Soraya Smaili
Analisar o papel da mulher nas recentes revoltas árabes, com base no
resgate histórico do processo de “ocidentalização” dessa cultura, que
envolve desde a partilha do mundo árabe em 22 diferentes países até a
imposição de ditadores aliados para garantir a exploração do
petróleo. Esta é a proposta da diretora cultural e científica do
Instituto da Cultura Árabe - ICArabe, Soraya Smaili, em entrevista
concedida ao Informandes Online. De acordo com ela, é preciso se despir
de preconceitos fomentados pelo ocidente para compreender bem como se dá
a opressão à mulher no mundo árabe. “Como em outras situações
históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente afetados
são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais, pois o
regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou
sociais”, argumenta.
A diretora acrescenta que é preciso considerar sempre que o mundo
árabe é bastante diversificado, com realidades mais ou menos favoráveis
à mulher nos diferentes países. Entretanto, mesmo nos países em que a
mulher parece sofrer maior opressão, a condição para sua liberdade está
bastante relacionada à classe social a que pertence. Mesmo na Arábia
Saudita, considerada a pior ditadura do mundo árabe, as mulheres da
realeza têm direito de viajar e estudar, enquanto as demais sofrem todo
tipo de restrição de liberdade. “A opressão à mulher tem origens mais
profundas e de classe”, resume ela.
Soraya Smaili, graduada pela Universidade de São Paulo, obteve
Mestrado, Doutorado e Livre-Docência na Escola Paulista de Medicina,
Universidade Federal de São Paulo e fez estudos de pós-doutorado no
National Institutes of Health. É vice-presidente da Adunifesp-SSind,
diretora regional do ANDES-SN e diretora cultural e científica do
Instituto da Cultura Árabe - ICArabe (www.icarabe.org).
Confira a entrevista na íntegra:
Qual o papel das mulheres nas recentes mobilizações por democracia que, desde o final de 2010, têm sacudido o mundo árabe?
Embora a mídia em geral não tenha destacado ou mesmo analisado, o
papel da mulher árabe nos recentes levantes ocorridos, a sua presença e
participação têm sido e são fundamentais. A visão que o Ocidente tem da
mulher árabe é de uma pessoa submissa ao extremo, sem educação formal e
sem profissão. Muitas vezes acredita-se que os árabes e,
consequentemente, as mulheres árabes são atrasadas e ignorantes. Isso
faz parte de um imaginário criado cuja base ideológica está no
pensamento Orientalista. O Orientalismo, iniciado como corrente de
pensamento no século XIX, se desenvolveu plenamente no século XX e
tratou de apresentar os árabes como seres exóticos, diferentes,
inflamados, temperamentais, ignorantes e atrasados.
Ou seja, seres que eram diferentes dos homens e mulheres do Ocidente,
ditos civilizados. Este Ocidente tratou de mistificar e discriminar
esse povo apresentando-o como um “não-povo”, o que deu sustentação à
colonização e partilha do Mundo Árabe em 22 países com fronteiras
artificiais e à exploração brutal de petróleo tão necessário ao
Ocidente. Uma análise sobre esse contexto do século XX foi feita de
maneira clara e aprofundada por Edward Said em seu livro Orientalismo.
A mulher, neste cenário, sofreu as consequências das políticas
implantadas para o Mundo Árabe, e como parte do pensamento Orientalista,
também foi apresentada como um ser inferior. Somada às questões
femininas primordiais, o Orientalismo reforçou a opressão e criou
profundos esteriótipos para a mulher árabe, tendo sido escandalosamente
ridicularizada. No entanto, do ponto de vista histórico, a mulher árabe
desempenhou papel fundamental na base da organização social e impediu
que uma maior degeneração social ocorresse durante a implantação dos
colonizadores.
As revoltas no Mundo Árabe de hoje devem ser vistas a partir de uma
análise da ocupação e colonização (Ocidentação) e da partilha dos árabes
como povo em vários países, da imposição de didatores aliados para o
controle da região e da exploração brutal de Petróleo. Aos longo de
algumas décadas, os ditadores do Mundo Árabe trataram de controlar com
mão de ferro, opressão e pobreza, a organização social que existia,
impedindo e massacrando a possibilidade de desenvolvimento. Portanto, o
levante árabe que o mundo está assistindo neste momento é um movimento
por direitos universais, pelo fim da opressão, pelo direito à
manifestação, pelo direito ao trabalho e a dignidade. É um movimento
popular e, neste contexto, o movimento de mulheres está presente,
participa e se insere plenamente.
Com algumas diferenças regionais, as mulheres e os movimentos
feministas locais têm tido participação fundamental nos levantes
populares. No Egito e Tunísia, organizaram manifestações específicas,
chamaram as mulheres às ruas, clamaram e se organizaram na luta pela
democracia. Na Tunísia existem organizações importantes de mulheres que
marcharam contra o ditador Bin Ali. Logo após a sua queda, elas se
organizaram em comitês e reivindicam que o estabelecimento do estado
democrático passa também pela conquista dos direitos das mulheres.
Depois disso, estabeleceu-se lá um Comite especial para reivindicar os
direitos das Mulheres Tunisianas na transição democrática.
No Egito, as mulheres marcharam, convocaram e organizaram grandes
manifestações e entraram diretamente nos confrontos. As TVs do mundo
exibiram imagens marcantes de mulheres de todos os tipos clamando por
democracia e pelo fim da ditadura Mubarak, para espanto geral do
Ocidente. Criaram o movimento chamado “As Mulheres da Praça Tahrir”, que
reuniu centenas de ativistas, dentre estas, algumas feministas
históricas, como Nawal Al Saadawi. Isso mostrou uma faceta do Mundo
Árabe que estava obscurecida pela visão orientalista, ou seja,
apresentou os movimentos seculares e boa parte deles compostos de
mulheres intelectualizadas. E também vimos as mais jovens atuando na
organização por meio da internet e utilizando ferramentas de comunicação
chamadas modernas. Mais uma vez, desfazendo a idéia de que as mulheres
não teriam acesso ou não saberiam utilizar tais recursos.
Porém, existe uma grande diversidade no Mundo Árabe e o papel das
mulheres em alguns outros locais, como no Iemen, talvez não esteja tão
evidente. Mas é preciso lembrar que em alguns locais, os regimes
ditatoriais foram ou são muito mais opressores para a população em
geral, como ocorre na Líbia, no Iemen e em outros locais. De maneira
geral, as mulheres têm tido grande destaque e são protagonistas dos
movimentos, manifestações e atuam fortemente pela democracia, mesmo que
isso nem sempre seja noticiado ou que esteja aparente para a mídia
internacional. Portanto, é errada a idéia de que as mulheres árabes não
participam, são alienadas ou reprimidas. Elas têm a consciência dos seus
direitos e lutam por eles, como as mulheres do mundo.
A questão de gênero está pautada nesta revolução em curso? De que forma?
Sim, certamente. Como explicado anteriormente, os levantes populares
devem ser vistos pelo prisma de um movimento pós-colonial e contra a
implantação artificial de opressores e ditadores que foram impostos para
controlar as manifestações da população árabe em geral. Esse povo foi
colonizado por algumas décadas e depois controlado com mão de ferro
pelas décadas seguintes. É um povo sedento por liberdade e pelo
exercício dos seus direitos e dignidade. Portanto, todas as questões que
dizem respeito às liberdades e aos direitos universais estão pautadas. A
questão da mulher, dos seus direitos inalienáveis, faz parte deste
contexto.
A opressão da mulher é maior no mundo árabe? Por quê?
Essa é uma pergunta bastante interessante, mas não dá para responder
com um “sim” ou um “não”. Na verdade, podemos dizer que sim e que não. O
Mundo Árabe é bastante diverso, são 22 países que vão da Península
Arábica e se estendem a todo o Norte da África. Há questões culturais
regionais importantes e que precisam ser consideradas. Há locais em que a
mulher não tem direito ao voto, não tem direito à manifestação e várias
outras coisas. É o que acontece na Arábia Saudita. Mas, novamente é
preciso considerar o contexto social e político.
Nesse país, os homens também têm liberdades muito restritas, se
comparados aos outros homens do mundo. Não é possível a livre
manifestação de qualquer tipo, pois se trata de uma ditadura absoluta.
Ou seja, homens e mulheres são reprimidos, porém, como em outras
situações históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente
afetados são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais,
pois o regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou
sociais. Ainda na Árabia Saudita, a liberdade também depende da classe
social, pois mulheres e homens da família real têm acesso à educação e
recursos ilimitados. Há mulheres da realeza que pilotam aviões, que
estudam, que viajam. Portanto, a opressão à mulher tem origens mais
profundas e de classe.
Por outro lado, há outros locais em que as mulheres têm acesso à
educação, trabalho e liberdade de expressão, como no Líbano e na
Palestina, e as questões femininas que vivem são semelhantes às que as
mulheres ocidentais enfrentam. Porém, no mundo árabe, há outros valores
que o Ocidente não leva em consideração, mas que são valores humanos,
como a dignidade e o respeito à mulher. Por exemplo, existe uma
impressão generalizada de que todas as mulheres árabes são muçulmanas e
usam o lenço (hijab). Não é verdade que todos os árabes sejam muçulmanos
e também não é verdade que todas as mulheres sejam obrigadas a usar
lenço, nem mesmo as muçulmanas. Existe a idéia de que as muçulmanas são
reprimidas e obrigadas a usar o hijab, quando na verdade, em boa parte
dos casos trata-se de uma opção pessoal.
No Líbano, Síria e Egito, por exemplo, as mulheres não são obrigadas
a cobrir os cabelos e muitas muçulmanas cobrem por opção, porque faz
parte dos costumes e da cultura. Em vários locais, como no Líbano e
Tunísia, uma boa parte das muçulmanas não quer e não são obrigadas a se
cobrir. Por terem a opção de usar o lenço, as mulheres árabes se sentem
respeitadas, pois é um direito. Ao contrário do que ocorre em alguns
países do Ocidente civilizado, onde as muçulmanas foram impedidas do seu
direito de utilizar o hijab, o que é extremamente autoritário.
Qual o papel da religião no processo de opressão da mulher?
Inicialmente, é preciso salientar novamente que nem todas as mulheres
árabes são muçulmanas. No Egito, por exemplo, uma parte da população é
cristã copta. No Líbano, há católicos de várias igrejas e também judeus.
Além disso, é preciso fazer uma distinção entre os países onde o Estado
é teocrático, como na Arábia Saudita e Iêmen. Neste caso, a religião é
usada para a opressão, embora a religião muçulmana, em seus preceitos
fundamentais, não prega a opressão ou retirada de direitos. Ao
contrário, no momento da fundação do Islã, as mulheres eram fortemente
oprimidas em uma sociedade tribal. O Islã, como filosofia, trouxe a
regulamentação de direitos femininos, como o acesso à educação e
participação na expansão da civilização islâmica do século VII ao XIII.
Portanto, é preciso separar o Islã da religião islâmica.
A religião, como outras doutrinas, sofreu adaptações e
regionalizações e foi implementada de acordo com os costumes locais,
sendo utilizada como instrumento de controle ideológico. Além disso, em
muitos lugares onde chegou, se deparou com costumes tribais (não só na
Península Arábica, mas também no Norte da África e Oriente). Por isso,
hoje, em vários países de maioria muçulmana, são perpetrados costumes
tribais que não têm a menor fundamentação religiosa, como por exemplo, a
mutilação de órgãos genitais que ocorre em regiões da África (muçulmana
ou não). O Islã proibiu fortemente essa prática, mas ela tem sido
divulgada como uma prática muçulmana, mas na verdade é uma prática
tribal, exercida por comunidades não muçulmanas também. A maior parte
das práticas opressivas à mulher e que ocorrem em países árabes se deve
mais aos costumes regionais ou às distorções criadas por
fundamentalistas religiosos, que existem em todas as religiões, do que
propriamente por conceitos do Islã.
Os países árabes também têm a tradição de comemorar o Dia Internacional da Mulher?
Sim. Há movimentos muito fortes e sérios no mundo árabe e as mulheres
estão organizadas e concatenadas com outros movimentos feministas do
mundo inteiro. Há inúmeras organizações em diversos países e há uma
corrente feminista que irmana as mulheres árabes entre elas (já que
estão distribuídas em diferentes regiões) e com as mulheres de todo
mundo. Neste sentido, as mulheres árabes estão muito mais avançadas e há
muito participam da internacionalização dos movimentos sociais
universais, que incluem o movimento feminista.
Fonte: Andes-SN