terça-feira, 5 de abril de 2011

"Opressão à mulher árabe tem origens mais profundas e de classe"


Soraya Smaili
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Analisar o papel da mulher nas recentes revoltas árabes, com base no resgate histórico do processo de “ocidentalização” dessa cultura, que envolve desde a partilha do mundo árabe em 22 diferentes países até a imposição de ditadores aliados para garantir a exploração do petróleo. Esta é a proposta da diretora cultural e científica do Instituto da Cultura Árabe - ICArabe, Soraya Smaili, em entrevista concedida ao Informandes Online. De acordo com ela, é preciso se despir de preconceitos fomentados pelo ocidente para compreender bem como se dá a opressão à mulher no mundo árabe. “Como em outras situações históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente afetados são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais, pois o regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou sociais”, argumenta.
A diretora acrescenta que é preciso considerar sempre que o mundo árabe é bastante diversificado, com realidades mais ou menos favoráveis à mulher nos diferentes países. Entretanto, mesmo nos países em que a mulher parece sofrer maior opressão, a condição para sua liberdade está bastante relacionada à classe social a que pertence. Mesmo na Arábia Saudita, considerada a pior ditadura do mundo árabe, as mulheres da realeza têm direito de viajar e estudar, enquanto as demais sofrem todo tipo de restrição de liberdade. “A opressão à mulher tem origens mais profundas e de classe”, resume ela.
Soraya Smaili, graduada pela Universidade de São Paulo, obteve Mestrado, Doutorado e Livre-Docência na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo e fez estudos de pós-doutorado no National Institutes of Health. É vice-presidente da Adunifesp-SSind, diretora regional do ANDES-SN e diretora cultural e científica do Instituto da Cultura Árabe - ICArabe (www.icarabe.org).
Confira a entrevista na íntegra:

Qual o papel das mulheres nas recentes mobilizações por democracia que, desde o final de 2010, têm sacudido o mundo árabe?

Embora a mídia em geral não tenha destacado ou mesmo analisado, o papel da mulher árabe nos recentes levantes ocorridos, a sua presença e participação têm sido e são fundamentais. A visão que o Ocidente tem da mulher árabe é de uma pessoa submissa ao extremo, sem educação formal e sem profissão. Muitas vezes acredita-se que os árabes e, consequentemente, as mulheres árabes são atrasadas e ignorantes. Isso faz parte de um imaginário criado cuja base ideológica está no pensamento Orientalista. O Orientalismo, iniciado como corrente de pensamento no século XIX, se desenvolveu plenamente no século XX e tratou de apresentar os árabes como seres exóticos, diferentes, inflamados, temperamentais, ignorantes e atrasados.
Ou seja, seres que eram diferentes dos homens e mulheres do Ocidente, ditos civilizados. Este Ocidente tratou de mistificar e discriminar esse povo apresentando-o como um “não-povo”, o que deu sustentação à colonização e partilha do Mundo Árabe em 22 países com fronteiras artificiais e à exploração brutal de petróleo tão necessário ao Ocidente. Uma análise sobre esse contexto do século XX foi feita de maneira clara e aprofundada por Edward Said em seu livro Orientalismo.
A mulher, neste cenário, sofreu as consequências das políticas implantadas para o Mundo Árabe, e como parte do pensamento Orientalista, também foi apresentada como um ser inferior. Somada às questões femininas primordiais, o Orientalismo reforçou a opressão e criou profundos esteriótipos para a mulher árabe, tendo sido escandalosamente ridicularizada. No entanto, do ponto de vista histórico, a mulher árabe desempenhou papel fundamental na base da organização social e impediu que uma maior degeneração social ocorresse durante a implantação dos colonizadores.
As revoltas no Mundo Árabe de hoje devem ser vistas a partir de uma análise da ocupação e colonização (Ocidentação) e da partilha dos árabes como povo em vários países, da imposição de didatores aliados para o controle da região e da exploração brutal de Petróleo.  Aos longo de algumas décadas, os ditadores do Mundo Árabe trataram de controlar com mão de ferro, opressão e pobreza, a organização social que existia, impedindo e massacrando a possibilidade de desenvolvimento. Portanto, o levante árabe que o mundo está assistindo neste momento é um movimento por direitos universais, pelo fim da opressão, pelo direito à manifestação, pelo direito ao trabalho e a dignidade. É um movimento popular e, neste contexto, o movimento de mulheres está presente, participa e se insere plenamente.
Com algumas diferenças regionais, as mulheres e os movimentos feministas locais têm tido participação fundamental nos levantes populares. No Egito e Tunísia, organizaram manifestações específicas, chamaram as mulheres às ruas, clamaram e se organizaram na luta pela democracia. Na Tunísia existem organizações importantes de mulheres que marcharam contra o ditador Bin Ali. Logo após a sua queda, elas se organizaram em comitês e reivindicam que o estabelecimento do estado democrático passa também pela conquista dos direitos das mulheres. Depois disso, estabeleceu-se lá um Comite especial para reivindicar os direitos das Mulheres Tunisianas na transição democrática.
No Egito, as mulheres marcharam, convocaram e organizaram grandes manifestações e entraram diretamente nos confrontos. As TVs do mundo exibiram imagens marcantes de mulheres de todos os tipos clamando por democracia e pelo fim da ditadura Mubarak, para espanto geral do Ocidente. Criaram o movimento chamado “As Mulheres da Praça Tahrir”, que reuniu centenas de ativistas, dentre estas, algumas feministas históricas, como Nawal Al Saadawi. Isso mostrou uma faceta do Mundo Árabe que estava obscurecida pela visão orientalista, ou seja, apresentou os movimentos seculares e boa parte deles compostos de mulheres intelectualizadas. E também vimos as mais jovens atuando na organização por meio da internet e utilizando ferramentas de comunicação chamadas modernas. Mais uma vez, desfazendo a idéia de que as mulheres não teriam acesso ou não saberiam utilizar tais recursos.
Porém, existe uma grande diversidade no Mundo Árabe e o papel das mulheres em alguns outros locais, como no Iemen, talvez não esteja tão evidente.  Mas é preciso lembrar que em alguns locais, os regimes ditatoriais foram ou são muito mais opressores para a população em geral, como ocorre na Líbia, no Iemen e em outros locais. De maneira geral, as mulheres têm tido grande destaque e são protagonistas dos movimentos, manifestações e atuam fortemente pela democracia, mesmo que isso nem sempre seja noticiado ou que esteja aparente para a mídia internacional. Portanto, é errada a idéia de que as mulheres árabes não participam, são alienadas ou reprimidas. Elas têm a consciência dos seus direitos e lutam por eles, como as mulheres do mundo.

A questão de gênero está pautada nesta revolução em curso? De que forma?

Sim, certamente. Como explicado anteriormente, os levantes populares devem ser vistos pelo prisma de um movimento pós-colonial e contra a implantação artificial de opressores e ditadores que foram impostos para controlar as manifestações da população árabe em geral. Esse povo foi colonizado por algumas décadas e depois controlado com mão de ferro pelas décadas seguintes. É um povo sedento por liberdade e pelo exercício dos seus direitos e dignidade. Portanto, todas as questões que dizem respeito às liberdades e aos direitos universais estão pautadas. A questão da mulher, dos seus direitos inalienáveis, faz parte deste contexto.

A opressão da mulher é maior no mundo árabe? Por quê?

Essa é uma pergunta bastante interessante, mas não dá para responder com um “sim” ou um “não”. Na verdade, podemos dizer que sim e que não. O Mundo Árabe é bastante diverso, são 22 países que vão da Península Arábica e se estendem a todo o Norte da África. Há questões culturais regionais importantes e que precisam ser consideradas. Há locais em que a mulher não tem direito ao voto, não tem direito à manifestação e várias outras coisas. É o que acontece na Arábia Saudita. Mas, novamente é preciso considerar o contexto social e político.
Nesse país, os homens também têm liberdades muito restritas, se comparados aos outros homens do mundo. Não é possível a livre manifestação de qualquer tipo, pois se trata de uma ditadura absoluta. Ou seja, homens e mulheres são reprimidos, porém, como em outras situações históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente afetados são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais, pois o regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou sociais. Ainda na Árabia Saudita, a liberdade também depende da classe social, pois mulheres e homens da família real têm acesso à educação e recursos ilimitados. Há mulheres da realeza que pilotam aviões, que estudam, que viajam. Portanto, a opressão à mulher tem origens mais profundas e de classe.
Por outro lado, há outros locais em que as mulheres têm acesso à educação, trabalho e liberdade de expressão, como no Líbano e na Palestina, e as questões femininas que vivem são semelhantes às que as mulheres ocidentais enfrentam. Porém, no mundo árabe, há outros valores que o Ocidente não leva em consideração, mas que são valores humanos, como a dignidade e o respeito à mulher. Por exemplo, existe uma impressão generalizada de que todas as mulheres árabes são muçulmanas e usam o lenço (hijab). Não é verdade que todos os árabes sejam muçulmanos e também não é verdade que todas as mulheres sejam obrigadas a usar lenço, nem mesmo as muçulmanas. Existe a idéia de que as muçulmanas são reprimidas e obrigadas a usar o hijab, quando na verdade, em boa parte dos casos trata-se de uma opção pessoal.
No Líbano, Síria e Egito, por exemplo, as mulheres não são obrigadas a cobrir os cabelos e muitas muçulmanas cobrem por opção, porque faz parte dos costumes e da cultura. Em vários locais, como no Líbano e Tunísia, uma boa parte das muçulmanas não quer e não são obrigadas a se cobrir. Por terem a opção de usar o lenço, as mulheres árabes se sentem respeitadas, pois é um direito. Ao contrário do que ocorre em alguns países do Ocidente civilizado, onde as muçulmanas foram impedidas do seu direito de utilizar o hijab, o que é extremamente autoritário.

Qual o papel da religião no processo de opressão da mulher?

Inicialmente, é preciso salientar novamente que nem todas as mulheres árabes são muçulmanas. No Egito, por exemplo, uma parte da população é cristã copta. No Líbano, há católicos de várias igrejas e também judeus. Além disso, é preciso fazer uma distinção entre os países onde o Estado é teocrático, como na Arábia Saudita e Iêmen. Neste caso, a religião é usada para a opressão, embora a religião muçulmana, em seus preceitos fundamentais, não prega a opressão ou retirada de direitos. Ao contrário, no momento da fundação do Islã, as mulheres eram fortemente oprimidas em uma sociedade tribal. O Islã, como filosofia, trouxe a regulamentação de direitos femininos, como o acesso à educação e participação na expansão da civilização islâmica do século VII ao XIII. Portanto, é preciso separar o Islã da religião islâmica.
A religião, como outras doutrinas, sofreu adaptações e regionalizações e foi implementada de acordo com os costumes locais, sendo utilizada como instrumento de controle ideológico. Além disso, em muitos lugares onde chegou, se deparou com costumes tribais (não só na Península Arábica, mas também no Norte da África e Oriente). Por isso, hoje, em vários países de maioria muçulmana, são perpetrados costumes tribais que não têm a menor fundamentação religiosa, como por exemplo, a mutilação de órgãos genitais que ocorre em regiões da África (muçulmana ou não). O Islã proibiu fortemente essa prática, mas ela tem sido divulgada como uma prática muçulmana, mas na verdade é uma prática tribal, exercida por comunidades não muçulmanas também. A maior parte das práticas opressivas à mulher e que ocorrem em países árabes se deve mais aos costumes regionais ou às distorções criadas por fundamentalistas religiosos, que existem em todas as religiões, do que propriamente por conceitos do Islã.

Os países árabes também têm a tradição de comemorar o Dia Internacional da Mulher?

Sim. Há movimentos muito fortes e sérios no mundo árabe e as mulheres estão organizadas e concatenadas com outros movimentos feministas do mundo inteiro. Há inúmeras organizações em diversos países e há uma corrente feminista que irmana as mulheres árabes entre elas (já que estão distribuídas em diferentes regiões) e com as mulheres de todo mundo. Neste sentido, as mulheres árabes estão muito mais avançadas e há muito participam da internacionalização dos movimentos sociais universais, que incluem o movimento feminista.
Fonte: Andes-SN

Globo terá que explicar contratos para o CADE





Jorge Seadi no Sul21



A disputa pelos direitos de transmissão por tevê do campeonato brasileiro a partir de 2012 continua acontecendo nos bastidores, apesar de a Rede Globo falar que já acertou com 18 clubes, embora somente 11 tenham assinado com a emissora carioca. O último foi o Palmeiras, que não revelou detalhes do acerto.

Na semana passada, o Conselho de Administração dos Direitos Econômicos (CADE) notificou o Clube dos 13 e a Rede Globo para prestar explicações sobre o andamento das negociações. Do Clube dos 13, o CADE quer detalhes da concorrência em que só a Rede TV participou e da Globo quer analisar os contratos já assinados com os clubes.

Para o CADE, haveria aparentemente um item nos contratos que a Rede Globo assinou com os clubes que contraria o determinado pelo próprio CADE, com a concordância da Globo, no ano passado. A Globo terá que explicar porque assinou contratos individualmente e por todas as mídias, quando as negociações deveriam ser feitas separadamente.

Se o CADE não aceitar as explicações da Rede Globo, poderá determinar a nulidade dos contratos, além de multar a Rede Globo e os clubes. No acordo assinado no ano passado entre a Globo, o Clube dos 13 e o CADE, estava prevista a abertura de uma concorrência para a escolha da empresa que ficaria com os direitos para cada plataforma de transmissão — tv aberta, tv fechada, pay per view, internet e celular. A Globo não participou da licitação e ainda fechou contrato por todas as mídias.

O Clube dos 13 aguarda um chamado do CADE com uma definição do que vai acontecer a seguir. O presidente Fábio Koff acredita que a ação da rede Globo é ilegal e que o contrato assinado pelo Clube dos 13 com a Rede TV é o que deve ser colocado em prática.

No Rio Grande do Sul,apenas o Grêmio confirmou que assinou com a Globo. A decisão do presidente Paulo Odone provocou bate-boca na última reunião do Conselho Deliberativo, com o presidente deixando a sala intempestivamente sem dar detalhes do contrato assinado. Já o Internacional confirmou estar negociando com a Rede Globo e de também ter ouvido proposta da Rede Record. O clube não informou ainda se assinou com alguma das redes. A Globo acertou com o Grêmio por R$ 40 milhões ao ano entre 2012 a 2015, incluíndo todas as plataformas. Pagou ao Grêmio como “luvas” R$ 7 milhões, dinheiro que o Grêmio já teria recebido. A proposta para o Internacional seria a mesma. Já clubes para como o Corinthians a Globo irá pagar R$ 140 milhões por ano também pelo período de 4 anos.

Desde que o campeonato brasileiro teve os direitos de transmissão de seus jogos negociados com a televisão, a Rede Globo foi a única emissora que comprou estes direitos. Em 1997, o SBT tentou comprar os direitos, fez uma proposta maior que a da Globo, mas a emissora carioca exerceu uma cláusula que lhe dava a preferência para cobrir propostas da concorrência. E foi o que fez. Inconformado com o previlégio, Silvio Santos acionou o CADE que discutiu o assunto por longos 13 anos. No final do ano passado, em razão deste processo iniciado por Silvio Santos, o CADE, a Globo e o Clube dos 13 assinaram o acordo em que acabava com a “cláusula de preferência”.

Aproveitando a determinação do CADE pela realização de concorrência, a Rede Record entrou nas discussões preliminares anunciando que cobriria qualquer proposta. Em resposta, a emissora carioca trabalhou nos bastidores para não perder um dos melhores produtos que tem em sua grade de programação, com ótimo retorno financeiro e de audiência.

Enquanto o CADE obrigava a Globo a se preparar para uma concorrência, a CBF tentou derrubar o presidente Fábio Koff da direção do Clube dos 13. Apoiou abertamente Kléber Leite, ex-presidente do Flamengo, com a ajuda de alguns clubes, dentre eles o Corinthians. Usou toda a sua “máquina” e mesmo assim perdeu a eleição. Passou, então, a trabalhar também nos bastidores em parceria com a Rede Globo. E o resultado de tudo isto é uma importate briga de bastidoresa em que clubes, Globo, e Clube dos 13 travam pelos direitos de televisão.

O campeonato deste ano não terá alterações nos direitos. A Rede Globo vai continua transmistindo em tv aberta, tendo a Band como parceira, a Sportv estará na tv fechada e o pay per view segue com a Globo. A única mudança é o do número de jogos de alguns clubes que terão transmissão por tv aberta. O esquivo São Paulo, por exemplo, terá uma grande redução do número de jogos transmitidos pela Globo e aqui em Porto Alegre, o Grêmio terá maior número de partidas transmitidas pela RBS (afiliada da Rede Globo) que o Internacional.



Com informações da Folha de S.Paulo

Agronegócio não garante segurança alimentar



De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, 70% do que comem os brasileiros vem da agricultura familiar

Por Raquel Júnia

No Assentamento Americana , no município de Grão Mogol, região norte de Minas Gerais, há de tudo um pouco - hortaliças, legumes, frutas, frutos típicos do bioma cerrado que cobre a região, criação de animais. De acordo com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA NM), que presta assessoria aos assentados desde o início da ocupação da área, tecnicamente o que está sendo desenvolvido na região é o que se chama de sistemas agroflorestais e silvipastoris - ou seja, a conciliação de atividades agrícolas com a criação de animais e o extrativismo, de forma a garantir a preservação do bioma cerrado e também a produção de alimentos saudáveis.  A situação dos moradores do assentamento Americana, onde, segundo eles próprios, "há de tudo um pouco", é um exemplo de como a agricultura familiar, sobretudo a prática agroecológica, podem garantir a segurança e a soberania alimentar.
Mas o que significa segurança alimentar? De acordo com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão consultivo ligado à Presidência da República, a concretização da segurança alimentar "consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis". Outra característica da produção em Americana que garante a segurança alimentar da população é que, além da diversidade de produtos e da convivência com o meio ambiente, os agricultores praticam a agroecologia - um conjunto de princípios que balizam a agricultura, entre eles a não utilização de agrotóxicos. A EPSJV participou da visita ao assentamento Americana durante a programação da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas, que reuniu experiências dos agricultores familiares locais como etapa preparatória a um encontro nacional.
Na mesa dos brasileiros: resultados da agricultura familiar
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é a agricultura familiar a grande responsável pela alimentação da população brasileira, garantindo em torno de 70% do que é consumido. "É a agricultura familiar que produz feijão, arroz, leite, verdura, é a produção diversificada que consumimos todos os dias. Tem uma importância muito forte para a segurança alimentar e também para a soberania alimentar", afirma o secretário nacional de agricultura familiar do MDA Laudemir Muller. Ele diz que a produção da agricultura familiar tem crescido muito, acompanhando o consumo de alimentos, que também aumentou. Laudemir explica que a soberania alimentar também é garantida com este modelo de agricultura. "É a agricultura familiar que preserva as tradições, que tem uma produção diversificada, que mantêm a tradição das sementes. Então, na escolha do que nós comemos, a agricultura familiar é o grande bastião dessa diversidade, seja dos povos da floresta, do cerrado, dos grupos de mulheres", comenta.
Entretanto, dados do próprio Consea mostram que o agronegócio cresce mais do que a agricultura familiar e, de acordo os participantes da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas , este modelo de produção tem ameaçado a segurança e a soberania alimentar do país por vários motivos. Entre os problemas do agronegócio estão a concentração de terras e a consequentemente a diminuição das áreas destinadas à agricultura familiar; a baixa diversidade de produção, pois há regiões inteiras com apenas uma espécie plantada - como as monoculturas de eucalipto, cana de açúcar e soja; e a utilização de tecnologias como a dos agrotóxicos e transgênicos, que apresentam um risco para a saúde.
Um relatório do Consea lançado no final de 2010, que avalia desde a Constituição de 1988 até a atualidade a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada no Brasil, apresenta dados que confirmam este problema. De acordo com o estudo, o ritmo de crescimento da produção agrícola destinada à exportação é muito maior do que para o consumo interno. "A área plantada dos grandes monocultivos avançou consideravelmente em relação à área ocupada pelas culturas de menor porte, mais comumente direcionadas ao abastecimento interno. Apenas quatro culturas de larga escala (milho, soja, cana e algodão) ocupavam, em 1990, quase o dobro da área total ocupada por outros 21 cultivos. Entre 1990 e 2009, a distância entre a área plantada dos monocultivos e estas mesmas 21 culturas aumentou 125%, sendo que a área plantada destas últimas retrocedeu em relação a 1990. A monocultura cresceu não só pela expansão da fronteira agrícola, mas também pela incorporação de áreas destinadas a outros cultivos", diz o documento.
O relatório também faz um alerta sobre o uso de agrotóxicos. "O pacote tecnológico aplicado nas monoculturas em franca expansão levou o Brasil a ser o maior mercado de agrotóxicos do mundo. Entre as culturas que mais os utilizam estão a soja, o milho, a cana, o algodão e os citros. Entre 2000 e 2007, a importação de agrotóxicos aumentou 207%. O Brasil concentra 84% das vendas de agrotóxicos da América Latina e existem 107 empresas com permissão para utilizar insumos banidos em diversos países. Os registros das intoxicações aumentaram na mesma proporção em que cresceram as vendas dos pesticidas no período 1992-2000. Mais de 50% dos produtores rurais que manuseiam estes produtos apresentam algum sinal de intoxicação", denuncia o Consea.
Para a presidente do Conselho Federal de Nutricionistas, Rosane Nascimento, não é necessário que o Brasil lance mão de práticas baseadas no uso de agrotóxicos e mudanças genéticas para alimentar a população. "Estamos cansados de saber que o Brasil produz alimento mais do que suficiente para alimentar a sua população e este tipo de artifício não é necessário. A lógica dessa utilização é a do capital em detrimento do respeito ao cidadão e do direito que ele tem de se alimentar com qualidade", protesta. Ela explica por que os transgênicos ameaçam a soberania alimentar. "O alimento transgênico foi modificado na sua genética e gerou uma dependência de um produto para ser produzido, então não é soberano porque irá depender de uma indústria de sementes para produzir aquele alimento, quando na verdade ele deve ser crioulo, natural daquela região, daquela localidade, respeitar os princípios da soberania", afirma.
Enquanto o MDA aposta na agricultura familiar e procura desenvolver políticas públicas para fortalecer esta atividade, segundo afirma o próprio ministério, outro ministério - o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), aposta no agronegócio. O MAPA confirma, por meio da assessoria de imprensa, o alto desempenho da agricultura para exportação no Brasil. "O Brasil alcançou recorde nas exportações brasileiras do agronegócio nos últimos 12 meses. O número chegou a US$ 78,439 bilhões, um valor 19,8% acima do exportado no mesmo período do ano passado (US$ 65,460 bilhões)", afirma o ministério. Segundo dados do MAPA, em janeiro de 2011, a exportação de carnes foi a mais lucrativa, seguida pelos produtos do complexo sucroalcooleiro (açúcar e álcool), produtos florestais (que incluem borracha, celulose e madeira), café e o complexo soja (farelo, óleo e grãos).
Questionado sobre o uso abusivo de agrotóxicos na agricultura brasileira, o MAPA responde: "O que podemos dizer é que em 2010, os fiscais federais agropecuários do Ministério da Agricultura analisaram 650 marcas de agrotóxicos, em 197 indústrias do país. Do total, 74 produtos apresentaram irregularidades, o que representou 428,9 toneladas apreendidas. O resultado aponta que 88,6% dos agrotóxicos estavam dentro dos padrões". E continua: "O papel do Ministério da Agricultura é assegurar que os agrotóxicos sejam produzidos por empresas registradas e entrem no mercado da forma que consta no registro. Fazemos a fiscalização para verificar, desde a qualidade química do produto até o processo de fabricação e rotulagem".
Já o MDA alerta que a monocultura de uma forma exagerada, com grandes proporções, pode trazer problemas. "O ministério tem trabalhado para apoiar  e viabilizar, com políticas públicas, este modelo de agricultura familiar, que é um modelo diversificado. Nós não achamos interessante a monocultura, seja a grande monocultura ou a pequena monocultura. Para a nós a diversidade é muito importante. Para nós, o modelo mais adequado e mais necessário para o país é o da agricultura familiar", reforça Laudemir Muller. O secretário destaca também que é um entusiasta da agroecologia. "Nós sabemos que infelizmente o país está com este título (de maior consumidor de agrotóxicos do mundo), e isso é uma das conseqüências da expansão da monocultura em nosso país. É preciso apoiar firmemente quem quer produzir de uma forma agroecológica", diz.
Populações tradicionais e indígenas correm mais risco
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), as populações indígenas e quilombolas são as que mais sofrem com a insegurança alimentar e nutricional. O relatório elaborado pelo Consea critica a demora na demarcação das terras indígenas e quilombolas, o que prejudica o direito a alimentação adequada. "Verifica-se que a morosidade para a demarcação das terras indígenas tem impactado negativamente a realização do direito humano à alimentação adequada dos povos indígenas, desrespeitando a forte vinculação entre o acesso à terra e a preservação dos hábitos culturais e alimentares desses povos", diz o documento.
A secretária nacional de segurança alimentar e nutricional do MDS, Maya Takagi, afirma, por exemplo, que os índices de crianças com baixa estatura em relação à idade é maior nas comunidades indígenas e quilombolas, situação decorrente da quantidade insuficiente de alimentos. "Nesses grupos específicos ainda temos o problema da quantidade de alimentos. Mas nosso desafio é também o da qualidade, conseguir ofertar alimentos de maior qualidade, de forma que as famílias de modo geral possam se alimentar de produtos saudáveis e naturais. Então, temos ainda um problema duplo, com o problema da quantidade mais localizado por grupos e regiões", descreve.
Maya cita os dados presentes no próprio relatório do Consea, segundo o qual 6,7% da população brasileira de crianças abaixo de cinco anos sofre com problemas de insegurança alimentar. Indicadores, segundo ela, considerados aceitáveis internacionalmente. Entretanto, o problema se agrava quando o dado é analisado por região e por grupos. A região norte é a que apresenta mais risco com 14,8% da população infantil sofrendo insegurança alimentar, o índice é de 26% na população indígena, 15% entre os quilombolas e 15,9% entre as famílias mais pobres.  No caso dos adultos, o déficit de peso brasileiro diminuiu: passou de 4,4% em 1989 para 1,8% em 2010. Maya considera que é necessário haver muitas políticas públicas para resolver a situação. "Regularização fundiária, acesso à terra, apoio para a produção, banco de sementes, assistência técnica, políticas de proteção social. Um conjunto grande de políticas", elenca.
11,2 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave
O estudo do Consea mostra que os desafios para ser alcançada a segurança alimentar no Brasil ainda são grandes. "Em 2009, a proporção de domicílios com segurança alimentar foi estimada em 69,8%, com insegurança alimentar leve 18,7%, com insegurança alimentar moderada 6,5% e com insegurança alimentar grave 5,0%. Esta última situação atingia 11,2 milhões de pessoas".
O relatório também afirma que há diferenças na alimentação dos mais pobres e mais ricos. "Comparando-se a maior e menor faixa de rendimento, a participação dos alimentos é 1,5 vezes maior para carnes, 3 vezes maior para leite e derivados, quase 6 vezes maior para frutas e 3 vezes maior para verduras e legumes, entre os mais ricos. Além dessas diferenças, também ocorre maior consumo de condimentos, refeições prontas e bebidas alcoólicas à medida em que ocorre o crescimento da renda".
No assentamento Americana, onde não se pode dizer que as pessoas tenham alto poder aquisitivo, um almoço foi preparado pelos camponeses do local para receber os visitantes. Nas grandes panelas em cima do fogão à lenha, havia feijão andu - uma das quatro espécies de feijão produzidas no local - com farinha, arroz, carne de porco, mandioca e couve temperada com óleo de pequi. Para acompanhar, três tipos de suco de frutas e, de sobremesa, marmelada. De tudo o que foi servido, apenas o arroz não foi produzido na localidade. No entorno do assentamento, há muitas terras destinadas à monocultura do eucalipto. "Conseguimos avançar bastante e entendemos que para termos uma vida digna é preciso ter alimentação, educação e saúde", aposta Aparecido de Souza, assentado do local e diretor do Grupo Extrativista (do Cerrado, uma organização criada pelos moradores.
Para Rosane Nascimento, outro desafio é também garantir uma mudança no perfil de consumo de alimentos. "A pesquisa de orçamento familiar do IBGE corrobora uma tendência crescente do surgimento das doenças crônico-degenerativas, tais como diabetes, hipertensão, obesidade. São doenças causadas principalmente por uma má alimentação e estilos de vida não saudável. Com o crescimento econômico e uma possibilidade de promover o acesso a essa alimentação, temos uma classe que aumentou o acesso em termos de consumo mas isso não foi associado a uma boa escolha dos alimentos que estão indo para a sua mesa", analisa, destacando, entretanto, que o problema da obesidade está em todas as classes. A nutricionista acredita que deve haver políticas públicas que ataquem o problema.
Lúcio Moreira, também morador do assentamento Americana, diz que na comunidade já há uma conscientização quanto a isso. "Não trazemos mais tanto refrigerante e dizemos para as pessoas que muitas vezes elas consomem veneno quando compram no supermercado", diz.

* Texto publicado originalmente no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Por que o Capital financia Luciana Genro e o MES?

Escrito por Mário Maestri   no Correio da Cidadania
 
Desde que os trabalhadores ingressaram na arena política e social, pondo a questão de sua representação, a degeneração de suas lideranças e organizações tornou-se acontecimento recorrente, que assumiu enormes dimensões nos momentos em que as classes exploradas recuaram diante da ofensiva dos exploradores. Karl Marx abordou esse fenômeno nas páginas luminares de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, ao dissecar as razões da degeneração que definiu de "cretinismo parlamentar".
 
A primeira grande defecção de lideranças socialistas deu-se no início da II Guerra, quando as principais lideranças operárias européias aprovaram os créditos militares, levando a que os trabalhadores fossem arrastados ao holocausto imperialista, sem oposição efetiva. A submissão ao militarismo burguês fora salto de qualidade em ruptura anterior, ocorrida na esteira da expansão do capitalismo e das concessões da representação sindical e parlamentar, conquistadas pelos trabalhadores.
 
Os principais paladinos dos oprimidos europeus acomodaram-se gostosamente às benesses das posições ocupadas nos sindicatos, parlamento, administração, universidades, aparelho dos partidos. Passaram a lutar para aprofundar a integração ao Estado que ainda juravam querer destruir. Já não se dispunham a arriscar a posição a que haviam sido elevados na imprescindível e implacável luta contra o capital.
 
A Essência e a Consciência
 
No exercício do mandato objetivo e subjetivo outorgado pelo mundo do trabalho, direções operárias passaram a expressar as necessidades de segmentos médios e da aristocracia operária que se aninhavam igualmente à sombra do prestígio e força que os oprimidos adquiriam em duras e longas batalhas. Não mais representavam os setores que, segundo Marx e Engels, "nada tinham a perder, e tudo a ganhar" com a revolução. Queriam, podiam e progrediam no capitalismo, que passaram a defender, sob os olhares complacentes dos exploradores, que lhes apoiaram na estrada da traição que embocavam.
 
A teoria leninista do partido construiu-se na luta contra a expropriação do mandato delegado pelos trabalhadores por parte de lideranças seduzidas pelo colaboracionismo. Para garantir direção aos oprimidos à altura das suas necessidades, os bolcheviques propuseram que os partidos operários se construíssem, política e organicamente, a partir de trabalhadores de vanguarda nucleados.
 
Para impedir a infiltração, mesmo inconsciente, do partido da revolução pelo cretinismo parlamentar e o colaboracionismo, afastavam dos órgãos máximos da direção seus dirigentes, enquanto ocupassem postos parlamentares, e não aceitavam militantes que vivessem da exploração do trabalho – industrialistas, latifundiários, comerciantes, banqueiros etc. Aplicavam o princípio de que, no geral, a existência material determina a consciência política e ideológica.
 
Em 1923, León Trotsky denunciou no opúsculo Curso Novo a burocratização do Partido Bolchevique, que levaria, décadas mais tarde, ao fim da URSS. Nessa obra premonitória, assinalava que aquele partido perdia sua consistência, por se encontrarem os trabalhadores ligados à produção em minoria, dominando entre os militantes os membros do aparato administrativo, militar, diplomático, comumente ex-trabalhadores desligados da produção.
 
No Brasil e no Rio Grande do Sul
 
Nos anos 1980, a polêmica no PT entre "partido de massa" e "partido de quadros" foi vencida pelos que se opunham à nucleação dos militantes, defendendo organização fluída, controlada e dirigida por parlamentares, administradores, profissionais etc. Os resultados são conhecidos: hoje, antigos sindicalistas classistas e militantes revolucionários dedicam-se de corpo e alma às necessidades do capital, que os remunera regiamente em bens materiais e imateriais. Nessa safra de trânsfugas engordados pelos bons serviços ao Estado, encontram-se ex-trotskistas lambertistas, mandelistas, morenistas; maoístas, guevaristas, autonomistas; todos arrependidos dos pecados da juventude.
 
Quando da fundação do PSOL, repetiu-se ritualmente a disputa entre "partido de quadros" e "de massas", vencendo fulminantemente a desnecessidade da nucleação. Sem o impulso classista das lutas de fins dos anos 1970 conhecido pelo PT, o PSOL construiu-se no geral em torno das tendências de deputados ex-petistas e de frágeis segmentos organizados e não organizados dedicados a verdadeiro trabalho de Sísifo, para dar àquela organização impulsão classista, socialista e marxista.
 
No Rio Grande do Sul, o operariado industrial e urbano encontrou sempre enorme dificuldade para organizar-se autonomamente, levando a que o movimento social tivesse como eixo, sobretudo, a luta dos camponeses sem terra, dos bancários e do professorado da rede pública estadual. Nos últimos anos, regrediu fortemente a mobilização dos sem terra, em favor de outras regiões, e a dos bancários, golpeados pela racionalização do setor. Sob a depressão do mundo do trabalho na sociedade sulina, o PSOL regional nasceu e cresceu especialmente nas classes médias, sob a hegemonia da ex-deputada Luciana Genro e de sua tendência, o MES (Movimento Esquerda Socialista), de fortes traços colaboracionistas.
 
Ficando e saindo do PT
 
Luciana Genro elegeu-se como deputada estadual, pelo PT, em 1995, com 24 anos, alavancada pelo prestígio eleitoral de seu pai, Tarso Genro, então prefeito da capital. Integrava então pequena tendência estudantil que rompera com a Convergência Socialista (depois PSTU), que se negara a abandonar o PT. Nos anos seguintes, construiu-se como liderança da juventude, estudantes e professores da rede pública radicalizados.
 
Com a formação do PSOL, consolidou a hegemonia de seu grupo no Sul e estendeu a influência a outros estados, já com prática eleitoreira, uma das razões que levou ao afastamento das principais direções combativas do professorado que confluíram no MES. A crescente social-democratização do MES levou-o a priorizar o denuncismo da corrupção, fenômeno agora endêmico no Rio Grande, marginalizando a organização e propaganda classista e socialista. Viveu ativamente a proposta dos Fóruns Mundiais, de transformar a sociedade no interior do capitalismo. Apoiou acriticamente o nacional-populismo da Venezuela, Bolívia e Equador.
 
O MES defende agora que as revoluções do norte da África não ultrapassem as reivindicações democrático-burguesas. "Sendo revoluções democráticas, aqueles que levantam a bandeira do socialismo estão absolutamente descontextualizados. Hoje não há a possibilidade de criar uma alternativa de massas sob esta bandeira" (psol50.org.br). Os importantes escores eleitorais de Luciana Genro, para deputada federal, em 2002 e 2006, e à prefeitura de Porto Alegre, em 2008, facilitaram a arregimentação de vocações parlamentares e administrativas, algumas realizadas, outras à espera de realização. 
 
De braços dados com o Capital
 
Em outubro de 2008, candidata à prefeitura da capital, Luciana Genro foi de chapéu na mão receber cem mil reais da GERDAU, o principal grupo transnacional rio-grandense, ferindo os próprios estatutos do PSOL. Roberto Robaina, presidente do PSOL sulino, dirigente máximo do MES, companheiro desde sempre de Luciana, afirmou nada haver de mais na iniciativa e estar pronto para outras contribuições semelhantes. A militância socialista e de esquerda do PSOL pataleou, bufou e o coreto seguiu adiante.
 
Nas passadas eleições, o MES contava com votação estrondosa a reeleger Luciana Genro ao Congresso, Roberto Robaina à assembléia e, talvez, mais um ou dois deputados. Durante o período anterior e na campanha, Luciana, Robaina, Pedro Ruas e o MES centraram obsessivamente a agitação política na denúncia da corrupção do governo Yeda Crusius, que dera muito pano pra manga, nesse relativo.
 
Ao igual que nos anos anteriores, a campanha de Luciana comportou infindáveis referências, fotos, afagos e declarações positivas a Tarso Genro, ex-ministro da Educação e, a seguir, da Justiça, candidato a governador. A deputada pousou sentada no colo do papai, para constrangimento da militância psolista. Propondo tratar-se de relação entre pai e filha, apareceu na propaganda televisiva de Tarso Genro ao governo!
 
A ver navios!
 
Nas últimas eleições, o resultado eleitoral do MES no Sul foi pífio. O escore eleitoral de Luciana Genro despencou, perdendo 56 mil votos em relação à eleição anterior, não se elegendo para a Câmara. Robaina, que se dava por eleito, sequer morreu na praia. Foram muitas as razões apontadas do desastre. A fragilidade do programa do PSOL sulino, centrado na denúncia da ex-governadora, esvaziou-se com a sua rejeição eleitoral, que a relegou a uma humilhante terceira colocação.
 
A orientação política de Luciana, nos últimos anos e na campanha, afastou-a do eleitorado mais combativo. Ela também perdeu contato com o eleitorado mais jovem e menos politizado que, ajudado pelo refluxo social, votou na candidata progressista que parecia expressar a juventude, segundo os padrões mais alienados: ou seja, a candidata mais simpática, mais jovem, mais bonita. Já quarentona e com filho da idade de seu ex-eleitorado, Luciana viu-se substituída por Manuela D’Ávila, do PC do B, de 30 anos, rosto bonito e cabeça vazia, cuja campanha estava centrada na palavra de ordem: "E aí, beleza?". Manuela obteve o mais alto escore eleitoral na eleição – quase 500 mil votos!
 
Para o militante social, o parlamento é posição transitória e eventual. Luciana ressentiu-se fortemente da perda de mandado mantido havia dezesseis anos. A situação de cidadã comum comprometia toda uma futura trajetória, em direção à prefeitura da capital e, quem sabe, ao governo do estado. A derrota agravava-se com a lei anti-nepotismo que proíbe candidatura de parentes até segundo grau de governantes. Por quatro – e, caso Tarso Genro se reeleja, oito – anos, encontrava-se proibida de concorrer a cargo legislativo, em partido sem administração de prefeituras e governos.
 
Filha não é parente!
 
Apenas derrotada, Luciana saiu em campanha, buscando apoios, até mesmo entre políticos direitistas, para reivindicar o direito de candidatar-se, em 2010, a vereadora da capital para, certamente em 2012 tentar retorno à câmara. Tratava-se de convencer a Justiça Eleitoral de sua excepcionalidade, pois não é do partido de seu pai e diz não depender politicamente dele. Qualquer coisa como "filha" não é "parente", na esteira da campanha brizolista dos anos 1960, de que "cunhado" não era parente – como realmente não é!
 
Mas retomar a campanha, após dois anos longe dos holofotes e recursos permitidos pelo parlamento, concorrendo contra dois vereadores de sua tendência, requer indubitavelmente recursos ingentes, impossíveis de obter em tendência de muitos capa-preta e pouquíssimos soldados e peões. Sob o signo da Gerdau, Luciana saiu em busca do dinheiro onde está, esquecendo que toda a mulher de César não deve apenas ser honesta, como deve parecer honesta! E vice-versa.
 
Sob o guarda-chuva de cursinho pré-vestibular para cem alunos carentes, "Projeto Emancipa", arrancou financiamento quase milionário de grandes empresas privadas. Piorando tudo, sediou inicialmente sua empresa em duas salas do mais tradicional colégio público estatal sulino, o Júlio de Castilhos, agora sob a autoridade paterna. Um prato feito para a revista Veja, que lhe dedicou página inteira, na edição de 9 de março, espinafrando a ela, ao seu pai, ao PSOL e à esquerda revolucionária e classista, que nada tem a ver com essa operação estranha.
 
O Capital e a Revolucionária
 
O curso é gratuito para os alunos, mas quem paga a coordenação de Luciana, os professores, o aluguel etc. são cinco grandes empresas capitalistas, entre elas a PANVEL (rede de farmácias), o ZAFFARI (rede de supermercados), a Icatu Seguros. Em resposta à revista Veja, Luciana jura que os, segundo parece, quinhentos mil reais recebidos, a fundo perdido, não se devem ao "prestígio" do governador, seu pai, mas ao seu "próprio prestígio"!
 
Luciana não esclarece por que representante de partido que se define anticapitalista e pró-socialista possui suficiente prestígio junto ao grande capital para arrancar-lhe, segundo parece, quinhentos mil reais, ou seja, cinco mil reais por cada aluno! Mensalidade superior à de muito curso de pós-graduação estrito senso! Dinheiro que apoiará, no melhor dos casos, indiretamente, a campanha de Luciana, em 2012. No Sul, a Justiça Eleitoral proibiu os tradicionais albergues gratuitos que deputados sulinos mantinham para professores e alunos do interior, por constituir aliciamento disfarçado de voto.
 
A operação pode não ser ilegal – sobretudo se Luciana não concorrer a cargo em 2012. Tratar-se-ia apenas de mais uma das doações, apoios e facilitação de negócios, de grandes empresas para familiares de políticos poderosos que querem agradar. Como a que celebrizou o Lulinha Júnior. Isso porque não há dúvida de que, se Yeda ou Fogaça tivesse vencido, Luciana não obteria as graças da Secretaria da Educação para o aluguel das salas e o financiamento das grandes empresas, com destaque para a Icatu Seguros, que opera através do Banrisul, banco público estadual.
 
Privatizando a Educação
 
Mesmo legal, a operação é certamente imoral, do ponto de vista dos princípios defendidos pelo mundo do trabalho, pelo PSOL e, até há algum tempo, pela ex-deputada e pelo MES. Financiando políticos, o capital compra-lhes a simpatia, a condescendência, e os favores, já que "é dando que se recebe". Por que esse processo não funcionaria também no caso de Luciana Genro?
 
A ex-deputada rompe, igualmente, com o princípio da luta pela escola livre, gratuita e pública, impulsionando a suplência das carências públicas com a benevolência do capital, sempre interesseira. Fere gravemente a proposta do não envolvimento do Estado, através de seus funcionários e bens, em iniciativas privadas. Ou seja, contribui para a privatização do Estado.
 
Sobretudo, Luciana Genro dá enorme tiro no seu próprio pé. Nenhum juiz eleitoral vai acreditar que não é favorecida, mesmo materialmente, pela posição de seu pai como governador, com ou sem o conhecimento do mesmo. Tarso Genro se afastou há muito das posições classistas e socialistas, mas jamais rompeu com o respeito republicano estrito aos bens públicos. Salvo engano, até agora ele não se pronunciou sobre a operação empresarial de sua filha, à sombra do Estado.
 
Mário Maestri é historiador.

Jaime Sautchuk: Luta Armada na TV


Não sei no que vai dar lá no final, mas o simples fato de o tema servir de ambientação para uma novela na televisão já é importante para a história viva do Brasil. Esta semana, o SBT lançou a novela Amor e Revolução, numa ousada e louvável empreitada de resgate da memória nacional.


Por Jaime Sautchuk, especial para o Vermelho

A importância desse feito é perceptível nos bastidores da própria novela. Muitos dos atores não tinham nem nascido quando se passaram os fatos ali referenciados. Tiveram de ir aos livros para estudar e neles captar informações que serviram para a construção de seus personagens.

Um desses jovens atores, numa cena da novela, fornece alguma dica do tratamento que o enredo vai dar ao tema. “Vou tirar a limpo essa história do Comando de Caça aos Comunistas; minha mãe foi assassinada e eu preciso tirar isso limpo”, afirma ele.

Esta é uma das cenas que fazem parte do trailer de 10min46s exibido na página do SBT na internet desde a semana anterior ao lançamento da novela, na terça-feira, dia 5 de abril. Pela amostra, a novela pode vir a ser um marco na história da televisão brasileira, tal a naturalidade com que trata de um tema que é tabu nesse ramo de produção televisiva.

Há fortes cenas de tortura, de todas as modalidades, do pau-de-arara ao afogamento, passando pelo abuso sexual. E invasões de aparelhos (locais secretos de reuniões) de organizações da esquerda, com assassinatos a sangue frio, espancamentos e maus-tratos de toda ordem.

O autor

Boa parte do pessoal de criação e do elenco de atores é de gente que já passou pela Rede Globo. O autor da novela, que cuida do roteiro, diálogos, do conteúdo, enfim, é Tiago Santiago. Não é, pois, pouca brincadeira.

Sociólogo, até com pós-graduação, é um sujeito que utilizou a formação acadêmica para seu veio de homem das letras. Sempre se dedicou às artes, como grande conhecedor da realidade da gente comum.

Sua tese de mestrado, por exemplo, é sobre a colonização portuguesa na África. Ele é, também, romancista, teatrólogo, o escambau. Mas começou como ator, atuando com gente do coturno de Paulo José e Dina Sfat.

Já na condição de criador de textos para teatro, trabalhou com a mestra Maria Clara Machado e fez um monte de novelas e programas na Globo, quase sempre voltados para o público juvenil. O programa Malhação e novelas como Vamp são alguns exemplos.

Com isso, quero dizer que, se depender do autor, podemos esperar uma novela voltada para um público mais jovem, mas que vai fazer muito adulto que diz não gostar do ramo ligar a TV.

A direção ficou sob a responsabilidade do veterano Reynaldo Boury, figura que já consta da própria história da TV brasileira. Conhece muito. De quebra, já fazia televisão quando os episódios que agora vai dirigir ocorreram, o que pode ajudar.

Entrando fundo na história

Pelo trailer do SBT, a ambientação é cinematográfica, para lembrar os primórdios da TV. Cenas bem trabalhadas de explosões com pessoas lançadas ao ar, perseguições por ruas e rodovias em fusquinhas, Simcas e DKWs, os carros de então, se misturam com ambientes fechados e falas sussurradas, como convinha na época.

Os cenários são muito bem cuidados, nos trajes, mobiliário e até iluminação. Combinam com diálogos também situados naquele tempo, com palavreado e expressões apropriados.

Não se sabe, por enquanto, o que fez Sílvio Santos, o todo-poderoso do SBT, investir nesse tema. O fato é que tem muito a ver com o crescimento da campanha nacional em favor do esclarecimento do que se passou durante o regime militar, iniciado, por coincidência ou não, em abril de 1964.

Saber do paradeiro dos corpos dos desaparecidos é o mínimo que se pode esperar. Já se pode sentir, por isso tudo, que a novela vai entrar fundo num período importante da história recente do Brasil.

* Jaime Sautchuk, jornalista e escritor, é colunista do Vermelho

Quando a gente se defende, negocia melhor



Brizola Neto no TIJOLACO

]Muito interessante a matéria de capa da Folha, hoje, dando conta de que os chineses querem fazer grandes investimentos em plantações de soja no Brasil. Embora a monocultura da soja tenha lá seus problemas, não há dúvida de que a estratégia usada agora pelo chineses é muito melhor do que a vinha ensaiando meses atrás.
A intenção era, como já fizeram em outros países, comprar terra e produzir diretamente. Agora, mudou: querem investir em estruturas de armazenamento, beneficiamento e exportação, mas através de acordos com produtores brasileiros.
A demanda por alimentos e insumos para rações animais cresce vertiginosamente na China, junto com a elevação do poder de compra de sua imensa população. De exportadores agrícolas, os chineses passam rapidamente à condição de importadores: mais de 70% da soja que consomem vem de fora, o milho que produzem já não é suficiente e a carne suína – da qual são o maior mercado mundial – vai seguindo o mesmo caminho, apesar de sua gigantesca produção própria de 50 milhões de toneladas. Mesmo importando apenas 1% do seu consumo, eles já são o quinto maior importador mundial.
Como sabem que essa dependência será inevitável, a China avanç, com suas empresas estatais e semi-estatais,  para criar plataformas de importação sólidas, menos sujeitas às flutuações dos preços das commodities e à ação dos intermediários.  Eles, claro, querem se defender.
O Brasil, ao contrário, durante muito tempo achou – e boa parte de seu empresariado segue achando – que bom negócio é abrir o país e vender tudo que for possível, inclusive a terra.
Entre 2002 e 2008, nada menos que 30% do investimento estrangeiro no Brasil foi destinado à compra de terras e à agroindústria, segundo publicou o jornal Valor Econômico.
Aprovamos, na legislatura passada, restrições à compra de terras, sobretudo na Amazônia. O projeto ainda carece de votação no Senado, mas já levou,como se vê, a uma mudança de postura dos chineses, que passaram a querer acordos em lugar de propriedade.
Quando não se pratica a submissão, o bom negócio é bom para ambos e os acordos podem ter fórmulas para garantir o agricultor brasileiro contra o monopólio de compra e proteger o país com a realização aqui do beneficiamento de parte da produção. E, também, para que o gigante asiático assuma compromissos de compras de outros produtos, de maior valor agregado, em relação aos quais impõem enormes restrições. O que não se pode fazer é deixar que só o “mercado” regule estes acordos, para que não se repita o desastre que ocorre, por exemplo, com a produção de laranja, cartelizada por quatro ou cinco empresas que beneficiam e exportam o suco.
A China está na dela, querendo fazer os melhores negócios para si própria. E o Brasil tem sido, para ela, um verdadeiro “negócio da China”, pela falta de proteção que temos em relação aos nossos interesses. Os chineses não são bestas, que o digam as empresas brasileiras que vão se intalar lá e que têm de moldar seus negócios às condições que eles impõem para que atendam aos interesses chineses.
Nós, aqui, passamos anos e anos glorificando e nos oferecendo para a entrada indiscriminada de capitais do exterior e ainda financiamos a aquisição de nosso patrimônio.
Agora, precisamos aprender anos defender. Não se trata, de forma alguma, de rechaçar investimentos estrangeiros no Brasil. Trata-se de deixarmos de ser os “otários”, que vendem produtos primários e ainda vão – como foi a Vale de Agnelli – gastar o dinheiro da exportação de nossas riquezas naturais encomendando os caros navios de aço feitos com o nosso ferro barato.

O direito ao centro da cidade





040411_cidadePassapalavra - [Marcelo Lopes de Souza] A repressão e as tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um exemplo cabal das violações de direitos humanos e sociais fundamentais.

Não pretendo, com o título deste artigo, (ser mais um a) banalizar e abusar da fórmula lefebvriana do "direito à cidade". Na verdade, diante de interpretações cada vez mais "aguadas" dessa expressão – convertida em um simpático slogan, à disposição de interesses tão diferentes quanto os de movimentos sociais emancipatórios, intelectuais de esquerda com e sem aspas, ONGs, instituições governamentais e organismos internacionais –, cabe, isso sim, clamar por um mínimo de clareza político-estratégica, ao mesmo tempo em que cumpre relembrar: para o marxista heterodoxo Henri Lefebvre, o "direito à cidade" não se reduzia a simples conquistas materiais específicas (mais e melhor infraestrutura técnica e social, moradias populares, etc.) no interior da sociedade capitalista. O "direito à cidade" corresponde ao direito de fruição plena e igualitária dos recursos acumulados e concentrados nas cidades, o que só seria possível em outra sociedade. [1]
Complementarmente, vale a pena lembrar as contribuições do neoanarquista Murray Bookchin a propósito do tema da "urbanização sem cidades": para ele, cada vez mais temos uma urbanização que, aparentemente de maneira paradoxal, se faz acompanhar pela dissolução das cidades em um sentido profundo, sociopolítico. [2] O que se tem, cada vez mais, são entidades espaciais enormes, mas crescentemente desprovidas de verdadeira vida pública. Há, em meio a uma espécie de antítese cada vez mais nítida entre urbanização e "cidadização" ("citification": neologismo que, em Bookchin, significa a formação de cidades autênticas, com uma vida pública vibrante), uma lição fundamental a ser extraída: sem a superação do capitalismo e de sua espacialidade, o que vulgarmente se vai acomodando por trás da fórmula do "direito à cidade" não passa e não passará jamais de migalhas ou magras conquistas, por mais importantes que possam ser para quem padece, nas favelas, loteamentos irregulares e outros espaços segregados, com a falta de saneamento básico, com riscos ambientais elevados, com doenças e com a ausência de padrões mínimos de conforto.
No entanto, a essencialmente geográfica questão da localização (na sua relação com a acessibilidade [3]) está por trás de atritos que se vêm avolumando nos últimos anos. Há um "direito" específico (não em sentido imediatamente jurídico, mas sim em sentido moral), de ordem "tática", que deveria ser compreendido nos marcos de uma luta mais ampla, "estratégica": o direito de a população pobre permanecer nas áreas centrais das nossas cidades. Esse "direito moral", os esquemas e programas de "regularização fundiária" vêm tentando, para o bem e para o mal, converter em um direito legal assegurado (segurança jurídica da posse). No caso das favelas, avançou-se bastante no terreno legal, desde os anos 80; em se tratando de ocupações de sem-teto, e em especial de ocupações de prédios, porém, quase tudo ainda resta por fazer – inclusive no que se refere ao desafio de, ao "regularizar", não (re)inscrever, pura e simplesmente, um determinado espaço plenamente no mundo da mercadoria, adicionalmente favorecendo a destruição de formas alternativas de sociabilidade (que florescem em várias ocupações) e a cooptação dos moradores. [4]
As favelas têm sido, há mais de um século, precursoras de uma luta pelo direito de residir nas áreas centrais. Se tomarmos o caso emblemático do Rio de Janeiro, verificaremos que essa luta já se inicia com a virada do século XIX para o século XX, assumindo contornos particularmente dramáticos com a erradicação, na esteira da reforma urbanística do prefeito Pereira Passos (1902-1906), de muitos cortiços e casas de cômodos: precisamente essa erradicação em massa, verdadeira "limpeza étnica" que mostra bem o espírito antipopular do que foi a República Velha, alimentou a suburbanização (a rigor, periferização) e, também, a favelização dos pobres.
Contudo, as favelas, espaços de resistência tão importantes até poucas décadas atrás – os quais, a partir da mobilização da Favela de Brás de Pina (em 1965), no Rio de Janeiro, desenvolveram uma tenaz luta contra as remoções promovidas durante o Regime Militar, que foi encampada pela antiga Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) –, foram, aos poucos, tombando vítimas da cooptação, da despolitização e de seus múltiplos agentes: políticos clientelistas, traficantes de drogas, igrejas neopentecostais... A atuação de uma pletora de ONGs (animadas por indivíduos de classe média), a partir sobretudo dos anos 90, longe de reverter o quadro, talvez até o tenha, em parte, agravado, ao se tentar impulsionar uma "inclusão social" às custas da verdadeira mobilização popular e da conscientização crítica.
O fato é que, nas áreas centrais, as favelas foram ocupar terrenos que poderiam ser qualificados de "terras marginais", historicamente desprezadas pelos mais aquinhoados (encostas de morros, beira de rios e canais). [5] Hoje em dia, o movimento dos sem-teto, que tenta resgatar a bandeira da reforma urbana do "tecnocratismo de esquerda" que a arrebatou na década de 90, [6] ocupa, muitas vezes, terrenos periféricos (como é o caso em São Paulo, em Salvador, em Belo Horizonte e mesmo no Rio de Janeiro), mas também territorializa, outras tantas vezes, prédios "abandonados" e ociosos (a exemplo de São Paulo, Porto Alegre e, principalmente, do Rio de Janeiro).
Já quase não há terrenos vazios em áreas centrais, passíveis de ocupação. As favelas localizadas nos arredores do CBD (Central Business District), isto é, da área econômica central (nos casos em que ainda há uma: essa geometria veio se tornando cada vez mais relativa e complexa com o passar das décadas), são, via de regra, muito antigas e consolidadas. São sobreviventes das ondas de remoções e despejos do passado, em particular daquelas dos anos 60 e 70. Mas, por força de vários fatores (falências fraudulentas, dinâmicas internas ao próprio aparelho de Estado...), há uma quantidade apreciável de domicílios vagos no Brasil, muitos assim deixados especulativos ou em decorrência de processos que, mesmo não sendo sempre intencionais, geram um "passivo social e espacial". O contraste desse imenso estoque de domicílios vagos com as estimativas referentes ao déficit habitacional brasileiro é esclarecedor acerca da motivação básica para o surgimento e expansão do movimento dos sem-teto no Brasil. [7] No que se refere, especificamente, à luta para permanecer nas áreas centrais, cabe ressaltar que, para os moradores das ocupações − que são, na sua esmagadora maioria, trabalhadores informais, muitos deles ambulantes −, morar nas proximidades do CBD significa residir perto dos locais em que comercializam seus produtos, sem sofrer excessivamente com custos de transporte. Algo fundamental, portanto − isso sem falar na infraestrutura técnica e social, há muito consolidada nas áreas centrais das cidades.
Por outro lado, o capital vê na "revitalização" de áreas centrais, justamente, um riquíssimo veio a ser explorado. Já nos anos 80 David Harvey, desdobrando um insight sobre a importância crescente da produção do espaço (e não somente no espaço) para acumulação capitalista que originalmente remete a Henri Lefebvre, havia discutido a relevância do "circuito secundário" da acumulação de capital. [8] Este circuito é aquele que se vincula não à produção de bens móveis, mas sim à produção de bens imóveis, isto é, do próprio ambiente construído. O capital imobiliário (fração do capital um tanto híbrida, que surge da confluência de outras frações) tem, nas últimas décadas, assumido um significado crescente, na interface com o capital financeiro – às vezes com consequências globalmente catastróficas, como se pode ver pelo papel da bolha das "hipotecas podres" na crise mundial que eclodiu em 2008. Pelo mundo afora, a contribuição da construção civil na formação da taxa de investimento foi-se tornando cada vez mais expressiva, nas últimas décadas. E em todo o mundo – das Docklands, em Londres, a Puerto Madero, em Buenos Aires –, "revitalizar" espaços obsolescentes (presumidamente "mortos", pelo que se vê com o ostensivo uso ideológico de um termo como "revitalização") tem sido um dos expedientes principais na criação de novas "frentes pioneiras urbanas" para o capital.
segal-8No Rio de Janeiro, a disputa entre as ocupações de sem-teto e os interesses ligados à "revitalização" da Zona Portuária e do Centro – a qual gravita ao redor do projeto do "Porto Maravilha", [9] em que, com o respaldo da política repressiva batizada pela Prefeitura de "Choque de Ordem", se tenta promover uma "gentrificação" [10] em larga escala – vai ficando mais e mais evidente e tensa. Diversos pesquisadores do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) têm desenvolvido estudos que mostram essas tensões. [11]
Em São Paulo tem-se um processo análogo, que gira em torno do projeto da "Nova Luz", de revitalização da "Cracolândia" e adjacências. [12] E, também analogamente, está-se diante, também em São Paulo, de um "regime urbano" [13] caracterizável como conservador e repressivo, identificado com o "empresarialismo urbano" e não com a reforma urbana (nem mesmo na sua versão "domesticada", "tecnocrática de esquerda", levada à caricatura pelo Ministério das Cidades do governo Lula).
Em meio a uma "democracia" representativa ritualmente celebrada por meio de eleições regulares, na qual os direitos políticos formais são básica e aparentemente respeitados, direitos humanos e sociais fundamentais são, entretanto, sistematicamente violados. Atualmente, a repressão e as tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um exemplo cabal dessas violações de direitos. Considerando a disparidade de meios econômicos, propagandísticos e de violência à disposição dos contendores, trata-se de uma luta tremendamente desigual. Mas, contra a força dos argumentos, nem sempre o "argumento" da força prospera indefinidamente. Vale lembrar do lema aprovado pela Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, no México, em 2007: "Nosotros no podemos con sus armas. Ustedes no pueden con nuestras ideas."
Agradecimento
Agradeço a Daniela Batista Lima pelo levantamento dos dados atualizados sobre déficit habitacional e domicílios vagos no Brasil que constam da nota 7.
Notas
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1] Focalizei essas questões em "Which right to which city? In defence of political-strategic clarity". Interface: a journal for and about social movements, 2(1), pp. 315-333. Disponibilizado na Internet (http://interface-articles.googlegroups.com/web/3Souza.pdf) em 27/05/2010.
[2] Ver, de Murray Bookchin, Urbanization without Cities. The Rise and the Decline of Citizenship. Montreal e Cheektowaga: Black Rose Books, 1992.
[3] O tema da acessibilidade foi interessantemente trabalhado por Kevin Lynch em seu admirável livro Good City Form (Cambridge [MA], The MIT Press, 1994 [1981]). (Há uma tradução para o português, intitulada A boa forma da cidade, publicada em 2007 pelas Edições 70, de Lisboa.)
[4] Esse é o sentido, portanto, da ressalva que fiz antes: "para o bem e para o mal". Sem dúvida que a segurança jurídica da posse é uma demanda tradicional e legítima das populações dos espaços segregados que, por sua situação ilegal ou irregular, sofre toda sorte de discriminações, intimidações e violências. A questão é que a regularização fundiária também se presta a uma facilitação da (re)inserção de espaços no circuito formal do mundo da mercadoria. E mais: em se tratando, sobretudo, de ocupações de sem-teto, que muitas vezes têm sido interessantes ambientes de experimentação de formas de organização e socialização alternativas (em certos casos chegando até mesmo à autogestão e formas bastante "horizontais" de organização política), um esquema de regularização fundiária pode, dependendo de sua natureza, desestruturar toda uma vida de relações e prejudicar certas iniciativas e atividades dos moradores. Valores e hábitos cultivados com dificuldade, como assembleias regulares, compartilhamento de responsabilidades, cooperação sistemática, rotatividade de tarefas, etc. podem vir a ser solapados, sendo substituídos completamente ou quase completamente pelo individualismo e pelo privatismo.
[5] A expressão "terras marginais" lembra a teoria da renda da terra, sistematizada por Ricardo e aprimorada por Marx. No entanto, há objeções bastante razoáveis à transposição da reflexão marxiana (ou ricardiana) para o espaço urbano, objeções que, em larga medida, compartilho (ver, por exemplo, a tese de doutorado de Csaba Deák, Rent Theory and the Price of Urban Land. Spatial Organization in a Capitalist Economy, de 1985 [http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/85r-thry/CD85rent.pdf]). Utilizo aqui aquela expressão, por conseguinte, em um sentido mais livre, sem que o leitor ou a leitora deva pressupor que estou querendo forçar uma analogia.
[6] Vide, sobre esse assunto, o meu livro A prisão e a ágora. Reflexões sobre a democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006).
[7] Segundo estimativas da Fundação João Pinheiro (Déficit habitacional no Brasil - Municípios selecionados e microrregiões geográficas, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2005, 2.ª ed.), o déficit habitacional brasileiro já montava, em 2000, a 7,2 milhões de domicílios. Contudo, segundo relatório de julho de 2010 do Ministério das Cidades, baseado em levantamentos da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no Brasil estimado para 2008 teria baixado para cerca de 5,6 milhões de domicílios, dos quais 83% estariam localizados nas áreas urbanas (http://www.cidades.gov.br/noticias/deficit-habitacional-brasileiro-e-de-5-6-milhoes/). (Para 2007, a Fundação João Pinheiro, em estudo com data de junho de 2009, havia estimado o déficit habitacional em aproximadamente 6,3 milhões de domicílios, dos quais 82,6% localizados nas áreas urbanas [http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/81-servicos-cei/70-deficit-habitacional-no-brasil].) Os números da Fundação João Pinheiro sobre o déficit habitacional brasileiro me parecem conservadores; mas, seja lá como for, a ordem de grandeza dos números referentes ao estoque de domicílios é a mesma, embora os valores sejam um pouco mais elevados. Segundo dados divulgados pelo Ministério das Cidades, os domicílios vagos em condições de serem ocupados e em construção, em todo o Brasil, correspondiam, em 2008, a 7,2 milhões de imóveis, dos quais 5,2 localizados em áreas urbanas (vide "link" supracitado); e conforme a Fundação João Pinheiro, em todo o Brasil seriam cerca de 7,3 milhões de imóveis não ocupados, dos quais aproximadamente 5,4 milhões localizados em áreas urbanas; desse total, 6,2 milhões estariam em condições de serem ocupados - o restante estaria em construção ou em ruínas, este último caso correspondendo a uma minoria de cerca de 300 mil unidades (vide "link" supracitado).
[8] Ver, de Harvey, "The urban process under capitalism: A framework for Analysis" (incluído em The Urbanization of Capital, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1985). De Lefebvre, vale a pena começar por A revolução urbana (a edição que consultei é espanhola: La revolución urbana, Madrid, Alianza Editorial, 1983 [1970], 4.ª ed.; há uma edição brasileira, publicada em Belo Horizonte pela Editora UFMG, em 1999) e prosseguir com A produção do espaço (La production de l'espace, Paris, Anthropos, 1981 [1974]).
[9] O "site" oficial do projeto é: http://www.portomaravilhario.com.br/
[10] "Gentrificação" é um horrível termo técnico, aportuguesamento canhestro do inglês "gentrification", ou nobilitação, enobrecimento. Na literatura especializada, trata-se do processo, menos ou mais violento, menos ou mais gradual, de substituição da população pobre por atividades econômicas de alto status (shopping centres, prédios de escritórios, etc.) e residências para as camadas mais privilegiadas.
[11] De maneira às vezes mais direta, às vezes mais indireta, é o caso da tese de doutorado de Tatiana Tramontani Ramos (em andamento) e das dissertações de mestrado de Eduardo Tomazine Teixeira (defendida em 2009), Matheus da Silveira Grandi (defendida em 2010), Rafael Gonçalves de Almeida (em andamento), Marianna Fernandes Moreira (em andamento) e Amanda Cavaliere Lima (em andamento).
[12] O "site" oficial do projeto é: http://www.novaluzsp.com.br/
[13] O conceito de "regime urbano" (urban regime) foi proposto por Clarence Stone ("Urban regimes and the capacity to govern: A political economy approach", Journal of Urban Affairs, 15[1], 1993, pp. 1-28) para caracterizar as combinações de formas institucionais e interesses econômicos (especialmente interesses e pressões de classe) que se expressam na qualidade de estilos de gestão específicos: uns mais abertos à pressão dos trabalhadores e permeáveis à participação popular (com ou sem aspas), outros mais repressivos e refratários a uma agenda "progressista", e por aí vai. Mesmo que a classificação de Stone não deva ser transposta irrefletidamente para uma realidade bem diferente da estadunidense, como a brasileira, a ideia do conceito é útil em si mesma.
Ilustração: Esculturas de George Segal.

2011, o ano internacional do afrodescendente

Jorge Terra *no Sul21

Como já é de conhecimento de muitos, a Organização das Nações Unidas declarou que o ano de 2011 será o ano internacional do afrodescendente. Esse ano será próprio para reflexões, para se dar visibilidade, por meio de protestos, a questões que há muito afligem parte significativa da população brasileira e para se exigir medidas governamentais voltadas aos negros brasileiros?
Eleger um desses caminhos como o principal seria não aproveitar plenamente as oportunidades e seguir por caminhos já percorridos.
É preciso refletir, exigir, protestar, demonstrando incoerências, desigualdades e injustiças, mas isso configura uma parte e não a totalidade da ação indispensável.
Há cidadãos que necessitam da perfectibilização de uma questão singela: o Estado moderno não é mais inibidor ou inviabilizador de violações de direitos; a ele incumbe a efetivação de direitos dos administrados. Todavia, a escassez de recursos públicos pode tornar antieconômica a apresentação de exigência para aquele que dispõe de um orçamento insuficiente para as necessidades diárias e para os investimentos estratégicos.
É de se entender que as entidades que compõem o movimento negro não podem ter as suas diferenças de visão como intransponíveis. Outrossim, é de se perceber que é o momento de composição com os segmentos nunca antes procurados de maneira sistemática, porque os problemas relacionados ao preconceito e ao racismo, que geram efeitos econômicos, sociais e políticos, não são atinentes a um grupo em especial, mas à sociedade como um todo.
É inarredável a adoção de visão ampla da Economia e da Política. O Brasil cresce flagrantemente em termos econômicos. Cada dia mais empresas brasileiras ganharão corpo no cenário mundial, sendo-lhes indispensável a imagem de empresa respeitadora da diversidade e do meio ambiente também em seu país de origem. O mesmo vale para empresas que aportaram ou aportarão no Brasil. Essa imagem se constituirá por um setor de comunicação competente, por um programa ou por uma ação inclusiva ou ambiental, que pode perpassar pela composição diversificada do corpo diretivo ou de funcionários da empresa ou pelo apoio a entes e a projetos vinculados aos temas supracitados.
Também no campo político, a imagem não se constituirá por intermédio do discurso, havendo decisões concretas a serem tomadas. Não são bastantes as criações de setores do Estado voltados às pessoas em situação de vulnerabilidade ou historicamente discriminadas, tais como os idosos, as mulheres, os deficientes, os negros e os homossexuais. Esses setores deverão apresentar planejamento, critérios de constituição de indicadores, avaliação constante, ações corretivas e resultados positivos. Para tanto, a seleção das pessoas que neles labutarão deverá se pautar pelo conhecimento técnico, pela capacidade de argumentação, pelo devotamento a causas nobres e pela possibilidade de trabalhar de forma transversal. Eleito o caminho de criar entidades com recursos orçamentários baixíssimos, sem força interna para trabalhar transversalmente com os orçamentos de outros setores e sem habilidade para celebrar parcerias, trilhar-se-á o caminho do insucesso.
Impõe referir, ainda no campo político, que a edição de leis e a concretude das normas jurídicas que delas se extraiam são fundamentais para se demonstrar o norte a ser seguido pelos administrados.
Em suma, exsurge o momento ideal para se estabelecer parcerias das entidades que integram o movimento negro com estabelecimentos de ensino, entidades empresariais, órgãos de segurança, veículos de comunicação e outros movimentos sociais.
A responsabilidade social corporativa é campo fértil para o desenvolvimento de projetos dedicados ao atingimento de resultados positivos concretos. Para o empresariado é salutar a inserção social com maiores chances de êxito e de melhor aproveitamento de recursos. Para o movimento social é benéfico aprender forma objetiva de planejar, de realizar e de avaliar ações, bem como o alcance de estágio superior com os resultados mencionados acima e o apoio para a consecução de seus fins institucionais.
Os estabelecimentos de ensino buscam novos campos de atuação com o fito de terem sustentabilidade, bem como se preparar para o cumprimento de leis que exigem conhecimentos que ainda não possuem. Os movimentos sociais, por seu turno, necessitam capacitar seus membros para multiplicarem os conhecimentos amealhados ao longo do tempo, bem como para se preparar para momento histórico exigente, isso porque há crescente disputa por limitados recursos públicos e privados.
Os órgãos de segurança perceberam a incapacidade de fazer frente a todas as demandas e como acabam por se tornar o desaguadouro de problemas não resolvidos nas searas familiar, educacional, política e econômica. Esses órgãos precisam da colaboração, dos conhecimentos sobre as comunidades e da credibilidade dos movimentos sociais. Os movimentos, por outra mão, imprescindem dos recursos materiais e humanos que podem ser disponibilizados, da possibilidade de harmonização de relações e da ampliação de sua rede de relações para a solução de problemas recorrentes.
Os veículos de comunicação, vivenciando ambiente altamente competitivo, precisam ser ágeis, ter confiável e extensa rede de informações, ampliar quantitativa e qualitativamente o seu público-alvo e a sua carteira de clientes. Nesse quadro, eles precisam assentar que atuam despidos de pré-concepções a respeito de parte de seu público-alvo, pautando-se pela busca e pela prestação de informações calcadas em dados concretos. Os movimentos sociais ressentem-se de meios de divulgação de suas ideias e de suas iniciativas apesar do uso da internet. Ademais, a inclusão de certos temas na pauta de discussões da Sociedade se dá pelos meios de comunicação. A troca, portanto, também pode ser riquíssima nesse campo.
Muitas das vezes, os movimentos sociais desconhecem o que uns e outros estão fazendo e não identificam oportunidades de atuações conjuntas. Com isso, atuam de modo ineficaz. Poderiam dividir as vantagens do atingimento conjunto de objetivos previamente traçados com a utilização de uma gama maior de recursos.
Bom frisar que a advocacy é inarredável, isto é, devem haver articulações, protestos, pressões e ingerências para a criação e para a ampliação das políticas públicas concernentes à diversidade racial. O que se pretende é apontar alternativas tidas como mais eficientes. Em outros termos, objetiva-se a melhor utilização dos meios disponíveis para o alcance dos fins do movimento negro.
Os trilhos indicados nesse texto exigem um movimento social propositivo, pronto a assumir uma posição de protagonismo e de influência na Economia, na Política e na Sociedade. Perceba-se, pois, que se sugere caminhos que podem ser mais produtivos e que, certamente, são mais exigentes. Neles, agregada à constatação de um problema, estará sempre uma sugestão de solução. Dessa arte, ao se perceber a inexpressividade da ocupação de vagas concernentes a um segmento por negros brasileiros, ter-se-á de examinar as causas, propor e organizar cursos, indicar e captar recursos, bem como sugerir um cronograma factível de contratações.
Elege-se como a melhor opção, sobretudo para o ano de 2011, a perseguição da eficiência no movimento negro. Dessa feita, privilegiar-se-á o planejamento, o estabelecimento de metas, a busca de recursos, a constituição de indicadores de avaliação, a efetivação de ações corretivas e consecução de resultados positivos concretos.
Passa-se a ter como instrumento diuturno o projeto estruturado, o que permite a captação de recursos junto às entidades privadas financiadoras e a identificação de pontos de consenso entre essas e as que conformam o movimento negro, encontrando-se uma linguagem comum.
As entidades vinculadas ao movimento negro poderão participar dos processos licitatórios dos entes estatais pelo fato de saberem trabalhar com uma linguagem de viés empresarial. De outra banda, a preocupação com a infraestrutura, com a estruturação e com o planejamento é a premissa básica para se atingir a indispensável sustentabilidade.
Seja para se voltar para o financiador privado, seja para se dirigir para o financiador público, indispensável a capacitação para a criação, para o acompanhamento e para a avaliação de projetos.
Os movimentos sociais, em resumo, terão de constituir projetos, saber discutir sobre temas mais amplos do que a mera militância e alinhar esforços de cada um e de todos para ter rede de contatos mais diversificada. Do contrário, não haverá a inovação e a adaptação ao presente e ao futuro.

* Procurador do estado do Rio Grande do Sul
Originalmente publicado no jornal Oi

A criptonita cultural da direita americana.

Um olhar no clima cultural dos anos 1980 pode nos ajudar a explicar o comportamento americano hoje.

Por Cliff Schecter na Revista Fórum

Antes dos mísseis Tomahawk começarem a chover sob as defesas aéreas de Muammar Gaddafi na semana passada, a única conversa que o presidente Obama precisou ter foi com seus conselheiros. Eles, e eles somente, decidiriam se um país fundado como uma república democrática iria se envolver naquilo que George Washington provavelmente teria descrito como uma “confusão estrangeira” – usando decretos do século XXI contra um sociopata com um histórico de violência e um fetiche por chapéus pior do que o de Sammy Davis Jr.

Obviamente, em 200 anos, os Estados Unidos se transformaram de um rebelde-com-causa em uma potência mundial, e um envolvimento adicional nas questões mundiais tornou-se uma parte do custo de fazer negócios. Há também um bom argumento a ser apontado, que é o fato de que, depois do erro terrível da invasão do Iraque, os EUA podem fazer algo de bom ao colocar um fim ao homicida Gaddafi na Líbia, como parte de uma coalizão internacional feita de países árabes e africanos, abençoada pelas Nações Unidas.

Mas isso não muda o fato de que o apoio congressional para esta operação foi tão importante quanto um apêndice ou os votos de casamento do Newt Gingrich. Obama e os seus simplesmente sabiam que podiam ignorar os representantes do povo e seguramente contar com uma cultura militarizada e condicionada a apoiar ataques às nações árabes. Particularmente uma que os EUA já haviam derrubado somente uma geração atrás.

É esse fato que faz com que o novo livro do autor, colunista e apresentador de rádio David Sirota, Back To Our Future (De Volta Ao Nosso Futuro), seja não somente uma leitura fascinante sobre a cultura dos anos 1980, mas um importante trabalho que ajuda a explicar porque os Estados Unidos faz as coisas que faz hoje. Do envolvimento numa guerra civil na Líbia a permitir que um louco sem referências prévias passeasse em seu bazar local de armas e comprasse armas de fogo de alto poder para a tentativa de assassinato de uma congressista. Sendo o segundo mais fácil que, digamos, encontrar plutônio para seu DeLorean em 1955.

"Fora-da-Lei com moral", como o explica Sirota, os anos 1980 foram a era do marketing-cruzado, quando conceitos que tinham um lugar na história americana de repente se tornaram lugares-comuns. A linguagem anti-governamental do presidente Ronald Reagan adornou filmes como Caça-Fantasmas e E.T.. Estas “mensagens políticas em lugares não-políticos doutrinaram os jovens, quando seus filtros para a propaganda política estavam desligados.” Como resultado, estas narrativas emolduradas se tornaram parte da sabedoria convencional, continuando como tal até hoje.

Num grande sentido, E.T. elevou as suspeitas sobre o governo, e terroristas líbios em De Volta Para O Futuro e um malvado lutador profissional chamado O Sheik de Ferro ajudaram a preparam o povo americano para o papel que desempenhamos no mundo árabe durante a última década. Enquanto isso, o ‘fora-da-lei com moral’, ou trapaceiro que tinha que trabalhar contra o sistema para fazer as coisas acontecerem, era uma mensagem central que atingia as massas.

A história de “o governo é o problema, não a solução” não estava somente contida na filosofia de Reagan, na ética de Wall Street, em muitos filmes, músicas e séries de televisão, mas talvez o que mais tenha promovido isso foi o uso de atletas em uma das mais poderosas máquinas de marketing já vistas – a Nike. Como nos diz Sirota sobre o efeito da Nike, “eles elevaram esta história ao nível da saturação social”. Isso pode ao menos parcialmente explicar o individualismo trapaceiro que pode ser visto no caso de amor que certos americanos têm com armas, e, mais especialmente, a velha lenda de que só eles mesmos podem se proteger, frequentemente do próprio governo ao qual eles recorreram para este serviço.

Claro, esta radical mudança cultural não aconteceu por si só. Um conjunto de reflexões reacionárias e organizações midiáticas, nascidas nos anos 1970 para liderar esta espécie de revolução cultural, sinergicamente agarraram este zeitgeist social e deitaram e rolaram com ele, declarando que os anos 1960 e os 1970 foram um ilegítimo, ingênuo e até mesmo perigoso experimento social. Como Sirota nos lembra, nos anos 1980 um ministro discursando na Heritage Foundation, uma destas novas (1973) e prodigamente fundadas operações de mídia e políticas de direita, intrincadamente ligada à administração de Reagan, acreditava que ele e sua estirpe estavam “ali para girar o relógio de volta para 1954 neste país”. ‘Pré-púberes’ no comando Danny Goldberg, ex-diretor da Air America, também reconheceu esta evolução cultural, e o papel desempenhado por bem-fundados órgãos conservadores em ajudar a espalhar o não-amor.

Da forma como ele vê, apelar para a psique e para a visão do povo americano, ou mesmo para os seus corações, se quiser colocar assim, está em escassez na esquerda, pois “Democratas não usam imaginação e cultura para abrir as mentes para seus programas”. Como Goldberg escreve em um artigo do Nation, “você pode contar quantas pessoas clicam numa página da web, durante quanto tempo ela foi vista e a quantas pessoas ela foi encaminhada, mas determinar quanto impacto ela tem na mente dos leitores requer suposições fundamentadas e a falível análise intuitiva humana”.

É melhor a esquerda começar a incorporar esta função de cultura, imaginação e emoção em nossas políticas em breve. Porque, se de fato estamos operando sob os parâmetros estabelecidos não só pela política, mas pelas artes e literatura dos anos 1980, reforçados por milhões de dólares investidos em projetos conservadores de longo prazo para convencer o povo americano que esta é a forma como sempre foi, nós temos uma - ou três - década difícil pela frente. Pois, como diz Sirota, “nosso mundo é crescentemente regido pelos ‘pré-púberes’, estudantes universitários e jovens alpinistas originalmente doutrinados nos anos 1980.”

Portanto, se estamos procurando uma alternativa para as por demais presentes tensões do aventureirismo estrangeiro, de Wall Street e das milícias domésticas – entre outros desafios – precisaremos do nosso próprio renascimento cultural para retornar aos valores que um dia animaram esta nação. Porque, venha ele de Krypton, Kansas City ou Cazaquistão, não estou preparado para me ajoelhar perante Zod tão brevemente.

Cliff Schecter é o Presidente do Libertas, LLC, uma progressista firma de relações públicas, o autor do bestseller The Real McCain, e um colaborador regular do The Huffington Post.

1968: Martin Luther King é assassinado

Correio do Brasil


Em dois atentados anteriores, o reverendo Martin Luther King conseguira escapar por pouco da morte. O negro que tanto se engajou pela igualdade de direitos nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960 alcançou apenas os 39 anos de idade.
No dia 4 de abril de 1968, foi assassinado com um tiro na sacada de um hotel em Memphis. O autor do disparo teria motivos supostamente racistas. Em dezembro de 1999, no entanto, um processo civil no Estado do Tennessee chegou à conclusão de que sua morte foi planejada por membros da máfia e do governo norte-americano.
Que homem era este que conseguiu dividir uma nação e ser amado e odiado ao mesmo tempo? Para melhor entendê-lo, precisamos nos situar no contexto dos Estados Unidos em plena década de 50: uma superpotência em plena Guerra Fria, uma nação rica, um país racista.
O país que se considerava modelo de democracia e liberdade, mas seus habitantes eram classificados de acordo com a raça. Os negros eram discriminados em todos os setores: na política, na economia e no aspecto social.

Boicote de ônibus

Os negros norte-americanos não podiam votar, eram chamados pejorativamente de “nigger” e “boy”, seu trabalho não era devidamente remunerado, e as agressões dos brancos eram rotina. Até que, em dezembro de 1955, em Montgomery, a costureira negra de 52 anos Rosa Parks resolveu não ceder seu lugar num ônibus para um passageiro branco.
Parks foi presa e, em decorrência, Martin Luther King, pastor da cidade, conclamou um boicote dos negros aos ônibus. Em um ano, tornou-se tão conhecido no país que assumiu a liderança do movimento negro norte-americano.
O boicote aos ônibus foi apenas o começo. Seguiram-se as marchas de protesto de King e milhares de defensores dos direitos civis em todo o país, acompanhadas de violações conscientes da legislação racista. Usavam, por exemplo, as salas de espera e os restaurantes reservados aos brancos. Nem a violenta repressão policial enfraqueceu o movimento.
“Temos que levar nossa luta adiante, com dignidade e disciplina. Não podemos permitir que nosso protesto degenere em violência física”, advertia o pastor batista, não se deixando provocar pela ordem pública.

EUA divididos para brancos e negros

Ele manteve esta filosofia, mesmo quando os 1.100 participantes do movimento negro radical exigiram a divisão dos Estados Unidos em dois, para brancos e negros, na Black Power Conference, em 1967.
Vinte e quatro horas antes de sua morte, Martin Luther pronunciou o célebre discurso em que anunciava ter avistado a terra prometida. “Talvez eu não consiga chegar com vocês até lá, mas quero que saibam que nosso povo vai atingi-la”, declarou ele, como se previsse a proximidade da morte.
Seu assassinato provocou consternação internacional. As inquietações raciais se agravaram em Chicago e Washington. Depois de anunciar o fim dos bombardeios no Vietnã e sua desistência de se recandidatar à Casa Branca, o presidente Lyndon Johnson chegou a adiar uma viagem ao exterior.
Em memória a King, no ano de 1983, os Estados Unidos tornaram feriado nacional a terceira segunda-feira de janeiro (ele havia nascido em 15 de janeiro de 1929).