Iniciado no México, o surto da gripe suína (ou A H1N1) acabou de fato chegando ao Brasil, registrando 275 mortes até o dia 12 de agosto. Em matéria veiculada à época inicial do surto, o Correio já havia apurado com servidores da ANVISA a insuficiência da fiscalização sobre as entradas de pessoas e mercadorias no país. Nesta entrevista, a servidora da ANVISA Sueli Dias concorda que uma maior ação preventiva do Ministério da Saúde poderia atenuar os efeitos do surto. Para ela, a saída para o governo no controle da gripe é de educar em massa a população, de forma acessível, e também equipar hospitais e funcionários de material nesse sentido. Com relação às vacinas, Sueli é taxativa: "O caminho para o governo é buscar a quebra de patentes". Dessa forma, evitar-se-ia que a população saísse em busca desesperada pelo remédio contra a gripe e se automedicasse, o que também é altamente prejudicial. Segundo a servidora, já há muitos brasileiros em busca do genérico La Porcina, vendido no Paraguai. Em resumo, as soluções passariam por práticas há muito abandonadas pelo governo, no caso, investimentos em saúde pública. E por outras nunca sequer cogitadas, como o seria a quebra de patente de uma gigante da indústria farmacêutica – a Roche, ‘dona’ do Tamiflu, anti-viral mais recomendado contra a gripe. Uma gripe, cuja mudança de nome, aliás, deve-se acima de tudo às empresas criadoras de porcos, em cujos terrenos se disseminou o vírus. Correio da Cidadania: Como podemos avaliar o atual quadro brasileiro da gripe A ou suína? Sueli Dias: Eu acho que acontece o que de certa forma era inevitável. Inicialmente, verificava-se que o surto atingia a população de maior poder aquisitivo que viajava ao exterior; hoje, já atinge também as camadas mais carentes da população. Ainda que tenha um protocolo determinado no qual, teoricamente, o médico, em caso de suspeita e vendo que a pessoa se enquadra em um critério específico, indicará medicação, a questão é quanto tempo demora a se chegar ao médico. É óbvio que aqueles que possuem um maior poder aquisitivo chegam mais rápido ao atendimento, o que acaba reproduzindo alguns processos da sociedade como um todo. Diz-se que doenças são democráticas, pois podem atingir qualquer pessoa, mas o atendimento, na minha avaliação, não é democrático. Nos convênios, esse atendimento também é ruim, mas o contingente de pessoas que procuram assistência nesse âmbito é menor. As pessoas que usam a rede do SUS estão em número maior, e aí prevalecem as más condições, poucos médicos, atendimento mais demorado... Dessa forma, temos de torcer para que o calor chegue o mais rapidamente possível, para diminuir as possibilidades de as pessoas em ambientes fechados transmitirem ainda mais o vírus. Tenho certeza de que o problema começará mesmo quando forem atingidas as camadas mais pobres da população, como já estamos vendo. CC: Tendo em vista essa nossa estrutura de saúde pública e lembrando o exemplo da dengue em 2008, o que vislumbra para os próximos meses? Podemos esperar por hospitais lotados, carência de atendimento, em suma, um quadro realmente alarmante caso o vírus continue se disseminando por um tempo? SD: É uma incógnita. O comportamento do vírus é semelhante ao do vírus sazonal. Todo vírus influenza atinge um número maior de pessoas nas épocas mais frias do ano. Acho que, com o tempo esquentando, poderemos respirar mais aliviados. É diferente da dengue, cujo mosquito se desenvolve mais depois das chuvas. Se não fosse uma doença sazonal, acho que teríamos de nos preocupar com uma quantidade muito maior de casos, pois sabemos que o acesso e a assistência de saúde são ruins aqui. CC: Especificamente em São Paulo, o que se pode dizer da situação? O clima e a poluição da cidade podem exercer alguma influência negativa? SD: Vou falar mais ou menos em cima do que aprendi na escola, pois, se dissesse que tenho clareza para tratar disso, seria besteira. Na minha época de faculdade, tive um professor que era diferente, pois não era homeopata, e sim um patologista. E ele dizia que quem mora nas cidades poluídas tem uma doença no pulmão que se chama antracose (quando se vê o pulmão, podem-se notar vários risquinhos pretos por conta da poluição) e ele achava que isso até servia de proteção contra outras patologias. Mas essa é uma visão muito particular dele, e sinceramente não sei te responder intuitivamente. É óbvio que, se a pessoa vive num lugar mais poluído, com más condições de vida, estará mais enfraquecida e predisposta a contrair outras doenças. Mas não sei se nesses casos de morte houve uma pneumonia pelo fato de o vírus atingir as vias respiratórias baixas. CC: Pensa que a mídia vem fazendo muito alarmismo em torno do surto? Como analisa o viés da cobertura e da abordagem da doença? SD: Acho que a mídia burguesa não se importa sinceramente com a população e não tem a preocupação de informar bem acima de tudo. Tivemos casos que não se enquadravam como suspeitos e a mídia saía alardeando como se fossem. Acho que não se pode chamar de alarmismo, mas de oportunismo. De tudo que possa dar ibope, vender, eles se apropriam. No entanto, tenho a impressão de que há muitos fatos dos quais a mídia não tem nem conhecimento. Creio que estejam ocorrendo casos por aí que me deixam em dúvida sobre a precisão desses números... CC: Até porque, com as dificuldades de acesso à saúde, muitos casos podem ficar sem sequer ser contabilizados, não? SD: Sim, até porque neste momento, quando se tem uma epidemia já instalada, a própria orientação do Ministério da Saúde é para não se fazer mais busca ativa. Por exemplo, se há alguém na família que teve influenza A, já não se pesquisará mais casos na mesma família. Isso porque a vigilância epidemiológica não acredita muito que funcione tal expediente. Portanto, o que, teoricamente, deve ser feito? Educação em massa – não vi nenhuma propaganda na televisão -, pois, apesar de o Ministério da Saúde disponibilizar um panfleto em seu site, creio que é um material extremamente elitista; muitas figuras, coisas escritas, sem que haja campanhas – se ocorrem, desconheço – de visita de porta em porta, não para buscar casos, e sim para educar. A medida de afastar as crianças da escola pode até ser eficiente, mas assim não se educam as crianças que poderiam levar informações para casa. E em muitas famílias, os pais não lêem e as crianças têm um nível maior de informação. Não dá para se comunicar usando a mesma linguagem com a pessoa que viaja para os EUA e com o caminhoneiro. Falo deles, pois agora nosso foco são os caminhoneiros. Fizemos discussões com técnicos, pessoas que trabalham nos terminais... É lógico que nada se esgota, mas esse é um trabalhador que dorme mal, come mal, viaja o país todo, tem de ficar acordado por longos períodos, e, sendo assim, é uma população que, tal como outras, merecia das autoridades um material específico. Até mesmo a questão de se denominar o surto de influenza A. Será que ficará tão fácil de as pessoas entenderem? Tenho minhas dúvidas, creio que não. Não que se deva usar uma linguagem rebaixada com o povo, mas deve ser ao menos acessível. CC: Aliás, qual seria a denominação mais apropriada para o surto? SD: Veja bem, começou como gripe suína. Acho que tinha de ser gripe suína, gripe do porco. Foram os criadores de porcos que fizeram toda uma pressão pela mudança de denominação, de modo a retirar a associação com o animal. Mas fica muito difícil para a população entender neste momento que gripe agora é influenza. Penso, ademais, que o caminho para o governo é buscar a quebra de patentes, porque estão falando para as pessoas não comprarem nada, mas há várias pessoas indo para o Paraguai buscar um remédio chamado ‘La Porcina’, um genérico do medicamento recomendado contra a gripe, feito por lá. E tem muito brasileiro indo para o Paraguai comprá-lo. É lógico que é complicado colocar tal tipo de medicação para vender em qualquer farmácia da esquina. Quem tem poder aquisitivo ia comprar. Ou até quem não tem ia dar um jeito também. E a automedicação também é perigosa. Se nossa assistência à saúde é ruim, a automedicação, no meu entender, é pior, pois a pessoa não sabe se realmente é aquilo que se deve tomar. Portanto, o Brasil e os países subdesenvolvidos deveriam fazer um esforço pela quebra de patentes. CC: É possível reverter o crescente quadro de contágios ou se trata de uma contingência que vai além do que podem fazer as autoridades? Quais os melhores caminhos para controlar o surto até sua superação total? SD: O ideal para ser feito neste momento, sob a ótica do mundo em que vivemos, seria campanhas educativas massivas, fazendo de cada indivíduo um autêntico cidadão. Que ele pudesse se responsabilizar (óbvio que não pelas condições de saúde do país), ter material específico e que pelo menos os hospitais públicos fossem equipados e todos os seus profissionais treinados, com medicamentos. Não adianta ter remédio para todos e a pessoa não saber quando procurar o médico. É nesse sentido que se deve educar. Porque o pessoal se desespera, faz filas longas e, com o contato de tanta gente aglomerada, aumentam-se as chances de contágio. Não adianta ter o medicamento sem a população educada e um profissional que saiba tratar e encaminhar cada paciente. O que se precisa é de investimento. Para conter esse surto, ter saúde de qualidade, precisa de grana, não tem jeito! Para ter material educativo suficiente, medicamento, treinamento, criar vagas nos hospitais. Em um encontro da saúde, o economista Aquilas Mendes desmistificou completamente os investimentos da saúde, mostrando que se investe muito menos do que se diz. Eu trabalho na vigilância sanitária e é a ANVISA que dá registro para tudo. E ele colocou o seguinte: muita gente diz que não usa a saúde pública. Mas e a pasta de dente, quem fiscaliza, dá o registro? É o serviço de saúde pública. Ou seja, mesmo aqueles que entendem que não precisam, usam e necessitam da estrutura da saúde pública. E para melhorar isso só com mais verba, concurso público, campanhas educativas adequadas, atendimento, medicamento, porque uma coisa é certa: uma gripe é diferente da dengue. Nessa gripe, o vírus é passado entre humanos, ao contrário da gripe do frango, na qual o vírus não passou por essa mutação – ainda bem, pois era muito mais grave. Portanto, fica muito difícil de controlar, mas o que precisa mesmo é de investimentos. CC: Quer dizer, para ao menos amenizar o surto e também garantir um tratamento adequado e educativo à população, o governo teria de fazer exatamente o oposto do que vem realizando na área de saúde pública, seguindo uma lógica de desmonte do setor, e até mesmo o que nunca faz, no caso enfrentar um peixe grande da indústria farmacêutica. SD: Venho refletindo há um tempo sobre um outro problema. Estamos numa região em que praticamente só há faculdades privadas. Acontece no país todo, mas creio que no estado de São Paulo existam mais faculdades privadas de medicina. Seus alunos pagam 3,5 mil, 4 mil reais por mês de faculdade, logo, são pessoas de poder aquisitivo super alto, filhos da burguesia mesmo, que não trabalham. E o que acontece? Durante seus estágios, cria-se uma ilusão para a população de que ela é bem atendida, mas na verdade essas pessoas são usadas e têm seus corpos apropriados. Aí, quando os alunos se formam, não devem nada a essas pessoas, pois já pagaram a faculdade. Sem falar das más condições de ensino que não formam bem os profissionais. Os serviços públicos aqui da minha região (Baixada Santista) têm dificuldade de fazer concurso para médicos. Já li algumas coisas sobre isso, e nos locais mais afastados também há essa dificuldade. Enfim, temos também a questão da indústria das faculdades de medicina, da indústria farmacêutica. A Roche, detentora do Tamiflu, é uma patente muito difícil de quebrar. Mas o governo e os movimentos populares deveriam buscar a quebra de patente, fazer algo contra essas escolas de medicina, que não educam nem ensinam o sujeito a ser um bom profissional da saúde e que usam as pessoas, descartando-as quando não servem mais. Posso estar misturando muito, pois creio ser uma coisa muito complicada, um ciclo vicioso. A população vive mal, em más condições, se alimenta mal... A menina que trabalha na minha casa mora na palafita do Guarujá. Agora até conseguiu comprar madeirite para tapar os buracos do barraco. Mas é um frio terrível, com muita umidade e sujeira que vem do mangue. Uma noite ela acordou com um caranguejo na barriga de cada filhinho dela. Ou seja, saúde não é só remédio, um médico, é todo um conjunto. CC: Nos primeiros dias da gripe, um servidor da ANVISA por nós entrevistado disse que o país não estava preparado em sua fiscalização de portos, aeroportos e fronteiras, o que poderia facilitar a entrada do vírus. Com o desenrolar dos fatos, essa tese pode ser considerada verdadeira? Faltaram pessoas para compor equipes de fiscalização e assim aumentar o rigor sobre as entradas no país? SD: Tenho uma posição um pouco diferente dessa. Acho, sim, que o país não estava preparado, que temos poucos funcionários e deveríamos melhorar. Mas, além dos portos, aeroportos e fronteiras, temos poucos servidores no posto de saúde, no programa de saúde da família, nos hospitais públicos e privados. Eu enxergo a saúde como um todo. No entanto, o que ocorreu na China na época da gripe aviária? Contiveram as pessoas e pronto. Aqui não temos poder para isso, podemos apenas intensificar as campanhas educativas. E aí depende também do material que o ministério e a ANVISA produzem, que a meu ver não é para um trabalhador de fronteira. Pode até ser para quem passa pelo aeroporto, mas, para o trabalhador de porto, de fronteira, possui uma linguagem difícil. Acho que falar em coisas como ‘etiqueta respiratória’ não pega bem. Por mais trabalhadores treinados e preparados que tivéssemos, precisaríamos ter um material muito adequado. Além do mais, vivemos numa sociedade que não iria interferir ou atrapalhar seu comércio em nome da saúde. Não iria fechar fronteira. Tanto que houve uma mudança no atual regulamento sanitário internacional, que ficou diferente. Quando vemos, por exemplo, casos de febre amarela pelo mundo, eles aumentam. A legislação em relação à febre amarela ficou mais flexível. O servidor da ANVISA executa a fiscalização amparado na legislação. Temos, ademais, pessoas experientes, no entanto, somos poucos servidores. São capacitados, treinados e alguns buscaram seu próprio treinamento sem necessariamente precisar da instituição, mas existe a dificuldade do contexto. Não vamos fechar fronteiras. No sistema capitalista não se fecham fronteiras, não vamos impedir que as pessoas entrem e saiam. Os pacotes das agências de turismo já estão vendidos, funcionamos sob esta lógica. O sujeito não vai impedir o filho de viajar para uma área de incidência da doença porque já pagou a viagem. A gente pensa e vive com essa ótica. Nossos caminhoneiros tiveram um atendimento ruim, sem dúvida, mas, pela pressão do trabalho, vejo que eles têm muito desespero em entregar a carga a tempo. Quer dizer, a pressão do trabalho faz a pessoa expor sua saúde. Está muito fácil para o governo dizer que ninguém vai à aula até dia 17. E os pais que não podem deixar de trabalhar e não têm com quem deixar os filhos? Para o governo, está se evitando novos casos com as crianças fora da escola, mas onde ficam essas crianças? A qual risco estão expostas nos lugares em que moram? Algumas não morrem de gripe, mas ficam entregues à violência. CC: E há quem diga que as vítimas mais propícias são as pessoas de idade adulta. SD: Isso. Crianças até dois anos e o adulto jovem. Vi uma explicação de um infectologista que entende que as crianças maiores e os mais velhos são mais imunes. Quanto mais velha, mais contatos com microorganismos semelhantes a este vírus a pessoa já teve, e isso poderia ser uma explicação. Tanto que a vacina é dada prioritariamente nos mais velhos, que sofrem mais de diabetes, hipertensão, enfisema... CC: E como você analisa a atuação do Ministério da Saúde neste período do surto? SD: Acho que o Ministério começou com um discurso muito de pano quente, batendo na tecla de que estava preparado. Foi este o discurso. Deveria ter se preparado de fato, ter buscado quebrar patentes de medicamentos... Não sei como anda a questão da vacina, somente que sairá em 2010, mas não tenho idéia de quantas doses o Instituto Butantan poderá fazer. Pois é óbvio que, com a vacina sendo produzida lá fora, os grandes irão comprar tudo, se já não o fizeram, pois, pelo que me informei, já tinham comprado grande parte. De toda forma, o Ministério da Saúde, num primeiro momento, achou que não seria tudo isso, desvalorizou uma possível pandemia e até a capacidade do vírus da doença, e em minha opinião não tomou as medidas que poderia ter adotado. Não penso que evitaria, mas poderia estar em outro patamar. Não sei se algumas mortes não poderiam ter sido evitadas. Gabriel Brito é jornalista. |