Vítimas de pedofilia contam rotina de medo
sob o rigor da Igreja na Irlanda
Ernani Lemos e Juliana Yonezawa | Dublin
Ex-internos de instituições dirigidas por
padres e freiras católicos nos anos 1940 e 1950 na Irlanda dizem ainda
ter pesadelos com os abusos sofridos e prometem lutar pela punição dos
culpados, mesmo décadas depois
“A Irlanda deveria se envergonhar para sempre por
permitir que tal barbaridade acontecesse a qualquer ser humano. Eu amo
meu país e nunca vou deixar de amar. Eu sou católico e continuarei
sendo. Independentemente de ir ou não à igreja. Mas eu jamais vou
perdoar as pessoas que fizeram aquelas atrocidades comigo e com meus
irmãos”, diz Michael O’Brien.
“A única forma que eu tenho de descrever aquelas instituições é
dizer que são piores do que prisões e similares aos campos de
concentração da Alemanha. A rotina era rigorosa e muito dura. Nós
passamos fome e sofremos de malnutrição. Eles deveriam nos preparar para
a vida, nos educar e ensinar uma profissão. Em vez disso, só nos
infligiram punições e o dogma religioso”, conta Christopher Heaphy.
As palavras ásperas e carregadas de rancor são de dois
auto-intitulados “sobreviventes” dos abusos sexuais e da violência
praticados contra crianças por membros da Igreja Católica na Irlanda.
Sentados na poltrona de um hotel em Dublin, O’Brien e Heaphy contam ao
Opera Mundi, em detalhes, o horror
que passaram em instituições infantis dirigidas por religiosos nas
décadas de 1940 e 1950.
Christopher Heaphy (à esquerda) e Michael O’Brien (à
direita), foram vítimas de abusos em escolas católicas
“Eles não nos tratavam como crianças, nem mesmo como seres
humanos. Nós éramos tratados como animais”, desabafa O’Brien. Aos 77
anos de idade, o irlandês de Tipperary dedica a vida à luta pelos
direitos das vítimas dos abusos. Em 1999, ele criou a associação Right
for Peace – uma organização de pessoas que viveram situações semelhantes
nos abrigos infantis, orfanatos e reformatórios católicos da Irlanda.
O’Brien foi parar em uma dessas instituições em 1941, quando tinha 8
anos, logo após a morte da mãe. Ele e os sete irmãos foram tirados do
pai e colocados em diferentes internatos. “Eu fui abusado desde o
instante em que entrei naquele lugar. Sexualmente, fisicamente,
mentalmente e verbalmente. Todos os dias, sem nenhuma razão. E não foram
apenas os castigos e os abusos. Eles tiraram de nós as nossas famílias.
Isso é imperdoável. O crime contra uma criança inocente é o pior crime
que alguém pode cometer”, relata.
Michael O’Brien era semi-analfabeto quando deixou a Escola
Industrial São José (St Joseph’s Industrial School), aos 16 anos. “Após
oito anos de internato, minha mentalidade era a de uma criança. Eu não
sabia nada sobre o mundo. Não sabia o que era mulher ou dinheiro. Não
imaginava que poderia comprar coisas. Não estava pronto para a vida,
porque eles não faziam o que deveriam fazer, que era nos educar”. Mesmo
com tantas lembranças ruins, o ex-interno se considera um dos sortudos.
Ele serviu ao exército e aprendeu a ler sozinho, usando livros que
encontrava nos quartéis e alojamentos. Mais tarde, trabalhou como
funcionário público, virou político e conseguiu ser eleito prefeito da
cidade de Clonmel, onde nasceu. O’Brien casou-se há 55 anos, tem quatro
filhos, 11 netos e seis bisnetos. Mesmo com uma vida aparentemente bem
estruturada, ele diz que não se sente uma pessoa normal e que não
consegue passar um único dia sequer sem se lembrar dos maus tratos da
infância. “Vou fazê-los pagar enquanto eu viver, não perdoando. Vou
lutar para que haja reparação até o dia em que eu morrer. Lutar para que
não aconteça de novo. Nunca serei feliz enquanto não houver justiça”,
promete.
Christopher Heaphy, de 65 anos, líder da associação Right of
Place, também se dedica em tempo integral a buscar punição para os
culpados e reparação às vítimas dos abusos. Ele perdeu a mãe quando
tinha 5 anos de idade e foi enviado para a Escola Industrial Greenmount
em Cork, sul da Irlanda. “O governo poderia ter ajudado meu pai a cuidar
de mim e dos meus dois irmãos. Em vez disso, eles nos arrancaram de
casa e nos trancaram em instituições”, desabafa.
Christopher Heaphy tinha pesadelos com as lembranças de
infância marcada por abusos de padres
Enquanto conta sobre o passado, com a voz calma e delicada,
Cristopher se emociona com os momentos que marcaram a vida dele:
“Vivíamos sob terror e medo todos os dias. Eu me reprimi. Saí de lá e
não falava. Mal lia ou escrevia. Estava sempre amedrontado. Precisei
superar muitas dificuldades na vida. Nunca contei à minha esposa sobre
os abusos. Ela não entendia por que eu dava pulos e chutes na cama
durante a noite. A verdade é que eu ainda tinha a impressão de que
aqueles homens vinham colocar a mão debaixo das minhas cobertas para me
molestar enquanto eu dormia”.
Hoje, o irlandês tem três filhos e foi abandonado pela primeira
esposa por causa do comportamento estranho que tinha em casa. “Agradeço
por ela ter ido embora e levado as crianças. Eu era um estranho para
eles. Na época, eu não podia dar o amor que eles precisavam. O triste é
saber que hoje, depois de quase 30 anos, eu mal conheço meus filhos. Não
pude vivenciar a alegria de vê-los crescendo”.
Heaphy se formou em engenharia aos 58 anos de idade, mas se acha
muito velho para trabalhar na área. Para ele, são três os principais
culpados pelos abusos cometidos contra as crianças: o governo, por
fracassar em proteger os cidadãos; a Igreja, por ter protegido os
sacerdotes; e os próprios religiosos que dirigiam as instituições
infantis. “Eles cometeram os crimes contra nós. Os crimes foram
denunciados na época, mas a Igreja só protegeu a si mesma. Não protegeu
as crianças. E, agora, todos deveriam enfrentar as implicações legais
dos direitos civis que quebraram”, defende o ex-interno. O governo
irlandês indenizou os “sobreviventes” com uma reparação média de 63 mil
euros. A Igreja não pagou nada.
Instituições
As escolas industriais na Irlanda foram instituições para onde
eram levadas crianças sem pais ou das quais os parentes não tinham
condições de cuidar. As entidades eram dirigidas por ordens religiosas
da Igreja Católica e recebiam ajuda financeira do governo para dar
educação e ensinar uma profissão aos menores. Mas, na prática, segundo
relatos dos ex-internos, pouco se ensinava nas salas de aula. O Estado
era responsável pelas escolas, mas, de acordo com as associações de
sobreviventes, os Ministérios da Educação, da Saúde e da Justiça jamais
fiscalizaram as condições de ensino, de higiene ou de comportamento nos
locais. O governo irlandês admitiu as falhas recentemente, ao indenizar
as vítimas dos maus tratos.
Desde 1930, milhares de crianças passaram pelas cerca de 250
escolas industriais da Irlanda. O contato com a família era perdido, já
que a visita dos parentes era desencorajada. Os internos só eram
liberados ao completar 16 anos. Cristopher Heaphy foi uma exceção. Aos
12 anos, o garoto foi espancado por um religioso e, durante uma rara
visita, conseguiu mostrar ao pai as cicatrizes e machucados. O pai o
levou à Justiça e o então ministro Jack Lynch assinou uma ordem
liberando o garoto da instituição. A escola foi fechada três anos
depois. Mais tarde, Lynch se tornou primeiro-ministro da Irlanda, mas
pouco fez para mudar o que acontecia dentro dos muros de várias outras
entidades para crianças.
Ao falar sobre as escolas industriais, tanto Heaphy quanto O’Brien
se referem ao “tempo em que servimos naqueles lugares”. Para ambos, foi
uma época de puro sofrimento, sem nenhuma boa lembrança.
“Eu nunca tive um julgamento, nunca fui legalmente representado. E
acabei tirado do conforto da minha casa e jogado naquele lugar, como se
fosse um assassino. Já as pessoas que me violentaram nunca foram
punidas nem levadas ao tribunal”, lamenta O’Brien. “O crime era tão
horrível que ninguém acreditava. Era desumano. Animalesco. E nós não
podíamos fazer nada, a não ser esperar pela próxima pessoa a nos chamar
para cometer a mesma violência de novo. Eu espero que você nunca
testemunhe algo semelhante ao que eu passei”, completa.
As escolas industriais foram fechadas nos anos 1990 e substituídas
por escolas para menores delinquentes. Atualmente, há apenas cinco em
funcionamento em todo o pais. Os crimes dos quais membros da Igreja
Católica são acusados de cometer contra crianças durante mais de 60 anos
teriam acontecido também em orfanatos, reformatórios e em sacristias de
igrejas. Ordens religiosas como os Christian
Brothers (Irmãos Cristãos) chefiavam muitos desses locais.
Segundo investigações, meninas irlandesas teriam sofrido menos
abusos sexuais. Mas eram frequentemente molestadas moralmente,
humilhadas e espancadas em instituições dirigidas por freiras, como as
da ordem Sisters of Mercy
(Irmãs da Piedade). Há também relatos de trabalhos forçados em
instituições femininas, como os Magdalene
Asylums (Orfanatos de Madalena). As entidades que abrigavam
mulheres consideradas socialmente degradadas ficaram famosas em outros
países quando foram retratadas no cinema em 2002 no filme Em Nome de Deus (The Magdalene Sisters), de Peter
Mullan. O último abrigo da irmandade em Dublin foi fechado em 1996.
Religião
Antigamente, na Irlanda, havia uma tradição forte quanto à
profissão dos homens: qualquer um que decidisse ser médico ou padre
teria o futuro garantido. Quando um filho decidia ser sacerdote, a
família não precisava mais se preocupar. Ele teria a melhor educação, as
melhores roupas, uma boa moradia e tudo mais de que precisasse.
Cristopher Heaphy aponta isso como um dos fatores que podem ter levado a
tantos abusos por membros da Igreja. “Esses homens foram
supervalorizados. Nós os colocamos em pedestais onde eles jamais
deveriam estar. Por isso, eles se sentiam superiores e com direito de
fazer tudo o que achassem certo”, comenta.
Entretanto, o engenheiro não perdeu a religiosidade. “Eu acredito
em Deus. A Igreja é uma instituição gerenciada por homens. Quem cometeu
os crimes são pessoas e elas devem responder por isso. Mas eu ainda vou à
missa. Minha relação com Deus é direta, cara a cara. Não há um padre
entre nós”.
A postura de Michael O’Brien é semelhante. “Eu não vou à igreja.
Mas sempre serei católico por um único motivo: minha mãe me batizou na
igreja católica. E isso eu devo a ela”, explica. “Mas não tenho motivos
para ir à igreja. Muitos padres iam à minha casa conversar e beber
uísque quando eu era prefeito. Depois que eu deixei o cargo e resolvi
contar sobre os abusos, eles fingem que não me conhecem”, lamenta.
Sofrimento como rotina
De acordo com os relatos, nas escolas industriais as crianças eram
acordadas às 6h. Mesmo no inverno, elas usavam roupas curtas e, por
vezes, não tinham sapatos. Antes da missa das 7h, todos tinham de tomar
café da manhã: um pedaço de pão mergulhado num galão que misturava água e
geleia. Em seguida, todos deveriam estudar até a hora do almoço. Na
prática, crianças amedrontadas eram obrigadas a ficar sentadas em suas
mesas por horas, sem falar e sem aprender nada. Se alguém era
questionado e desse a resposta errada, tinha que ir à frente da sala,
tirar a roupa e apanhar do ‘professor’ diante de todos os colegas. No
meio da ‘aula’, alguns padres apareciam para tirar vários alunos das
classes. Os menores eram levados para o campo, onde trabalhavam
recolhendo pedras, batatas e outros vegetais.
“Não bastava trabalhar e obedecer. Os castigos eram severos e sem
motivo. Nós éramos atirados em uma banheira de água fria. Depois
tínhamos que tirar a roupa e subir uma escada, enquanto um adulto nos
batia com uma vara. Não havia razão para aquilo. Eles eram sádicos”, diz
Heaphy. O’Brien completa: “Nós éramos tirados da cama no meio da noite
para apanhar com a vara. Eles batiam em qualquer parte do corpo. Por
quê? Eu acho que aquilo dava a eles satisfação sexual”.
Ao chegar às escolas industriais, os garotos tinham o cabelo
raspado e ganhavam um número. Os nomes eram esquecidos e aquela era a
nova identidade deles. “O espancamento não era suficiente, eles queriam
nos humilhar. Os padres nos chutavam enquanto andávamos pelos corredores
e diziam que não éramos ninguém, que nunca seríamos nada. Aquilo era um
abuso mental. Nós tínhamos medo o tempo todo”, lembra o engenheiro.
“Havia o abuso mental, o abuso psicológico, o abuso físico... mas
nada se compara ao abuso sexual. Sujo, nojento, asqueroso. Um homem me
violentou brutalmente no meu primeiro dia naquele lugar e depois me
bateu, dizendo que eu era culpado pelo que tinha acontecido, que eu era o
diabo trazendo tentação. O pior foi ver o mesmo homem me dar a comunhão
na missa da próxima manhã. Depois de me estuprar, ele colocou a hóstia
em minha boca”, desabafa o ex-prefeito.
Heaphy conta que viveu situações semelhantes: “Em um instante eu
tinha o padre me ensinando religião. No próximo minuto, ele estava
arrancando as minhas roupas e estuprando meu pequeno corpo inocente.
Isso causou problemas psicológicos que me perseguem durante toda a
vida”.
Quando confrontadas com evidencias de abuso sexual, as autoridades
transferiam as crianças para outras instituições, onde elas poderiam
ser abusadas novamente.
Suicídio
As lembranças e os pesadelos que perseguem as vítimas dos abusos
muitas vezes conseguem acabar com a vida dessas pessoas. O’Brien
confessa ter tentado se matar uma vez. “Eu voltava dirigindo de Dublin
para Clonmel e quis destruir o carro para acabar de vez com o
sofrimento. Estava completamente desesperado, me sentindo como um pedaço
de sujeira. Só não terminei com a dor naquele momento porque minha
mulher estava ao meu lado e me convenceu a não fazer aquela besteira”,
relata.
Heaphy foi mais longe. Aos 29 anos, passou por um momento de
desespero e cortou as veias sanguíneas do braço. A hemorragia não foi
suficiente para matá-lo. “Eu fiz isso por causa dos crimes psicológicos.
Eu continuo indo ao analista a cada duas semanas até hoje, mas nunca
vou me livrar disso. Às vezes eu paro e penso que esse não é um corpo
para estar dentro. Em um momento eu estou alegre e, no instante
seguinte, algo me lembra o que aconteceu e a vida perde o sentido”.
Outros ex-internos não tiveram a mesma sorte. Por questões de
privacidade, as associações de vítimas trabalham para manter em sigilo
as identidades, mas sabe-se que muitos chegaram a cometer suicídio após
anos de tormento.
Escândalo
Os casos de violência contra internos das escolas industriais
ficaram amplamente conhecidos em maio de 2009, quando o juiz Sean Ryan
divulgou um relatório de 2600 páginas contendo o resultado de nove anos
de trabalho da Comissão de Investigação de Abuso Infantil na Irlanda. A
Comissão ouviu o testemunho de mais de 250 ex-internos e oficiais dessas
instituições. O documento afirma que durante 60 anos, da década de 30
até o fechamento das escolas nos anos 90, mais de 2 mil meninos e
meninas foram espancados, violentados e humilhados por padres e freiras.
Irlandeses que atualmente vivem em países como Austrália e Estados
Unidos voltaram para casa para contar sobre a infância de terror e
intimidação. O relatório classifica como ‘endemia’ a rotina de estupro e
molestação nas entidades gerenciadas pela igreja católica.
Representantes da igreja conseguiram adiar a divulgação do texto por
várias vezes e garantiram o direito de anonimato das pessoas citadas no
documento como culpadas pelos abusos, mesmo em casos de indivíduos
julgados e condenados por ataques físicos e sexuais contra crianças. A
manobra revoltou as vítimas. “Eu lutei 10 anos da minha vida para tudo
isso vir à tona. Eu fiquei exposto e expus minha família. E agora
ninguém será punido. É muito triste”, lamenta Michael O’Brien.
Igreja
A proporção do caso preocupou as lideranças da igreja católica. No
começo desse ano, bispos irlandeses foram chamados ao Vaticano para
explicar como estavam lidando com a questão da violência infantil. Em 19
de março, o Papa divulgou uma carta dirigida aos católicos da Irlanda.
No texto, Bento XVI se diz profundamente perturbado com as informações
sobre o abuso sofrido pelas crianças. O chefe da Igreja pede desculpas
pelo que ele chama de “traição, pecado e atos criminosos”. O conteúdo da
carta, no entanto, não foi tão bem recebido pelos irlandeses. “Nós
aceitamos as desculpas do Papa. Isso não é um problema. Acontece que a
maior parte da carta foi nada mais do que uma demonstração de
solidariedade aos bispos, cardeais e padres que falharam com o país. O
texto foi dirigido a eles, para mantê-los dentro da igreja”, comenta
Heaphy. O’Brien tem opinião parecida: “A carta trouxe uma desculpa que
me deixou feliz. Mas o principal ponto do documento é a própria Igreja. É
pedir aos bispos para unir a igreja, para salvar a instituição. Não há
nenhuma preocupação em salvar as pessoas abusadas pelos membros da
Igreja”.
Ainda no mês de março, o cardeal primaz da Irlanda pediu perdão
por ocultar os casos de abuso sexual no clero. Sean Brady se disse
envergonhado por não ter defendido valores que prega para os fiéis. Ele
admitiu que, em 1975, pediu a vítimas da violência que mantivessem
silêncio. As associações de ex-internos ficaram revoltadas e começaram
um movimento pela renúncia do Arcebispo. Em 31 de março, Brady se reuniu
com líderes das vítimas e prometeu uma investigação nacional sobre
todas as denúncias. O representante máximo da igreja católica na Irlanda
afirmou, no entanto, que só renuncia se o Papa pedir. A decisão do
cardeal é aguardada para o fim de maio.
*Texto e fotos.