyceum Theatre. Ocupou diversos cargos, como diretor do teatro e agente de Irving, permanecendo nestas funções por 27 anos. Paralelamente, mantinha viva uma já iniciada carreira como poeta, contista e romancista. Em fins de 1879, nasceu o primeiro e único filho do casal Stoker, batizado como Irving Noel Thornley Stoker.

Henry Irving: ator do qual Stoker era agente

Graças aos contatos de Irving, Stoker pode circular na alta sociedade da época, chegando a travar conhecimento com homens como o pintor James Abbott McNeill Whistler e os escritores Sir Arthur Conan Doyle e Walt Whitman (a quem ele muito admirava e de quem se tornou um amigo próximo). O trabalho com Irving (o ator mais famoso de seu tempo) e a gestão de um dos teatros mais bem sucedidos de Londres, deixavam Stoker constantemente ocupado, isso quando ele não estava em viagem ao continente para acompanhar seu empregador. O pouco tempo dedicado à Florence e ao pequeno Irving, bem como a idolatria dirigida ao ator em suas memórias, faz com que, até hoje, muitos biógrafos e historiadores questionem a natureza profunda da amizade desenvolvida entre ambos. Muitos acreditam até mesmo que Irving exercia um tipo de magnetismo ou domínio sobre Stoker que se assemelhava ao de Drácula sobre suas vítimas. As descrições do conde e de Irving se assemelham, ao mesmo tempo que o próprio Stoker dizia assemelhar-se a Ramfield — personagem bizarro que devora insetos enquanto aguarda, enlouquecido, a vida eterna prometida pelo vampiro, a quem ele nomeia Mestre — em sua devoção pelo patrão. Quando Drácula foi publicado, a dedicatória dirigiu-se a Henry Irving.

Gary Oldman, o Drácula de Coppola, em momento de descontração

Drácula
Stoker jamais viajou para a Europa Oriental, cenário inicial do romance, mas era fascinado pelas histórias obscuras da região, com as quais tomou contato, provavelmente, através de um conhecido seu, o viajante e escritor húngaro Armin Vambery. A publicação de Drácula data de 1897. Mas ele manteve sua produção nos anos que se seguiram com relativo sucesso, muito embora seu livro mais bem sucedido tenha sido a publicação das memórias de sua vida com Irving, que ele escreveu após a morte do ator.
Após vários derrames cerebrais, Bram Stoker faleceu em abril de 1912, em Londres. Alguns biógrafos acreditam que uma sífilis terciária pode ter sido a causa de sua morte. Ele foi cremado e suas cinzas estão depositadas no Crematório Golders Green, em Londres.

Vlad Dracul: muitas mortes e respeitável bigode

Para escrever Drácula, Stoker passou anos pesquisando o folclore europeu e histórias mitológicas dos vampiros. Muitos historiadores discordam da ideia de que ele tenha se inspirado diretamente no nobre romeno Vlad Dracul ou Drácula, também conhecido como Vlad Tepes ou Empalador. Afirmam que as informações que Stoker poderia acessar, em sua época, a sobre a figura real (e, de fato, assustadora) de Vlad eram pífias e que não seriam suficientes para a construção da personagem. O próprio nome Drácula teria sido tirado de um livro pouco confiável, que traduzia a palavra por diabo e não por dragão. De outra forma, mesmo tendo uma história medonha de assassínios e torturas, Vlad era, e é (em certa medida), um herói nacional romeno – além de ter o título, outorgado pelo Papa, de defensor da fé cristã –, o que impediria que, à época, suas características verdadeiras estivessem todas apresentadas em um livro.
Stoker, afora esta pesquisa, aventurou-se pouco na estrutura da escrita. Utilizou-se do formato epistolar, muito em voga no período, para dar o grau certo de veracidade e realismo, bem como de identificação com as personagens. O livro é uma coleção de diários, cartas, telegramas, registros de bordo, recortes de jornais, organizados em torno de uma história em que o vampiro aparece como uma sombra. Um mal à espreita, um terror que cega a capacidade dos homens de vê-lo e obstruiu sua luta contra ele, ao mesmo tempo em que seduz, mortalmente, às mulheres.

Nosferatu, uma Sinfonia de Horror (1922), de Murnau

Atento aos modelos do romance gótico, Stoker construiu seu Drácula a partir justamente do embate entre o mundo moderno e as lendas obscuras do passado humano. Assim, ele não deixa de colocar todo o aparato da racionalidade e ciência modernas à serviço da luta contra o mal. Van Helsing, que o cinema imortalizou como um caçador de vampiros, é, de fato, um cientista, um professor, um conhecedor de mitologia, história natural, medicina, leis, etc. Assim, numa boa leitura, pode-se encontrar referências à Darwin e à evolução, bem como às heroicas transfusões de sangue (uma quase ficção científica numa época em que se desconhecia os tipos sanguíneos e o fator RH). Stoker é um entusiasta do racionalismo e da ciência. Para ele, estas são as principais armas contra o conde. A religião — crucifixos, água benta e hóstias — é uma arma parcial, ligada à própria natureza sobrenatural e antiga (ou antiquada) do vampiro, daí ela estar equiparada em poder às superstições como o alho. O uso destas só tem valor quando empunhados pelo ocidente, depositário da razão moderna e pouco têm efeito nas mãos dos “ignorantes e supersticiosos” camponeses da Transilvânia.

As mulheres: portas escancaradas para o mal

Contudo, é no papel que Stoker dedica às mulheres em sua ficção que boa parte dos estudiosos se concentra. Muitas vezes classificado como misógino, o autor desenha suas personagens femininas como a parte fraca — no sentido de uma porta aberta para o mal — da civilização. Muitos estudiosos concebem Drácula como o verdadeiro pesadelo vitoriano, não pelo conde, mas pelo efeito deste sobre as mulheres. Das três vampiras, sedentas por sangue e sexo, que aprisionam Jonathan Harker no castelo do conde na Romênia, até às virtuosas Lucy e Mina, Stoker está constantemente, colocando seus heróis na defensiva. Os homens parecem não ter forças para resistir a essas criaturas cujos desejos afloram e parecem incontroláveis. Lucy e Mina parecem tê-los em menor escala até ficarem sob o fascínio do conde. Lucy torna-se uma vampira — é a noiva morta, ainda desejável e sensual, mas que suga o sangue de criancinhas. É o horror da anti-mãe. Mina, a jovem liberada que anseia por trabalhar e cuja inteligência se compara à masculina, é ainda mais temível. Ela, o conde parece querer para si. Lucy recebe como punição um coração trespassado e arrancado, a cabeça cortada e a boca preenchida por alho. Uma analogia do casamento vitoriano para alguns historiadores. Mina é salva pela morte do vampiro, mas sua redenção completa vem com o fim de seus desejos de trabalho e a concretização da vida de esposa e mãe.

Winona Ryder: a Mina do filme de Coppola



A chamada “nova mulher” (indico o capítulo de mesmo nome de E. Hobsbawm, em A Era dos Impérios), figura constante na imprensa e literatura da época, parece ter constituído para Bram Stoker, e provavelmente para muitos de seus leitores, um terror verdadeiro. Ao fim, mais que o vampiro, é o que ele desperta em nós e nos que estão a nossa volta que pode, realmente, nos dar medo. Nesse sentido, o questionamento da obra e do escritor ainda está presente e válido. Afinal, que preço se pagaria pela imortalidade?
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A Discovery Civilization tem um bom documentário a respeito do livro de Bram Stoker:
Nikelen Witter é escritora e historiadora