Geraldo Hasse
Especial para o Sul21
A atual crise do capitalismo financeiro internacional está reabilitando o pensamento do filósofo Karl Marx, o primeiro pensador econômico a fazer – no século XIX – uma profunda análise crítica do sistema de produção dominante no mundo desde a Revolução Industrial. Esta foi a principal conclusão de um debate realizado nesta quinta (27/10) na Fundação de Economia e Estatística (FEE), em Porto Alegre.
Não poderia ser mais oportuna a ideia da FEE de colocar em debate o tema da mais-valia, a maior sacada de Karl Marx (1818-1883), co-autor do Manifesto Comunista de 1848 e autor de O Capital (1867), que se tornou a bíblia do socialismo, embora seja mais citado do que lido.
A mais-valia é a diferença entre o valor da mercadoria e a soma dos meios empregados em sua produção (da mercadoria). Na prática, é desse “plus” tirado do trabalho de cada operário que o empresário constrói o lucro, chave-mestra da dinâmica capitalista.
Entretanto, como a análise marxista se concentrou no binômio agricultura-indústria, generalizou-se nas últimas décadas a crença de que as teorias de Marx perderam a atualidade, não só porque o comunismo pregado por ele faliu na União Soviética no final do século XX, mas porque a economia vem se concentrando em atividades terciárias, especialmente na área de serviços, onde o resultado do trabalho humano é definido como imaterial.
A dúvida sobre a pertinência da teoria da mais-valia no mundo atual foi respondida sem dificuldades pelo professor Eduardo Maldonado, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Falando para uma centena de pessoas, mescla de estudantes e veteranos do ensino e da pesquisa, ele lembrou didaticamente que nos anos 1960, quando o capitalismo atravessava um ciclo de prosperidade que vinha desde o Pós-Guerra, estudantes e trabalhadores quiseram mudar o mundo e ressuscitaram Marx, que se tornou muito mais conhecido do que tinha sido até então.
Em 1970, o economista norte-americano Paul Samuelson (1915-2009) ganhou uma bolsa de um ano para escrever um ensaio sobre Marx. Não teve dúvidas em afirmar que o pensamento do filósofo alemão era inconsistente. E deu um conselho: “Jovens radicais, estudem Leontief e Sraffa!” Referia-se a Wassily Leontief (1905-1999), economista russo que migrou em 1933 para os EUA onde elaborou o conceito da matriz insumo-produto; e Piero Sraffa (1898-1983), economista italiano que editou criticamente a obra do economista clássico inglês David Ricardo (1772-1823).
Nas décadas seguintes, houve uma enxurrada de estudos sobre as teorias de Marx. Um dos mais importantes difusores da obra de Marx foi o economista norte-americano Paul Sweezy (1910-2004), um neomarxista que estudou as mudanças da concorrência provocadas pela monopolização da economia e a supremacia do capital financeiro sobre as demais atividades.
Ao fim de tamanha onda, sobraram duas perguntas básicas. Primeira: teriam a concentração econômica e a mudança do padrão de acumulação de capital furado a teoria de Marx, particularmente quanto à mais-valia? Pergunta 2: os conceitos marxistas não se ajustariam mais, estariam obsoletos diante das profundas mudanças do mundo moderno, especialmente após a proliferação das tecnologias da informação?
A resposta é negativa para as duas perguntas, afirma Maldonado. “Hoje toda a crítica feita recentemente a Marx é considerada errada”, diz ele, salientando porém que a crise do neoliberalismo vem provocando uma curiosa releitura das teorias marxistas.
Na esquerda econômica, predomina a ideia de que é preciso voltar a John Maynard Keynes (1883-1946), o economista inglês que pregava a intervenção do Estado na regulagem dos negócios, particularmente na definição dos investimentos.
Pela direita, representada por veículos como o Financial Times de Londres e The Time de Nova York, alguns articulistas escreveram recentemente que Marx estava certo ao afirmar que o capitalismo constrói a sua própria destruição. Já um executivo da União de Bancos Suíços escreveu um artigo intitulado “Dê Uma Chance a Marx” (“naturalmente, para salvar o capitalismo”, acrescentou Maldonado).
A irracionalidade da atual crise econômica internacional vem gerando episódios que seriam inexplicáveis em outro contexto. Maldonado citou um artigo recente de um jornalista inglês que lembrou a visita a um colega operador de Wall Street. Estavam ambos à beira da piscina tomando um campari quando o amigo afirmou: “Quanto mais estou em Wall Street, mais admiro Marx”.
Frase de efeito, fruto do cinismo ou do álcool? O fato é que o neoliberalismo – um mero apelido do capitalismo, segundo se concluiu em outro debate recente da FEE – colocou a economia mundial numa sinuca que, paradoxalmente, reaviva a chama do pensamento marxista. Por incrível que possa parecer, os economistas modernos encontram em textos de Marx abundantes subsídios para analisar aspectos contemporâneos da vida das empresas, como a terceirização da fabricação de artigos de grandes marcas mundiais que oferecem trabalho sem gerar emprego. “Há dois anos, havia em Bangladesh dois milhões de pessoas trabalhando 14 horas por dia, sete dias por semana”, lembrou Maldonado.
Ao mesmo tempo em que os trabalhadores de diversos países se enquadram em modernos esquemas escravagistas, em países mais adiantados cresce o número de pessoas empenhadas em tarefas analíticas ou simbólicas, que dependem de altos níveis de cooperação e cuja produção é imaterial e/ou intangível. Mesmo aí sobrevive o conceito fundamental da teoria econômica de Marx.
“A produção imaterial não é incompatível com a teoria da mais-valia”, concluiu Maldonado, destacando que a economia política contribuiu muito pouco para a compreensão do capitalismo porque se limitou basicamente a duas coisas: de um lado, a negar Marx; de outro, a reabilitá-lo.
Assim, como comentou no final o sociólogo Carlos Roberto Winkler, pauteiro dos debates da FEE, o marxismo se tornou um espectro que mais uma vez ronda o planeta – agora, via internet –, sem que se saiba onde foi parar ou o que estaria premeditando o proletariado, categoria apontada por Marx como agente-coveiro do capitalismo.
Os debates da FEE, realizados em média quinzenalmente, refletem o desejo dos veteranos, em vias de aposentar-se, de preparar as novas gerações para a análise da conjuntura econômica e de outros ramos da ciência. Na mesa e na platéia costumam misturar-se estudantes, professores e pesquisadores. Fundada em 1973, a FEE deu continuidade ao trabalho estatístico iniciado na primeira década do século XX, mas se firmou como uma instituição rigorosamente crítica.