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quinta-feira, 5 de julho de 2012

Edgar Morin: “Se não procurarmos o inesperado, não vamos encontrá-lo”

Em palestra realizada em São Paulo, sociólogo destaca que o sistema atual é incapaz de lidar com os problemas vitais da humanidade
Por Felipe Rousselet na REVISTA FORUM
 
Edgar Morin participou de palestra no Sesc Consolação, São Paulo.

Ontem (3), o sociólogo e filósofo francês Edgard Morin ministrou uma palestra no Sesc Consolação com o tema “Consciência Mundial: por um conceito de desenvolvimento para o século XXI”. Morin, pai da teoria da complexidade, defende a interligação de todos os conhecimentos, combate o reducionismo instalado em nossa sociedade e valoriza o complexo.
Morin iniciou sua palestra abordando quatro questões fundamentais: o que eu posso saber; o que eu posso esperar; em que posso acreditar e o que posso fazer. A partir destes questionamentos, o sociólogo abordou os problemas fundamentais da humanidade. Para ele, é preciso unir os inúmeros saberes dispersos a que temos acesso em prol dos problemas vitais da humanidade.
Todas as tentativas de mudança da humanidade somente a partir de sistemas político-econômicos como o socialismo, comunismo e o liberalismo foram fracassadas. “Não se pode mudar apenas a estrutura econômico-social. É preciso mudar também as nossas vidas”, afirmou. Havia uma fé de que o progresso era um movimento irreversível para um mundo melhor, mas hoje essa crença desintegrou-se e o que o futuro nos reserva é angústia e incertezas.

Segundo Morin, se não mudarmos o caminho da humanidade, estamos fadados à tragédia. “O sistema atual é ineficaz para lidar com problemas básicos”, frisou. Para ele, a “nave humanidade” caminha para o desenvolvimento econômico descontrolado e para o egoísmo, porém, lembra que nunca antes a humanidade teve uma causa única, traduzida na própria causa humana, na solidariedade. Ao falar sobre a globalização, Morin citou aspectos positivos e negativos. Os positivos são expressos na capacidade do indivíduo de ser autônomo e na criação de ilhas de prosperidade em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde populações antes miseráveis formam hoje uma nova classe média. Por outro lado, a globalização também gerou exploração comercial de povos por multinacionais e por outros povos, e expulsou os camponeses de suas terras, criando uma população de 1 bilhão de pessoas morando em favelas.

Desenvolvimento e hegemonização

Segundo o pensador, a noção de desenvolvimento aplicada de forma igual em diferentes culturas está equivocada, uma vez que não respeita suas individualidades. Morin afirma que em vez de destruir as culturas por meio da hegemonização, deveríamos fazer um processo de simbiose, de união entre o melhor da civilização ocidental com o melhor de povos de culturas diferentes.
Ao falar sobre a Rio+20, o sociólogo aponta para o que considera um fracasso esperado, uma vez que os líderes de Estado recusam-se a tirar os olhos do próprio umbigo. Para ele, é impossível dissociar os problemas ambientais das outras questões vitais da humanidade e o passo a frente dado pela Rio+20 foi a participação da sociedade civil.
Por fim, Morin deixou uma mensagem de esperança. Lembrou que mesmo diante de um presente que parecia sólido e imutável, a sociedade humana sempre se transformou. “Se não procurarmos o inesperado, não vamos encontrá-lo”, disse. Para ele, o início de grandes mudanças sempre ocorreu de forma modesta. Lembrou do início de três grandes religiões (budismo, cristianismo e muçulmana), que começaram pela ação de indivíduos. “Quando achamos que o presente é eterno, nos enganamos”, afirmou. Para uma transformação da humanidade que evite o seu colapso, o inteletutal sugere um consciência global fundamentada na solidariedade e no sentimento de que fazemos parte de uma “Terra Pátria”, e, a partir desta nova consciência, surgirá um modelo totalmente novo de sociedade. “Vocês tem uma causa justa, que é a solidariedade, e devem levantá-la”.

domingo, 24 de junho de 2012

Ironia na internet: bonitinha, mas ordinária




Como hoje é sexta, trouxe uma leitura mais leve. A gente merece, né? Afinal de contas, a Rio+20 produziu um excelente documento final, está tudo em paz no Paraguai e os trabalhadores rurais desfrutam de segurança no Pará.
Pedi para Rodolfo Vianna, jornalista, mestre em Linguística e amigo, escrever um texto para este blog sobre o seu objeto de estudo: a ironia. Achei que seria pertinente ainda mais em um tempo em que as pessoas se levam a sério demais. Afinal, o milagre não é uma ironia passar despercebida mas, sim, ser entendida. 
“Toda vez que ouço Wagner, me dá uma vontade de invadir a Polônia…”
Woody Allen

Bonitinha, mas ordinária. Assim podemos definir a ironia, já que ela se caracteriza como uma argumentação indireta tida como astuta, inteligente, articulando um ponto de vista sob um manto de humor, numa jocosidade nobre daqueles que sabem que somente as grandes burrices tendem a ser gravemente sérias. Entretanto, a mesma ironia pode não ser compreendida, pode agir justamente no sentido contrário da argumentação pretendida pela sua manifestação, voltar-se contra seu feiticeiro.
A beleza da ironia, enquanto manifestação retórica, está na sua economia argumentativa. Por meio de um comentário irônico, posso ridicularizar toda uma construção argumentativa sólida e extensa; da mesma forma que, para se desconstruir uma ironia, o mesmo trabalho argumentativo extenso é necessário. O poder de síntese que a ironia possui é que a faz ser vista como uma manifestação de inteligência, de sagacidade, já que ela mobiliza no seu intuito argumentativo um vasto conjunto de informações e valores para, a partir deles, construir sua argumentação indireta: seu elogio como crítica, sua aprovação como censura, sua afirmação como uma negativa.
Vale ressaltar aqui, en passant, que a ironia não se reduz a dizer algo com o intuito de expressar justamente seu contrário. A ironia abre-se à inferência de um ou mais significados que não estão presentes na literalidade do enunciado irônico, significados estes que carregam valores apreciativos sobre esse mesmo dito. Esses outros significados que podem ser depreendidos de uma ironia não necessariamente se restringem à negação do dito, como uma simples antífrase.
Ambiguidade – Mas por que ordinária? Ora, a ironia só se realiza quando percebida como ironia, independentemente da intenção daquele que a produziu. Uma metáfora, por exemplo, se não for reconhecida como tal passa a ser uma contra-verdade: se eu não entender que “chove canivete lá fora” é uma metáfora, a frase perde sua validade pela confrontação com a realidade, já que não chove canivete. Agora, se eu falasse para o Neymar que ele poderia ser modelo se não fosse jogador de futebol, e ele, por algum misterioso motivo, não entendesse a ironia, poderia até mesmo me agradecer pelo comentário. E nada impede, por sua vez, de ser esse agradecimento também uma ironia por parte dele. É da natureza da ironia ser ambígua, e na ambiguidade está a armadilha.
É no reconhecimento da ironia, ou não, que mora o perigo. Aquele que propõe fazer uma construção irônica deve prever como será a possível percepção dela por aqueles a quem a dirige. E, para isso, é necessário haver um compartilhamento de crenças, valores, experiências, assim como conhecer aquele faz a ironia, para que desse arcabouço comum se possam extrair elementos que permitam entender aquele enunciado como irônico. “Prefiro o cheiro dos meus cavalos ao cheiro do povo” seria uma ironia se fosse dita por Florestan Fernandes. Mas não foi ele quem disse, e não era ironia.
Entretanto, toda a previsão é suscetível a falhas, ainda mais quando falamos do universo da linguagem, do imaginário e da compreensão de outrem. Por mais que existam recursos que o ironista utiliza para sinalizar que se trata de uma ironia, seja numa conversa, seja num texto, eles não garantem a obrigatoriedade da sua compreensão. E como não existe ironia se ela não for percebida como tal (já que o significado literal, não irônico, permanece válido), a responsabilidade última de fazê-la existir é do destinatário, e não do ironista: se não há reconhecimento da ironia, logo também não existe o ironista. Esse é o preço a se pagar pela economia argumentativa da ironia, o preço da ambiguidade, ou seja, o de assumir o argumento/opinião do qual queria se afastar.
Por essas e outras que, muitas vezes, somos levados a não enxergar ironia onde ela foi proposta, como também a entender alguma coisa como irônica quando ela não fora assim intencionada. Atualmente, no caso específico da internet, isso acaba ocorrendo frequentemente, já que links em páginas de relacionamentos ou em portais nos levam a textos de pessoas que nunca lemos antes, que não conhecemos, que não sabemos quais são seus pontos de vista, e, portanto, não temos um arcabouço de subentendidos e pressupostos que possibilitariam identificar pistas de uma possível ironia presente. O quê me faz crer que esse tal de Woody Allen não queira mesmo invadir a Polônia?
Apesar de tudo, a ironia existe, é objeto de reflexão há mais de 2 mil anos, remontando à Sócrates, e cotidianamente nos deparamos com ela. Porém, sua concretização está mais próxima de um milagre do que da efetivação de uma equação matemática, uma vez que ela é um paradoxo à fria racionalidade. Mas o mundo intersubjetivo é, antes de tudo, ruído. E na linguagem verbal nem sempre 2 + 2 = 4.
Enfim, tantas linhas para dizer que a ironia não passa de uma bobagem…

Rodolfo Vianna é formado em jornalismo (USP) e mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP). É autor da dissertação Jornalismo, ironia e “informação”. Para baixá-la, clique aqui.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Entre James Joyce e Karl Marx

210612 joyceRepública da Irlanda - Vermelho - [Alexandre Pilati] Ullysses completa 90 anos. E se nos atrevêssemos a enxergá-lo como revelação do capitalismo dentro de nós?

Nos meios literários, junho é tradicionalmente um mês dedicado a reflexões sobre o Ulysses, romance revolucionário de James Joyce (1842-1941). No dia 16 deste mês, comemora-se o Bloom's Day, pois esta é a data em que se passa a ação do livro do autor irlandês. Em 2012, o "Dia de Bloom" é ainda mais especial, pois nos encontramos a noventa anos da publicação da obra. Além disso, o recente lançamento do filme Notícias da antiguidade ideológica (Versátil Home Video, 2011), de Alexander Kluge provoca a reflexão sobre a dinâmica de forças estéticas/filosóficas/históricas que envolvem os nomes de Marx, Joyce, Kluge e Eisenstein.
Nestes 90 anos, o Ulysses foi pródigo em espalhar mundo afora fascínio e polêmica. Como monumento incontornável da moderna literatura ocidental, o romance do autor irlandês não para de seduzir críticos, ao mesmo tempo que se conserva à prova de qualquer leitura que seja capaz de aludir à totalidade de sua eficácia estética. Como sempre ocorre em grandes obras, qualquer leitura do textoparece ser bem menor do que o próprio texto; mas isso, no seu caso específico, adquire uma consistência ainda mais lancinante. Se já é um tormento para os críticos do livro tentar acercá-lo e compreendê-lo, imaginemos o tamanho da tarefa de inverter um pouco a ordem natural da coisas e usar o Ulysses como método de compreensão de um construto crítico-teórico como O Capital, de Karl Marx (1818-1883).
O primeiro a se propor esse desafio foi o cineasta russo Sergej Eisenstein (1898-1948), que alimentou a ideia por fim malograda de filmar OCapital a partir do método estético empregado por James Joyce emUlysses. Joyce ansiava por conhecer Eisenstein, porque julgava que ele seria o único cineasta capaz de filmar o Ulysses. Por outro lado, o cineasta russo procurara Joyce porque julgava que O Capitalpoderia tornar-se filme estruturando-se de modo similar ao Ulysses, graças à concentração nos movimentos triviais de um homem comum em apenas um dia de sua vida.
No filme Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital (Versátil, 2011), o escritor e cineasta alemão Alexander Kluge retoma o projeto de Eisenstein de maneira a potencializar alguns elementos de leitura do mundo contemporâneo bastante explorados tanto por Marx quanto por Joyce e o cineasta russo. É precisamente a partir do projeto não-realizado de Eisenstein, de filmar O Capital a partir do Ulysses, que nascem as nove longas horas do filme de Kluge. O cineasta alemão tem uma perspectiva interessante para a observação do pensamento de Marx, que está apresentada logo no início do texto do encarte que acompanha os DVDs:
- O Sr. Considera Karl Marx um poeta?
- Um poeta talentoso.
- Ele se senta na mais imponente biblioteca de Londres, faz excertos de historiografia e compõe uma história em forma de poesia em torno desses núcleos de fantasia?
- Assim surge o enfoque mais amplo de sua teoria.
- O sr. não estaria sendo injusto ao degradar esse materialista científico à condição de poeta?"
A partir desse texto de Kluge, lançamos uma hipótese para a verificação das forças interpretativas que se intercambiam em nosso quadrilátero de pensadores/artistas: tendo em vista a proposta de Kluge, não apenas o Ulysses pode ser usado como mediação ficcional para ler O Capital, mas também O Capital pode ser a mediação teórica necessária para conectar as experiências formais de Joyce emUlysses com a totalidade histórica de onde emanam tanto formas literárias quanto contradições objetivas formadoras da subjetividade sob a égide do capitalismo. O ponto de apoio para essa análise é o movimento dialético entre subjetividade e objetividade (afinal, não é esta a grande matéria dos poetas?!), ou, como afirma Kluge no texto do encarte que acompanha o conjunto de DVDs, a "longa marcha do mundo exterior para o interior do homem". Essa longa marcha estava entre as mais fundas aspirações de Eisenstein na pesquisa que engendra o conjunto de técnicas que caracterizava o seu método fílmico. Ademais, a dialética entre objetividade/subjetividade pode ser rastreada em todos os volumes de O Capital – de modo especial no primeiro, que trata mais especificamente da lógica da mercadoria e do seu alcance na organização social (coletiva) e psíquica (individual) do mundo capitalista. Mais que tudo isso, esta dialética interno/externo é uma chave para a leitura e a compreensão do imenso filme de Alexander Kluge, pois o cineasta alemão está claramente atento a ela. Lembremos a famosa passagem do Ulysses em que se contrasta a história com um pesadelo: "A história – disse Stephen – é um pesadelo de que tento despertar."i
História e poesia irmanam-se dialeticamente pela sua consistência de pesadelo e utopia. Dizendo mais: uma consistência de pesadelo que deriva precisamente do fato se ser uma forma consciente da necessidade da perspectiva da negatividade. Nesses termos, se a história (ou sua metanarrativa) é um pesadelo, a poesia é um jeito peculiar de acordar dele; por outro lado, a poesia também é um pesadelo, de que podemos acordar pela história. Unidas dialeticamente, história e poesia, tecem aos olhos do leitor atento um novo horizonte, ressignificando de uma vez por todas a palavra utopia. Assim, não haverá utopia sem o consórcio da poesia como interpretação do mundo e da história como narrativa de autoconsciência do homem relativamente ao seu lugar na luta de classes. Quando refletimos sobre esta relação história/poesia, estamos, nada mais nada menos, que operando intelectualmente, como Kluge e Joyce e Marx e Eisenstein entre o externo e o interno. Estamos nos acercando do dinamismo do próprio mundo. Um dinamismo que para Eisenstein é a própria força estruturante da forma dramática do filme.
Joyce tem, como poucos em seu tempo, uma consciência catastrófica relativamente ao avanço modernizador; algo que se exibe em seus textosii. Não são poucos os momentos em que o Ulyssesnos apresenta uma perspectiva duramente embebida em negatividade, ao descrever os movimentos triviais do mundo, os quais sem esforço podemos utilizar na composição de uma complexa mirada acerca da totalidade capitalista.
Mas pode Joyce ser historiador no Ulysses assim como Marx foi poeta no Capital? Sob certa perspectiva, poderíamos afirmar que sim; e poderíamos afirmar mais: essa consistência de revelação da história no Ulysses é um dos elementos-chave da sua atualidade. O que talvez tenha contribuído para instigar Kluge à tarefa de reler os textos de Marx não tanto com a intenção de "descrição da economia exterior e de suas 'leis', senão sobretudo o capitalismo dentro de nós." Essas contradições podem nos dar um mapa para a inteligibilidade da crise do capitalismo no início do século XXI.
Vejamos, por exemplo, a partir de um excerto do Ulysses, a problemática do entesouramento, que, conforme descrita por Marx, tem impactos no mundo objetivo e na consciência do homem ocidental. O entesouramento é um dos aspectos básicos, não é demais lembrar, para compreendermos as razões do desencadeamento da crise financeira de 1929, por exemplo; e para o clima de abalos e contradições da modernização a que o Ulysses de alguma forma dá visibilidade.
No capítulo "O catecismo", vemos a agudização dessa reificação irrestrita na descrição crua do que é a vida humana, perdida no fundo das gavetas. Não são apenas as coisas recônditas; mas o que somos nós dentro das gavetas. Vejamos o parágrafo por inteiro:
"O que continha a segunda gaveta?
Documentos: a certidão de nascimento de Leopold Paula Bloom: uma apólice de seguro de £500 na Sociedade de Seguros das Viúvas Escocesas em nome de Millicent (Milly) Bloom, resgatável aos 25 anos de idade com uma apólice nominal de £430, £462-10-0 e £500 aos 60 anos ou morte, 65 anos ou morte e morte, respectivamente, ou com apólice nominal (à vista) de £299-10-0 junto com pagamento em dinheiro de £133-10-0, opcionalmente: uma carteira bancária para o semestre terminaria em 31 de dezembro de 1903, saldo em favor do correntista: £18-46-6 (dezoito libras, catorze xelins e seis pence, esterlinos), bens líquidos: certificado de posse de £900, títulos a 4% (autenticados) do governo canadense (livres de taxação): extrato de ata do Comitê do Cemitérios (Glasnevin), referente a uma sepultura adquirida: um recorte da imprensa local a propósito de uma mudança de nome por processo cível."iii
Atentemos neste trecho do Ulysses para a forma como a linguagem se dobra à instrumentalização da lógica do dinheiro para dar a ver precisamente as contradições de seu alcance avassalador. Num parágrafo que principia falando de nascimento e termina falando de morte, temos a hipoteca de toda uma existência à especulação financeira. São títulos, bens, seguros, ações. Valores que tilintam, ainda que sem a forma de ouro ou de moeda. Trata-se uma belíssima metáfora do conceito marxista de entesouramento. "O que sou é o dinheiro; a vida minha é meu acúmulo": é o que parece nos dizer uma alma fantasmagórica de dentro da gaveta.
Marx dizia que o dinheiro deve, no capitalismo, possuir a consistência elástica e fantasmagórica de uma matéria capaz de expandir-se e contrair-se. Não nos esqueçamos de que a vida cabe numa gaveta e que Marx diz assim em O Capital: "Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se como meio de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica, por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção."iv
Para sobreviver, o dinheiro no capitalismo depende de que o entesouramento não seja excepcional, mas sim sistêmico, trivial. O homem comum cumpre o entesouramento, no fundo da gaveta mais comum. A disposição reveladora de Joyce está em desejar articular tudo isso aos movimentos orgânicos do personagem, mostrando que o entesourar é tornar-se homem comum, homem médio, pedestre. Um homem como Bloom é um entesourador comum: sem o "defeito" excepcional da avareza, mas com a virtude trivial da "precaução". Trata-se de alguém que incorpora a mercadoria ao próprio existir, com isso garantindo os fluxos de expansão e retração necessários à manutenção da lógica do dinheiro no capitalismo. A força da narrativa de Joyce está em revelar o dado sistêmico, global e total do comum. Não é a excepcionalidade que revela a totalidade, mas a forma despercebida e às vezes dispersa com que o cotidiano anuncia as forças da dinâmica histórica global. O método – concentrar-se nas minúcias aparentemente mais insignificantes – tornou possível um dos relatos da vida cotidiana mais completos já apresentados por um romancista.
Lendo Marx a partir da literatura, como fez Kluge (e como aqui ensaiamos) colocamo-nos diante de algumas das mais instigantes formas de questionar os mitos pós-modernos de que a história acabou e de que o único horizonte possível é a não-superação (ou no máximo domesticação) do capitalismo. A dinâmica de forças que está por trás do quadrilátero Marx-Kluge-Joyce-Eisenstein inclui certamente a ideia de que as contradições da práxis ainda podem ser captadas pela literatura, pela crítica ou pelo cinema. Ativar essas contradições já uma boa justificativa para a tarefa monumental de ler Ulysses através do Capital e de ler O Capital através do Ulysses. Se essas contradições ainda podem ser ativadas, a história em seu dinamismo peculiar permanece e nos persegue: como um pesadelo, ou como a utopia.
_________
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. Autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009).
iJOYCE, James. Ulysses. Trad. A. Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 30.
iiA esse respeito consultar o ensaio de Franco Moretti "O longo adeus: Ulysses e o fim do capitalismo liberal". In MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
iiiJOYCE, James. Ulysses. Trad. C. Galindo. Cia das Letras: 2012, p.1018.
ivMARX, Karl. O Capital. Livro I, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. p.253.
Fonte: O Outro Lado da Notícia

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Revolução de Abril (III) O 25 de Novembro de 1975


Ana Saldanha

 
Quando passam 38 anos sobre o 25 de Abril de 1974, concluimos a publicação de três artigos sobre esse momento fundamental da nossa história. Que continua bem presente, por muito que isso doa aos que continuam a sonhar com o que chamam “regime anterior”.

Carregue aqui para ver o artigo (PDF)

terça-feira, 1 de maio de 2012

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO


Vinicius de Moraes

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5-8).

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.


De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento


Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construcão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.


Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.


Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Excercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.


E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.


E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução


Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.


Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!


Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edificio em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.


Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.


Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!


- Loucura! - gritou o patrão
Nao vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.


E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção


Fontes: Helena Sut | Mariana Cruz, Filosofia, Educação Pública, CIERJ |

Quando os trabalhadores perderem a paciência


Mauro Iasi
 Mauro Iasi

As pessoas comerão
três vezes ao dia
E passearão de mãos
dadas ao entardecer
A vida será livre e
não a concorrência

Quando os trabalhadores perderem a paciência
Certas pessoas perderão seus cargos e empregos
O trabalho deixará de ser um meio de vida
As pessoas poderão fazer coisas de maior pertinência

Quando os trabalhadores perderem a paciência
O mundo não terá fronteiras
Nem estados, nem militares para proteger estados
Nem estados para proteger militares prepotências

Quando os trabalhadores perderem a paciência
A pele será carícia e o corpo delícia
E os namorados farão amor não mercantil
Enquanto é a fome que vai virar indecência
Quando os trabalhadores perderem a paciência!

Quando os trabalhadores perderem a paciência
Não terá governo nem direito sem justiça
Nem juízes, nem doutores em sapiência
Nem padres, nem excelências
Uma fruta será fruta, sem valor e sem troca
Sem que o humano se oculte na aparência
A necessidade e o desejo serão o termo de equivalência
Quando os trabalhadores perderem a paciência!

Quando os trabalhadores perderem a paciência
Depois de dez anos sem uso, por pura obsolescência
A filósofa-faxineira passando pelo palácio dirá:
“declaro vaga a presidência”!

domingo, 29 de abril de 2012

Incompreensível para as massas - Maiskóvski

Do blog CINEFUSÃO

Entre escritor                            
                        e leitor
                                        posta-se o intermediário,
e o gosto
                            do intermediário
                                                         é bastante intermédio.

Medíocre
                  mesnada
                                    de medianeiros médios
pulula
         na crítica
                        e nos hebdomadários.

Aonde
            galopando
                               chega teu pensamento,
um deles
                  considera tudo
                                            sonolento:
- Sou homem
                        de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
                             um verso
                                              de Nadson...
O operário
                   não tolera
                                    linhas breves.
(E com tal
               mediador
                               ainda se entende Assiéiev!)

Sinais de pontuação?
                                   São marcas de nascença!
O senhor
                corta os versos
                                         toma muitas licenças.

Továrich Maiacóvski,
                                            porque não escreve iambos?
Vinte copeques
                          por linha
                                         eu lhe garanto, a mais.
E narra
              não sei quantas
                                        lendas medievais,
e fala quatro horas
                                longas como anos.
O mestre lamentável
                                  repete
                                             um só refrão:
- Camponês
                     e operário
                                       não vos compreenderão.
O peso da consciência
                                     pulveriza
                                                     o autor.
Mas voltemos agora
                                  ao conspícuo censor:
Campones só viu
                            há tempo
antes da guerra,
na datcha,
                  ao comprar
                                     mocotós de vitela.

Operários?
                  Viu menos.
Deu com dois
                       uma vez
                                    por ocasião da cheia,
dois pontos
                   numa ponte
                                      contemplando o terreno,
vendo a água subir
                              e a fusão das geleiras.

Em muitos milhões
                               para servir de lastro
colheu dois exemplares
                               o nosso criticastro.
Isto não lhe faz mossa -
                                      é tudo a mesma massa...
Gente - de carne e osso!!

E à hora do chá
                         expende
                                       sua sentença:
- A classe
               operária?
                             Conheço-a como a palma!
Por trás
            do seu silêncio,
                                     posso ler-lhe na alma -
Nem dor
               nem decadência.
Que autores
                     então
                               há de ler essa classe?
Só Gógol,
                 só os clássicos.
Camponeses?
                        Também.
                                         O quadro não se altera.
Lembra-me e agora -
                                    a datcha, a primavera...
Este palrar
                 de literatos
                                    muitas vezes passa
entre nós
                por convívio com a massa.

E impige
               modelos
                              pré-revolucionários
da arte do pincel,
                             do cinzel,
                                              do vocábulo.

E para a massa
                         flutuam
                                      dádivas de letrados -
lírios,
            delírios,
                          trinos dulcificados.

Aos pávidos
                    poetas
                              aqui vai meu aparte:
Chega
          de chuchotar
                               versos para os pobres.
A classe condutora,
                                 também ela pode
compreender a arte.
Logo:
           que se eleve
                                a cultura do povo!
Uma só,
              para todos.
O livro bom
                      é claro
                                   e necessário

a mim,  
              a vocês
                           ao camponês
                                                 e ao operário.

sábado, 28 de abril de 2012

Moçambique em versos



Escritores africanos de expressão portuguesa
Os escritores moçambicanos Craveirinha e Knopfli; entre eles, o angolano Pepetela

Editora da UFMG lança coleção com os principais poetas de Moçambique; os três primeiros volumes trazem José Craveirinha, Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim

Por Henrique Marques-Samyn ((*)
via PORTAL VERMELHO


Os três autores são alguns dos nomes mais representativos da poesia moçambicana de expressão portuguesa, que conta ainda com nomes como Rui de Noronha (1909-1943), considerado precursor; Noémia de Sousa (1926-2003) e Eduardo White (1963), entre outros. Dirigida por Ana Mafalda Leite, a coleção Poetas de Moçambique pretende apresentar ao público brasileiro a moderna poesia moçambicana

Em tempos de guerra, a poesia, mais que possível, é necessária. Que tematize o próprio conflito não é algo essencial; fundamental é que trate do assunto fulcral da literatura de todos os tempos: a experiência humana, assim resgatando os sentidos solapados pela força das armas.

A Catulo não interessava a guerra civil, mas aquela que cinde o homem enamorado; embora na obra de Dante haja referências aos conflitos que dividiam Florença, associá-la unicamente a isso encerraria um imperdoável reducionismo; e, se Camões figurou a si mesmo portando a espada em uma das mãos e, na outra, a pena, o que esta registrava podiam ser tanto feitos bélicos (como em tantas passagens d’Os Lusíadas, porventura espelhados em suas próprias vivências) quanto o lirismo amoroso dos sonetos.

Em 25 de setembro de 1964, tinha início (nos registros oficiais, ao menos) a Guerra da Independência de Moçambique — mesmo ano em que José Craveirinha publicava Xigubo, seu primeiro poemário; não obstante, já na década de 1950 a resistência se havia organizado em grupos orientados por ideais nacionalistas — decênio em cujo ano derradeiro estreava literariamente Rui Knopfli, com O país dos outros. Se muito insinuam já os títulos das obras (Xigubo é uma dança tradicional que veio a representar a resistência colonial moçambicana), os poemas que delas constam não frustram essas expectativas.

Knopfli e Craveirinha nasceram literariamente como cronistas poéticos de uma nação apenas sonhada, cuja construção suas trajetórias líricas acompanharam, indagando insistentemente sobre sua identidade. Dessa tarefa participaria também Luís Carlos Patraquim, cujo poemário de estréia, Monção (1980), renovaria esteticamente a literatura moçambicana sem recusar a dimensão política da palavra poética.

A esses três autores são dedicados os primeiros volumes da coleção Poetas de Moçambique, série publicada pela editora UFMG e dirigida por Ana Mafalda Leite, professora na Universidade de Lisboa que viveu a infância e parte da juventude em Moçambique, chegando a iniciar estudos universitários em Maputo. Ana Mafalda conhece de perto as literaturas africanas: lecionou em diversos países do continente (Cabo Verde e Senegal, entre outros, inclusive Moçambique); é autora de estudos fundamentais sobre o assunto — A poética de José Craveirinha (1990), Modalização épica nas literaturas africanas (1996) e Oralidades & escritas nas literaturas africanas (1998) são alguns dos títulos que constam de sua produção bibliográfica, recentemente complementada com Literaturas africanas e formulações pós-coloniais (2003).

Valioso adendo para essa trajetória é o fato de Ana Mafalda ser também escritora, autora de uma obra poética que não se esquiva à tarefa de reelaborar as vivências moçambicanas; trata-se, portanto, de alguém que conhece a literatura em suas múltiplas dimensões como poucos apta a eleger os nomes certos para colaborar nessa empreitada editorial. Com efeito, os responsáveis pelos volumes que abrem a coleção elaboraram obras de valor impecável.

José Craveirinha

À própria Ana Mafalda Leite coube a organização do volume dedicado a José Craveirinha. Nascido em 1922, falecido em 2003, Craveirinha publicou cinco livros em vida; sua obra é constituída também por volumes póstumos, poemas dispersos e por um numeroso espólio que permanece inédito. O já mencionado Xigubo (1964), obra com a qual estreou o poeta e que abre a compilação, é adequadamente qualificado como uma “rapsódia anticolonialista” por Emílio Maciel, autor da biobibliografia inclusa no volume.

“Xibugo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência levantam os braços para o lume da irmã Lua

e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos na margem do rio”,

 
escreve o poeta, na lírica imagem sintetizando o ímpeto que percorre toda a obra: a síntese de uma pluralidade de vozes e identidades que se reconhecem como pertencentes a uma nação por haver.


“Vim de qualquer parte

de uma nação que ainda não existe”,

afirmam os primeiros versos de Poema do futuro cidadão. Poesia panfletária, diriam alguns; a poesia possível, diriam outros, estes mais cientes da missão a que se dedicava, na hora de urgência, um poeta que, nas últimas obras, construiria textos de impecável lirismo.

As modulações da obra de Craveirinha talvez possam ser qualificadas como as múltiplas vozes de um homem que jamais se fechou ao mundo. O discurso dilatado de Xigubo representa a primeira irrupção de uma fala há muito silenciada — e que não expressa a vontade de um, mas a de muitos homens, ainda soantes em Karingana ua Karingana (1974). Depois do grito, o silêncio: a contenção lírica do poeta que cantou o futuro, mas que percebe um presente feito de perdas. A maior delas: Maria, a esposa falecida em 1979, cujo nome intitula o pungente livro em que lemos um poema como Memória dos dois

“Ambos

juntos na mesma memória.

Eu

o Zé que não te esquece.

Tu

a Maria sempre lembrada”.


 
O tom afirmativo dos primeiros livros cede espaço a uma poética de indagações, enquanto variações da escrita de um poeta que permanece fiel a si mesmo.

 
“Cada homem é sofisma

Bem engendrado”,


 
afirma um dos Poemas eróticos (2004), derradeiras páginas de uma obra que jamais recusou cantar o homem em sua grandeza e em sua miséria, em seu amor e em seus vícios — e que, por isso mesmo, acolhe em si as contradições da condição humana.


Rui Knopfli

Rui Knopfli, dez anos mais jovem que Craveirinha, morreu mais cedo, em 1997. Deixou oito livros, todos representados na coletânea organizada por Eugénio Lisboa, que nela incluiu um posfácio assinado por Roberto Said.

Juízos apressados não tardaram a ver em Knopfli uma espécie de antípoda de Craveirinha. Filho da burguesia, descendente de suíços e portugueses, estreava com um livro em cujo título — O país dos outros (1959) — não seria difícil sentir uma provocação, agudizada pelos poemas que o compunham: onde os cânticos de guerra, os discursos inflamados, a convocação aos heróis? Em vez disso, Knopfli apresentava uma poesia de tom reflexivo, composta com impecável rigor formal, que dialogava explicitamente com a tradição literária ocidental. Injustas, no entanto, as acusações de que o poeta voltava as costas para Moçambique; a par dos diálogos com Fernando Pessoa e Manuel Bandeira, Rui Knopfli publicava poemas de teor francamente político. Leia-se A melhor das distracções, que encena a fala de um grão-senhor

“marajá, bey, khan,

um nababo qualquer desses com poderes

de Vida e Morte”


 
que, sem pudor, afirma:


“Afastei enfadado

as inomináveis iguarias que me foram servidas

e nem sequer me dignei

olhar as dezasseis virgens sortidas,

fruto do último saque.

Onde me diverti a valer,

foi com as línguas que mandei cortar”.

 

Leia-se Casamento de conveniência, em que assoma a crítica
aos costumes:

“Meus pais não querem que ame

a quem amo.

Pretendem que me case contigo,

Juventina.

[...]

Dão-me um automóvel e uma casa

pra que case contigo,

Juventina.

Tens um nome que te quadra à figura,

rapariga,

e trazes intacto o selo necessário.

[...]

Aceitarás com submissão

que te mande à merda de quando em vez

e não farás muitas ondas.

Sei que não pedes mais,

É pegar ou largar,

Juventina!”.

 

Visitando a tradição literária, porque sempre falou de si, Rui Knopfli sempre falou de Moçambique, embora nele tantas vezes a nação não se reconhecesse. Ressalte-se que, da obra de estréia ao derradeiro O monhé das cobras (1997), seus livros mantêm uma elevadíssima qualidade estética; não há altos e baixos, mas irrupções que se podem igualar às grandes obras da poesia de todos os tempos — como o magistral O deserto, de Mangas verdes com sal (1969), poema que sintetiza, com singular força lírica, os perenes questionamentos existenciais humanos.

Luís Carlos Patraquim

A obra fundacional de Craveirinha e Knopfli tem prosseguimento com a poética renovadora de Luís Carlos Patraquim (nascido em 1953), cuja obra foi antologiada para a coleção por Carmen Lucia Tindó Secco. Como Craveirinha, Patraquim se debruça sobre a terra e as tradições moçambicanas; como Knopfli, engendra um diálogo franco com múltiplas vozes da literatura ocidental. Não obstante, sua obra não se reduz à assimilação dos que o precederam: Patraquim não se esquiva à tarefa primordial do poeta, que é desvelar para o lirismo novas sendas. No posfácio ao volume, observa Cíntia Machado de Campos Almeida tratar-se de uma poesia construída em torno de uma tríade temática: “a memória, o erotismo e a reflexão metapoética”; percebe-se, assim, como a trajetória inaugurada por Monção (1980) já dispensa o dever de poetizar a terra, em vez disso assumindo como pressuposto uma força lírica que é reelaborada pela subjetividade poética para a construção de uma dicção nova.

Notável em sua escrita é, particularmente, a relação com o espaço, ora enquanto referencial geográfico que expande os limites do exercício poético — ressalte-se, a esse respeito, o sentido fundacional de Noções de geografia, espécie de escorço cartográfico do lirismo:

“a sul

implanto uma cartografia sem limites

traço e compasso

depois da madrugada

de ti

um rosto iridescente

alastra o voo claro

das mãos

ao sul

descobrimos

vozes abertas

sem oclusão

e mastigamos água”

 

ora enquanto âmbito imagético que enseja a eclosão mesma da poesia; vejam-se as Quatro meditações na margem ao longo do Zambeze, do recente Pneuma (2009), em cuja segunda parte lemos:

“Senhora, eu não vi os três jacarés

imóveis na margem,

A luz, espelho da carne branca

E a boca metafísica,

Sua canoa vogando o desenho do som

E a elipse das asas;

Vi o rio que rilhava e seus dentes,

O canavial do Tempo,

nodoso e debruçado sobre o impulso líquido

Como o primeiro timbre evolando a cor,

O Sangue do início e a bolsa rompida

Para a convulsão do mundo”.


 
Não se limitando a falar sobre Moçambique, Patraquim cede a voz à terra: “concebe as paisagens como exímias contadoras de (suas próprias) histórias”, observa Cíntia Almeida. E, esse modo, contribui para a construção de uma tradição poética que, conquanto jovem, já se revela inegavelmente pujante.

(*) Henrique Marques-Samyn é escritor e pesquisador da UERJ

Os livros

José Craveirinha, Antologia poética. Org.: Ana Mafalda Leite, Editora UFMG

Rui Knopfli, Antologia poética. Org.: Eugénio Lisboa, Editora UFMG

Luís Carlos Patraquim, Antologia poética, Org.: Carmen Lucia Tindó Secco, Editora UFMG


Fonte: Rascunho, o jornal de literatura do Brasil, fevereiro de 2012

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Caixa de Pandora - 2008




















SINOPSE
Os irmãos Nesrin, Güzin e Mehmet moram em Istambul e levam vidas distantes, centrados em suas preocupações de classe média alta. Um dia precisam viajar ao vilarejo natal para procurar por sua mãe, Nusret, que desapareceu. Eles a encontram, mas ela apresenta sinais de Alzheimer, e os irmãos decidem levá-la para Istambul. Cuidar da mãe, no entanto, faz com que antigos conflitos ressurjam. Nusret também não está contente, pois deseja voltar a sua cidade. O único que parece compreendê-la é Murat, seu neto rebelde e introspectivo.

DADOS DO ARQUIVO
Diretor: Yesim Ustaoglu
Áudio: Turco
Legendas: Português
Duração: 118 min.
Qualidade: DVDRip
Tamanho: 695 MB
Servidor: Torrent

CREDITOS:  Bukowski

LINKS
Parte única

domingo, 8 de abril de 2012

O capitalismo e as raízes da desigualdade

Fred Goldstein

Fred Goldstein 
O movimento “Occupy Wall Street” (OWS) fez da desigualdade na sociedade capitalista uma questão que pôs os ricos na defensiva, pelo menos em público. O aumento da desigualdade nos últimos 30 anos e especialmente na última década tem sido comentado ao longo dos anos em vários meios por analistas económicos e mesmo alguns políticos. Contudo, antes do movimento “Occupy Wall Street” levantar o slogan do 1% contra os 99%, esta condição era completamente pacífica e meramente observada como um inevitável facto da vida, mesmo que indesejável (a menos que se pertencesse ao 1%).

As desigualdades que deram ao OWS o seu grito de guerra são verdadeiramente obscenas e reminiscentes do fosso entre os monarcas da velha ordem e os servos camponeses.
Por um lado, 50 milhões de pessoas vivem de senhas de refeição, 47 milhões são oficialmente pobres, metade da população é classificada como pobre [i], 30 milhões são desempregados ou subempregados e dezenas de milhar de trabalhadores vivem com baixos salários.
Por outro lado, de 2001 a 2006, os 1% do topo conseguiram 53 cêntimos de cada dólar de riqueza criada. De 1979 a 2006, o décimo superior dos 1% (0,1%, ou seja 300 mil pessoas) conseguiu mais do que os outros 180 milhões de pessoas [ii]. Em 2009, enquanto os trabalhadores estavam ainda a ser dispensados em grande número, os executivos das 38 empresas mais importantes ganhavam um total de 140 mil milhões de dólares.[iii]
Estes números são apenas um reflexo da vasta desigualdade de rendimentos entre por um lado os banqueiros, os corretores e os exploradores das corporações e a massa de pessoas por outro. Tornou-se um escândalo, mas ninguém mexeu uma palha para fazer nada contra isto. Por isso, o movimento “Occupy Wall Street” começou a luta em nome dos 99% contra os 1%. E pegou como fogo.
Como a força motriz fundamental do movimento é a luta contra a obscena desigualdade de rendimentos, os marxistas devem apoiá-lo e participar totalmente na luta. Mas, o marxismo deve também estudar esta questão e dar-lhe uma interpretação de classe.
Podemos começar por perguntar o seguinte: o que significa lutar contra a obscena desigualdade da riqueza?
Significa certamente lutar por impostos para os ricos, usando o dinheiro para ajudar os trabalhadores e os oprimidos a sobreviverem à dureza económica do capitalismo. Ao fim e ao cabo, ser desempregado torna um trabalhador tão desigual quanto é possível sê-lo no capitalismo.
Igualdade dentro da classe operária e desigualdade entre classes
Normalmente, quando pensamos em lutar pela igualdade económica, pensamos na luta de ação afirmativa pelo emprego dos negros, dos latinos, dos asiáticos e dos povos nativos. A luta pela igualdade compreende lutar por salário igual e condições de trabalho iguais às dos brancos.
Implica também lutar por pagar igual por trabalho igual às mulheres trabalhadoras, isto é, terem o mesmo salário dos homens para trabalho comparável. E a luta pela igualdade inclui a luta pela garantia de igualdade económica entre trabalhadores normais e lésbias, gays, bi- ou transsexuais ou travestis.
Pedir a igualdade entre os trabalhadores imigrantes e sem documentos e os trabalhadores nascidos nos EUA, especialmente brancos, é uma componente essencial na construção da solidariedade e do avanço da luta de classe de todos os trabalhadores.
De facto, a luta pela igualdade económica dentro da nossa classe e entre oprimidos e opressores é fundamental para aumentar a solidariedade contra os senhores. Desigualdade e divisão no interior da classe trabalhadora é tanto um problema económico, como um perigoso problema político. Quebra a solidariedade e dá força aos patrões e ao seu governo.
Mas, o problema da desigualdade económica global na sociedade capitalista não é fundamentalmente um problema de desigualdade no interior da nossa classe ou entre a classe média e a classe trabalhadora. O problema fundamental da desigualdade massiva é a desigualdade entre a classe dominante capitalista e todas as outras classes, principalmente a classe trabalhadora multinacional.
A desigualdade entre a classe trabalhadora e a classe capitalista está embutida no sistema e está na raiz da questão. A chamada “excessiva” desigualdade entre a classe dominante e o resto da sociedade está constantemente sob ataque, como deve estar. Mas a desigualdade geral entre a classe dominante e todas as outras classes é tida como natural e raramente questionada.
Desigualdade genética do capitalismo
Esta é devida à maneira como o rendimento é distribuído no sistema do lucro. O rendimento da classe capitalista vem do trabalho não-pago dos trabalhadores sob a forma de lucro ou mais-valia. Tudo o que é criado pelos trabalhadores pertence aos patrões. E tudo o que é criado pelos trabalhadores contém tempo de trabalho não-pago. Os patrões vendem os bens e serviços e obtêm dinheiro pelo tempo de trabalho não-pago dos trabalhadores – é isso o lucro. Guardam parte para si próprios e enriquecem. A outra parte é reinvestida de modo a se tornarem mais ricos no próximo ciclo de produção e venda.
O rendimento dos trabalhadores, pelo outro lado, vem da venda da sua força de trabalho ao patrão, explorador. Os trabalhadores recebem vencimentos ou salários dos patrões. A quantia mantém-se sempre algures dentro da gama do que é necessário para sobreviver. Alguns trabalhadores são pagos um pouco melhor e podem dispor de um certo grau de conforto. Muitos trabalhadores, cada vez mais hoje em dia, conseguem apenas o suficiente para viverem uma vida de austeridade, enquanto outros dificilmente conseguem o suficiente para sobreviverem. Os salários no capitalismo são basicamente o que custa a um trabalhador subsistir e manter a família, de modo que os patrões tenham garantida a próxima geração de trabalhadores para explorarem.
Os salários dos trabalhadores ficam sempre dentro de uma estreita gama, quando comparados com o rendimento dos patrões. Nenhum trabalhador consegue alguma vez ficar rico contando com o seu salário, mesmo que bem pago. Mas, a classe capitalista como um todo fica automaticamente mais rica, mesmo que alguns capitalistas individualmente saiam dos negócios e sejam engolidos. Os patrões reinvestem continuamente o seu capital e mantêm vivo o processo em curso de exploração de cada vez mais trabalho.
Os patrões deixam a sua riqueza pessoal aos filhos, assim como o seu capital. Os descendentes, em regra, tornam-se cada vez mais ricos de geração para geração, enquanto os trabalhadores deixam aos filhos as suas magras posses de geração para geração. Os trabalhadores têm de lutar para manterem o que têm através dos altos e baixos das crises capitalistas e do desemprego cíclico.
Como alcançar a igualdade social e económica nestas circunstâncias?
Neste contexto, para o movimento OWS e todos os outros que sejam pela igualdade genuína, surge a questão de saber por qual igualdade exatamente estão a lutar. Se o objetivo final é a reforma do código fiscal, ou a redução do financiamento empresarial na política, ou a regulação da classe capitalista predadora e dos banqueiros avarentos, então o objetivo final limita-se a uma luta por uma forma de desigualdade menos obscena.
Trata-se certamente de um objetivo progressista e deve ser sempre prosseguido como meio de aliviar os trabalhadores e a massa do povo em geral. Mas, seja qual for a maneira de o fazer, se se limita a luta contra a desigualdade a mantê-la no quadro do capitalismo, isso significa lutar por menos desigualdade, mas também por mantê-la e consenti-la. O sistema de exploração de classe gera a extrema desigualdade entre classes.
Distribuição da riqueza e capitalismo
O facto é que a desigualdade na distribuição é um resultado do sistema de produção pelo lucro. Ora, conforme os marxistas mostram, as relações de distribuição decorrem das relações de produção. O que determina a distribuição da riqueza social é a propriedade privada dos meios de produção e serviços. Nenhuma redistribuição da riqueza no capitalismo, quer através de despesa estatal, quer de acordos com sindicatos ou qualquer outro método, consegue ultrapassar a desigualdade de classe que resulta do direito dos capitalistas a possuírem não só os meios de produção, como todos os produtos da produção.
Neste sentido, é útil uma análise escrita por Karl Marx em 1847. Marx tentava desmontar o argumento de que o trabalho e o capital têm um interesse comum no crescimento do capitalismo. O ensaio “Trabalho assalariado e capital” foi escrito com base em lições a trabalhadores alemães com consciência de classe que primeiro conseguiram organizar-se. Escreveu Marx:
“Vimos portanto que mesmo a situação mais favorável para a classe operária, designadamente o mais rápido crescimento do capital, por muito que melhore a vida material do trabalhador não elimina o antagonismo entre os seus interesses e os do capitalista. Lucro e salário continuam como antes em proporção inversa.
“Se o capital cresce rapidamente, os salários podem crescer, mas o lucro do capital cresce desproporcionadamente mais depressa. A posição material do trabalhador melhorou, mas à custa da sua posição social. O abismo social que o separa do capitalista alargou-se.
“Finalmente dizer que ‘a condição mais favorável para o salário-trabalho é o crescimento mais rápido do capital produtivo’ é o mesmo que dizer: quanto mais depressa a classe trabalhadora multiplicar e aumentar o poder do seu inimigo e a riqueza de quem reina sobre a sua classe, mais favoráveis serão as condições sob as quais será permitido lidar com a multiplicação da riqueza burguesa e com o aumento de poder do capital, contentando-se assim com forjar para si as cadeias douradas pelas quais a burguesia a arrasta no seu caminho.” (Marxist Internet Archive).
Muito do ensaio de Marx é dedicado a mostrar que, independentemente das condições relativas de que os trabalhadores dispõem no sistema de exploração capitalista, quer sejam mais bem ou menos bem pagos e mesmo quando estão em boa posição negocial porque o patrão precisa deles para continuar a aumentar a produção, os trabalhadores perdem constantemente terreno em relação aos capitalistas, cuja riqueza aumenta imensamente. Por isso, está inscrito no próprio sistema de exploração o aumento sistemático da desigualdade entre as classes. Além disso, a classe trabalhadora está na melhor das hipóteses limitada para sempre a tentar “forjar as cadeias douradas pelas quais a burguesia a arrasta no seu caminho.”
Marx então continua, mostrando que a chamada prosperidade dos trabalhadores é uma mentira, porque os patrões utilizam todos os meios para baixarem os ordenados, mesmo nos chamados “bons tempos”.
O capitalismo na era da revolução técnico-científica e da globalização imperialista expandiu-se e evoluiu por saltos e descontinuidades desde os tempos de Marx. As classes trabalhadoras dos países imperialistas estão num caminho descendente, com os salários a baixar. Estão a perder terreno não só em termos relativos, mas também absolutos.
Os trabalhadores já não progridem nem lentamente no seu modo de vida, enquanto os capitalistas continuam em frente. Os salários estão a baixar. As condições estão a piorar. Os patrões arquitetaram uma competição salarial mundial entre os trabalhadores nos centros do capitalismo e as centenas de milhões de trabalhadores dos países de baixos salários. Os patrões usaram a deslocalização associada à tecnologia e à exploração dos trabalhadores imigrantes para promoverem esta competição. O exército global de reserva de desempregados e subempregados aumentou para centenas de milhões. Os trabalhadores estão sob pressão em todos os continentes.
Nos EUA, os salários têm descido desde os anos setenta (Perry L. Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream” – “Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”). A grande desigualdade que vemos hoje resulta do declínio absoluto dos salários. A parte de leão da nova riqueza vai para os financeiros e os donos das corporações em quantidades crescentes de mais-valia (trabalho não-pago) sob a forma de dinheiro.
É urgente procurar inverter o declínio absoluto das condições do proletariado e dos oprimidos. A luta contra o aumento obsceno da desigualdade tem que continuar e crescer.
A riqueza das empresas cria riqueza pessoal extrema
É importante notar que a obscena desigualdade no rendimento pessoal não é nada comparada com a riqueza das empresas, controlada não pelos 1% mas pela pequena fração deles que se sentam nos gabinetes de diretor dos bancos e das gigantescas corporações transnacionais. Foi a isto que Lenine chamou capital financeiro – o pequeno grupo de grandes empresas que controlam biliões de riqueza empresarial e a maior parte da produção da riqueza mundial.
Um estudo recente mostra que 147 corporações dominam 40% da riqueza empresarial mundial” (“Financial world dominated by a few deep pockets,” “O mundo financeiro dominado por alguns bolsos cheios,” ScienceNews, 24 Set., 2011). A propriedade privada e o controle de uma vasta riqueza financeira e empresarial pelo topo da classe dominante são o que está por detrás da imensa riqueza pessoal concedida aos administradores da lista dos 500 da Fortune e aos ricaços mundiais (grandes administradores e grandes acionistas do capital e da finança).
A questão é então: vamos parar a luta para a redução da desigualdade no capitalismo, vamos lutar para ajudar a forjar as “cadeias douradas” com as quais o capital arrasta o trabalho, ou vamos levar a luta contra a desigualdade até às últimas consequências e lutar para quebrar as cadeias da dominação de classe de uma vez? A desigualdade entre classes só pode ser abolida libertando-nos da classe capitalista de uma vez e do sistema de exploração sobre o qual toda a obscena riqueza está erigida.
[i] “Census data: Half of U.S. poor or low income,” [“Dados do censo: metade dos americanos são pobres ou de baixo rendimento”] Associated Press, Dez. 15.
[ii] Jacob S. Hacker e Paul Pierson, “Winner-Take-All Politics” [“A política do quem-ganha-apanha-tudo”] (New York: Simon & Schuster, Kindle Edition, 2010), p. 3.
[iii] Perry L. Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream,” [“Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”] Economy in Crisis online, Fev. 12, 2011.
Próxima 2ª Parte: Como a natureza da distribuição da riqueza decorre do modo de produção e Controle da riqueza empresarial: a fonte de riqueza pessoal extrema.
Extraído do anexo do próximo livro “Capitalism at a Dead End” [“O Capitalismo num Beco sem Saída”] de Fred Goldstein. Goldstein é também autor de “Low-Wage Capitalism” [“Capitalismo dos Pobres”]
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Tradução: Jorge Vasconcelos

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Andrei Tarkovski, 80 anos: O poeta do cinema foi também um pensador da arte

Por Josias Teófilo*no SUL21

Há 80 anos nascia o cineasta soviético Andrei Tarkovsky (1932-1986). Chegou ao mundo depois das revoluções vanguardistas que repensaram o papel do artista na sociedade. Na década de 1960, quando ele realizou seus dois primeiros longas-metragens, as concepções sobre a arte já estavam num processo de transformação profunda. Os pensadores da arte contemporânea idealizaram o artista num lugar totalmente diverso do concebido anteriormente, desmistificando a sua atuação na sociedade e ressaltando o seu aspecto intelectual e político.
Tarkovsky não compartilhava dessas visões advindas da arte contemporânea, seus filmes inicialmente e seus escritos, em especial o livro Esculpir o Tempo, documentaram isso. Com relação à vanguarda russa, inclusive o cinema de Sergei Eiseinstein, a obra de Tarkovsky e sua concepção artística parecem não só se diferenciar mas por vezes se opor diametralmente – como no debate sobre a montagem. Suas referências mais profundas no seu país são a literatura de Tolstoi e Doistoiévski, do século anterior. O cinema ele naturalmente defende como obra autoral.
Esta defesa não é exclusividade de Tarkovsky, porém nele essa autoria tem um componente bastante diverso: ela se apresenta como um dom espiritual. Para ele, o artista é como um demiurgo: “O poeta não usa ‘descrições do mundo’; ele próprio participa da sua criação”, diz ele no seu livro Esculpir o tempo, escrito nos longos espaços de tempo entre a realização dos seus filmes. Foram apenas 7 longas-metragens em toda a sua vida. Ter feito tão poucos filmes – comparado a outros grandes cineastas – não foi uma escolha. A causa foi, principalmente, a dificuldade em realizar o tipo de filme que ele fazia, de caráter profundamente religioso, na União Soviética.
Os longos espaços de tempo entre um filme e outro – em média 5 anos – parecem ter colaborado na densidade dos seus filmes e no grau de reflexão que eles suscintam. Todos os 7 filmes se relacionam profundamente na temática, na forma e nas amplas referências à pintura, literatura, filosofia, etc. Porém, em toda a sua obra, tanto fílmica quanto escrita, um tema é recorrente e crucial: o Sacrifício.
Para ele, a criação artística é um ato de Sacrifício: trata-se de uma doação, que certamente não é material, intelectual ou mesmo emocional. O Sacrifício configura-se como algo espiritual – palavra que ele usa constantemente nos seus escritos. Essa espiritualidade, entretanto, não é religiosa no sentido corrente. Tarkovsky diz que as religiões, tal como se apresentam hoje, “não são capazes de saciar a sede de Absoluto que caracteriza o homem”.
A espiritualidade para ele se concretiza na idéia de Amor, a absoluta antítese de pragmatismo e fundamento do Sacrifício. Talvez sejam essas duas idéis complementares, o Sacrifício e o Amor, que diferenciam o pensamento e a obra de Tarkovsky do seus contemporâneos, tornando sua mensagem ao mesmo tempo atual e profundamente relacionada com a grande arte do passado – o que nos faz refletir sobre a possibilidade de existirem características perenes no fenômeno artístico ao longo dos tempos.

* Josias Teófilo é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovski no filme Andrei Rublev.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A heresia comunista de Daniel Bensaïd

 
Daniel BensaıdEntre todas as “heresias” de Daniel Bensaïd, quer dizer, suas contribuições para a renovação do marxismo, a mais importante, a meus olhos, é a sua ruptura radical com o cientificismo, o positivismo e o determinismo que se impregnaram tão profundamente no marxismo “ortodoxo”, principalmente na França. Por Michael Löwy no COMBATE


“Auguste Blanqui, comunista herético” é o título de um artigo que Daniel Bensaïd e eu redigimos juntos em 2006 (para um livro sobre os socialistas do século XIX na França, organizado por nossos amigos Philipe Corcuff e Alain Maillard) [no Brasil, o artigo foi publicado na revista Margem Esquerda, nº 10]. Esse conceito se aplica perfeitamente a seu próprio pensamento, obstinadamente fiel à causa dos oprimidos, mas alérgico a qualquer ortodoxia.
Daniel havia escrito alguns livros importantes antes de 1989, mas a partir daquele ano, com a publicação de Moi la Révolution : Remembrances d’un bicentenaire indigne [Eu, a revolução: Remembranças de um bicentenário indigno] (Gallimard, 1989) e Walter Benjamin, sentinelle messianique [Walter Benjamin, sentinela messiânico] (Plon, 1990), começa um novo período, que se caracteriza não apenas por uma enorme produtividade – dezenas de obras, dentre as quais várias consagradas a Marx – mas também por uma nova qualidade de escrita, uma fantástica efervescência de ideias, uma surpreendente inventividade. Apesar de sua grande diversidade, esses escritos não deixam de ser tecidos com fios vermelhos comuns: a memória das lutas – e suas derrotas – do passado, o interesse pelas novas formas de anticapitalismo e a preocupação com os novos problemas que se colocam à estratégia revolucionária. Sua reflexão teórica era inseparável de sua militância, quer ele escreva sobre Joana D’arc – Jeanne de guerre lasse [Joana D’arc de guerra cansada] (Gallimard, 1991) – ou sobre a fundação do NPA (Prendre parti [Tomar partido], com Olvier Besancenot, 2009). Seus escritos têm, consequentemente, uma forte carga pessoal emocional, ética e política, que lhes dá uma qualidade humana pouco comum. A multiplicidade de suas referências pode tomar desvios: Marx, Lenin e Trotsky, com certeza, mas também Auguste Blanqui, Charles Péguy, Hannah Arendt, Walter Benjamin, sem esquecer Blaise Pascal, Chateaubriand, Kant, Nietzsche e muitos outros. Apesar de toda essa surpreendente variedade, aparentemente eclética, seu discurso não deixa de ter uma notável coerência.
“Eu leio seus livros sem parar como remédios contra a burrice e o egoísmo”, escreveu recentemente seu amigo, o poeta Serge Pey. Se os livros de Daniel são lidos com tanto prazer, é porque eles foram escritos com a pena afiada de um verdadeiro escritor, que tem o dom da fórmula: uma fórmula que pode ser assassina, irônica, nervosa ou poética, mas que vai sempre direto ao ponto. Esse estilo literário, próprio ao autor e inimitável, não é gratuito, mas vem a serviço de uma ideia, de uma mensagem, de um apelo: não se dobrar, não se resignar, não se reconciliar com os vencedores.
Esta ideia se chama comunismo. Ela não poderia ser identificada com os crimes burocráticos cometidos em seu nome, assim como o cristianismo não pode ser reduzido à Inquisição e às dragonnades [espécie de polícia religiosa criada durante o reinado de Luis XIV para perseguir protestantes e reconvertê-los ao catolicismo]. O comunismo, em última análise, é apenas a esperança de suprimir a ordem existente, o nome secreto da resistência e da sublevação, a expressão da grande cólera negra e vermelha dos oprimidos. É o sorriso dos explorados que esperam ao longe os tiros de fuzil dos insurgentes em junho de 1848 – episódio contado com inquietude por Alexis de Tocqueville e reinterpretado por Toni Negri. Seu espírito sobreviverá ao triunfo atual da mundialização capitalista, tal como o espírito do judaísmo durante a destruição do Templo e a expulsão da Espanha (gosto dessa comparação insólita e um pouco provocadora).
O comunismo não é o resultado do “Progresso” ou das leis da História (com P e H maiúsculos): trata-se de uma eterna luta, incerta e anunciada. A política, que é a arte estratégica do conflito, da conjuntura e do contratempo, implica numa responsabilidade humanamente falível, e deve ser confrontada com as incertezas de uma história aberta.
O comunismo do século XXI era, para Daniel, o herdeiro das lutas do passado, da Comuna de Paris, da Revolução de Outubro, das ideias de Marx e Lenin, e dos grandes vencidos que foram Trotsky, Rosa Luxemburgo, Che Guevara. Mas também algo de novo, a altura das questões do presente: um eco-comunismo (termo que ele inventou), integrando centralmente o combate ecológico contra o capital.
Para Daniel, o espírito do comunismo não podia ser reduzido às suas falsificações burocráticas. Se ele era, com suas últimas energias, contra a tentativa da Contra-Reforma liberal de dissolver o comunismo no stalinismo, ele não reconhecia tampouco que pode-se fazer a economia de um balanço crítico dos erros que desarmaram os revolucionários de Outubro em face das provas da história, favorecendo a contra-revolução termidoriana: confusão entre povo, partido e Estado, cega em relação ao perigo burocrático. É preciso retirar disto certas lições históricas já esboçadas por Rosa Luxemburgo em 1918: a importância da democracia socialista, do pluralismo político, da separação dos poderes, da autonomia dos movimentos sociaisem relação ao Estado.
A fidelidade ao espectro do comunismo não impede que Daniel advogue em favorde uma renovaçãoprofunda do pensamento marxista, especialmente sobre dois terrenos onde a tradição falha em particular: o feminismo e a ecologia. As feministas – como Christine Delphy – por criticar a abordagem de Engels, que definia a opressão doméstica como um arcaísmo pré-capitalista que em breve se apagaria com a salarização das mulheres. No movimento operário, ele forneceu muitas vezes um sexismo grosseiro, principalmente ao retomar a seu favor a noção burguesa de salário mínimo. A necessária aliança entre a consciência de gênero e a consciência de classe não pode ser feita sem um retorno crítico dos marxistas sobre sua teoria e sua prática.
O mesmo vale para a questão do meio ambiente: habitualmente ligado ao compromisso fordista e à lógica produtiva do capitalismo, o movimento operário era indiferente ou hostil para com a ecologia. Por seu lado, os partidos Verdes têm a tendência de se contentar com uma ecologia de mercado e com um reformismo social-liberal. Ora, o antiprodutivismo de nosso tempo deve necessariamente ser um anticapitalismo: o paradigma ecológico é inseparável do paradigma social. Diante dos danos catastróficos provocados no meio ambiente pela lógica do valor de mercado, é preciso propor a necessidade de uma mudança radical do modelo de consumo, de civilização e de vida.
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A filosofia de Daniel Bensaïd não era um exercício acadêmico, mas estava atravessada, de um lado a outro, pelo fogo da indignação, um fogo que, segundo ele, não pode ser apagado nos mornos da resignação consensual. Daí o seu desprezo pelo “homo resignatus”, político ou intelectual que é reconhecido à distância por sua impassibilidade batraquiana perante a ordem impiedosa das coisas. Para além da modernidade e da pós-modernidade, nos resta, dizia Daniel, a força irredutível da indignação, a incondicional recusa da injustiça, que são o contrário exato do costume e da resignação. “A indignação é um começo. Uma maneira de se erguer e de se colocar em movimento. Primeiro a gente se indigna, se insurge e depois vê”.
Seu hino poético-filosófico à glória da resistência – esta “paixão messiânica de um mundo justo que não aceita sacrificar o “cintilar do possível diante da terna fatalidade do real” – se inspira ao mesmo tempo na paciência do marrano e na impaciência messiânica de Franz Rosenzweig e Walter Benjamin. É também inspirado na profecia do Antigo Testamento, que não se propõe predizer, como a adivinhação antiga o futuro, mas, ao contrário, soar o alerta da catástrofe possível. O profeta bíblico, como já o havia sugerido Max Weber em seu trabalho sobre o judaísmo antigo, não procede com ritos mágicos, mas convida a agir. Contrariamente ao esperar e ver apocalíptico e aos oráculos de um destino inexorável, a profecia é uma antecipação condicional, significada pelo oulai (“se”) hebraico. Ela busca desviar a trajetória catastrófica, conjurar o pior, manter aberto o feixe dos possíveis, logo ela é um apelo estratégico à ação. Segundo Daniel, há profecia em toda grande aventura humana, amorosa, estética ou revolucionária.
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Entre todas as “heresias” de Daniel Bensaïd, quer dizer, suas contribuições para a renovação do marxismo, a mais importante, a meus olhos, é a sua ruptura radical com o cientificismo, o positivismo e o determinismo que se impregnaram tão profundamente no marxismo “ortodoxo”, principalmente na França.
Um de seus últimos escritos foi uma longa introdução aos escritos de Marx sobre a Comuna – uma brilhante e enérgica defesa e ilustração do político enquanto pensamento estratégico revolucionário. A doutrina oficial pretende que não há pensamento político em Marx, já que a sua teoria se resume ao determinismo econômico. Ora, a leitura de seus escritos políticos, principalmente a sequência Lutas de classe na França, O 18 de brumário de Luís Bonaparte e A guerra civil na França (os dois últimos publicado no Brasil pela Boitempo em 2011) mostra, muito pelo contrário, uma leitura estratégica dos acontecimentos, levando em consideração a temporalidade própria do político, os antípodas do tempo mecânico do relógio e do calendário. O tempo não-linear e sincopado das revoluções no qual se cavalgam as tarefas do passado, do presente e do futuro é sempre aberto à contingência. A interpretação de Marx por DB é, certamente, influenciada por Walter Benjamin e pelas polêmicas antipositivistas de Blanqui, dois pensadores revolucionários aos quais ele rende uma homenagem apoiada.
Auguste Blanqui é uma referência importante nesta abordagem crítica. No artigo de 2006, mencionado mais acima, ele lembra a polêmica de Blanqui contra o positivismo, esse pensamento de progresso em boa ordem, de progresso sem revolução, esta “doutrina execrável do fatalismo histórico” erigida na religião. Contra a ditadura do fato consumado, acrescentava Bensaïd, Blanqui proclamava que o capítulo das bifurcações ficava aberto à esperança. Contra “a mania do progresso e do desenvolvimento contínuo”, a irrupção eventual do possível no real se chamava revolução. A política que prevalece sobre a história. E propunha as condições de uma temporalidade estratégica e não mais mecânica, “homogênea e vazia”. Logo, para Blanqui, “a engrenagem das coisas humanas não é fatal como a do universo, ela é modificável em cada minuto”. Daniel Bensaïd comparava esta fórmula com ade Walter Benjamin: cada segundo é a porta estreita por onde pode surgir o Messias, quer dizer, a revolução, esta irrupção eventual do possível no real.
Sua releitura de Marx, à luz de Blanqui, de Walter Benjamine de Charles Péguy, o conduz a conceber a história como uma série de ramificações e bifurcações, um campo de possíveis onde a luta de classes ocupa um lugar decisivo, mas cujo resultado é “imprevisível”. Em Le pari mélancolique [A aposta melancólica] (Fayard, 1997), talvez seu mais belo livro, o mais “inspirado”, ele retoma uma fórmula de Pascal para afirmar que a ação emancipadora é “um trabalho para o incerto”, implicando numa aposta no futuro: uma esperança que não é demonstrável cientificamente, mas sobre a qual envolve-se a existência por inteiro. Redescobrindo a interpretação marxista de Pascal de Lucien Goldmann, ele define o envolvimento político como uma aposta pensada sobre o devir histórico, “com o risco de perder tudo ou de se perder”. A aposta é inelutável, num sentido ou no outro: como escrevia Pascal, “embarcamos”. Na religião do deus oculto (Pascal) como na política revolucionária (Marx), a obrigação da aposta define a condição trágica do homem moderno.
A revolução deixa, portanto, de ser o produto necessário das leis da história, ou das contradições econômicas do capital para se transformar numa hipótese estratégica, um horizonte ético, “sem o qual a vontade renuncia, o espírito da resistência capitula, a fidelidade falha, a tradição se perde”. A ideia de revolução se opõe à sequência mecânica de uma temporalidade implacável. Refratária à conduta causal dos fatos ordinários, ela é interrupção. Momento mágico, a revolução leva ao enigma da emancipação em ruptura com o tempo linear do progresso, esta ideologia da caixa de poupança tão violentamente denunciada por Péguy, onde a cada minuto, a cada hora que passa supõe-se trazer algum crescimento à sua pequena poupança através de aumentos nos juros.
Em consequência, como ele explica em Fragments mécréants [Fragmentos canalhas] (Lignes, 2005), o homem revolucionário é o da dúvida em oposição ao homem de fé, um indivíduo que aposta nas incertezas do século, e que põe uma energia absoluta a serviço de certezas relativas. Logo, alguém que tenta, incansavelmente, praticar esse imperativo exigido por Walter Benjamin em seu último escrito, as Teses “Sobre o conceito de história” (1940): escovar a história a contrapelo.
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Daniel fará falta. Já o faz, cruelmente. Mas pensamos que ele gostaria que nos lembrássemos da famosa mensagem de Joe Hill, o I.W.W., o poeta e músico do sindicalismo revolucionário norte-americano, a seus camaradas, às vésperas de ser fuzilado pelas autoridades (sob falsas acusações) em 1915: “Don’t mourn, organize!”. Não lamentem, organizem (a luta)!



(escrito quando do falecimento de Daniel Bensaïd, em 2010). Traduzido do francês por Leonardo Gonçalves e publicado no blog da Boitempo.
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Daniel Bensaïd (1946-2010), filósofo e dirigente da Liga Comunista Revolucionária, foi um dos militantes mais destacados dos movimentos de Maio de 1968. Foi professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII. Autor de muitas obras, tem, entre as publicadas em português, Os irredutíveis (Boitempo, 2008), Marx, o intempestivo (1999) e, em co-autoria com Michael Löwy, Marxismo, modernidade e utopia (2000).
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Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (Boitempo, 2009) e organizador de Revoluções (2009),  dentre outras publicações. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.