Não
pretendo, com o título deste artigo, (ser mais um a) banalizar e abusar
da fórmula lefebvriana do "direito à cidade". Na verdade, diante de
interpretações cada vez mais "aguadas" dessa expressão – convertida em
um simpático
slogan, à disposição de interesses tão diferentes
quanto os de movimentos sociais emancipatórios, intelectuais de esquerda
com e sem aspas, ONGs, instituições governamentais e organismos
internacionais –, cabe, isso sim, clamar por um mínimo de clareza
político-estratégica, ao mesmo tempo em que cumpre relembrar: para o
marxista heterodoxo Henri Lefebvre, o "direito à cidade" não se reduzia a
simples conquistas materiais específicas (mais e melhor infraestrutura
técnica e social, moradias populares, etc.) no interior da sociedade
capitalista. O "direito à cidade" corresponde ao direito de fruição
plena e igualitária dos recursos acumulados e concentrados nas cidades, o
que só seria possível em
outra sociedade. [1]
Complementarmente,
vale a pena lembrar as contribuições do neoanarquista Murray Bookchin a
propósito do tema da "urbanização sem cidades": para ele, cada vez mais
temos uma urbanização que, aparentemente de maneira paradoxal, se faz
acompanhar pela dissolução das cidades em um sentido profundo,
sociopolítico. [2] O que se tem, cada vez mais, são entidades espaciais
enormes, mas crescentemente desprovidas de verdadeira vida pública. Há,
em meio a uma espécie de antítese cada vez mais nítida entre urbanização
e "cidadização" ("
citification": neologismo que, em Bookchin,
significa a formação de cidades autênticas, com uma vida pública
vibrante), uma lição fundamental a ser extraída: sem a superação do
capitalismo e de sua espacialidade, o que vulgarmente se vai acomodando
por trás da fórmula do "direito à cidade" não passa e não passará jamais
de migalhas ou magras conquistas, por mais importantes que possam ser
para quem padece, nas favelas, loteamentos irregulares e outros espaços
segregados, com a falta de saneamento básico, com riscos ambientais
elevados, com doenças e com a ausência de padrões mínimos de conforto.
No entanto, a essencialmente geográfica questão da
localização
(na sua relação com a acessibilidade [3]) está por trás de atritos que
se vêm avolumando nos últimos anos. Há um "direito" específico (não em
sentido imediatamente jurídico, mas sim em sentido moral), de ordem
"tática", que deveria ser compreendido nos marcos de uma luta mais
ampla, "estratégica": o direito de a população pobre permanecer nas
áreas centrais das nossas cidades. Esse "direito moral", os esquemas e
programas de "regularização fundiária" vêm tentando, para o bem e para o
mal, converter em um direito legal assegurado (segurança jurídica da
posse). No caso das favelas, avançou-se bastante no terreno legal, desde
os anos 80; em se tratando de ocupações de sem-teto, e em especial de
ocupações de prédios, porém, quase tudo ainda resta por fazer –
inclusive no que se refere ao desafio de, ao "regularizar", não
(re)inscrever, pura e simplesmente, um determinado espaço plenamente no
mundo da mercadoria, adicionalmente favorecendo a destruição de formas
alternativas de sociabilidade (que florescem em várias ocupações) e a
cooptação dos moradores. [4]
As favelas têm sido, há mais de um
século, precursoras de uma luta pelo direito de residir nas áreas
centrais. Se tomarmos o caso emblemático do Rio de Janeiro,
verificaremos que essa luta já se inicia com a virada do século XIX para
o século XX, assumindo contornos particularmente dramáticos com a
erradicação, na esteira da reforma urbanística do prefeito Pereira
Passos (1902-1906), de muitos cortiços e casas de cômodos: precisamente
essa erradicação em massa, verdadeira "limpeza étnica" que mostra bem o
espírito antipopular do que foi a República Velha, alimentou a
suburbanização (a rigor, periferização) e, também, a favelização dos
pobres.
Contudo, as favelas, espaços de resistência tão
importantes até poucas décadas atrás – os quais, a partir da mobilização
da Favela de Brás de Pina (em 1965), no Rio de Janeiro, desenvolveram
uma tenaz luta contra as remoções promovidas durante o Regime Militar,
que foi encampada pela antiga Federação das Associações de Favelas do
Estado da Guanabara (FAFEG) –, foram, aos poucos, tombando vítimas da
cooptação, da despolitização e de seus múltiplos agentes: políticos
clientelistas, traficantes de drogas, igrejas neopentecostais... A
atuação de uma pletora de ONGs (animadas por indivíduos de classe
média), a partir sobretudo dos anos 90, longe de reverter o quadro,
talvez até o tenha, em parte, agravado, ao se tentar impulsionar uma
"inclusão social" às custas da verdadeira mobilização popular e da
conscientização crítica.
O fato é que, nas áreas centrais, as
favelas foram ocupar terrenos que poderiam ser qualificados de "terras
marginais", historicamente desprezadas pelos mais aquinhoados (encostas
de morros, beira de rios e canais). [5] Hoje em dia, o movimento dos
sem-teto, que tenta resgatar a bandeira da
reforma urbana do
"tecnocratismo de esquerda" que a arrebatou na década de 90, [6] ocupa,
muitas vezes, terrenos periféricos (como é o caso em São Paulo, em
Salvador, em Belo Horizonte e mesmo no Rio de Janeiro), mas também
territorializa, outras tantas vezes, prédios "abandonados" e ociosos (a
exemplo de São Paulo, Porto Alegre e, principalmente, do Rio de
Janeiro).
Já quase não há terrenos vazios em áreas centrais, passíveis de ocupação. As favelas localizadas nos arredores do CBD (
Central Business District),
isto é, da área econômica central (nos casos em que ainda há uma: essa
geometria veio se tornando cada vez mais relativa e complexa com o
passar das décadas), são, via de regra, muito antigas e consolidadas.
São sobreviventes das ondas de remoções e despejos do passado, em
particular daquelas dos anos 60 e 70. Mas, por força de vários fatores
(falências fraudulentas, dinâmicas internas ao próprio aparelho de
Estado...), há uma quantidade apreciável de
domicílios vagos no
Brasil, muitos assim deixados especulativos ou em decorrência de
processos que, mesmo não sendo sempre intencionais, geram um "passivo
social e espacial". O contraste desse imenso estoque de
domicílios vagos com as estimativas referentes ao
déficit habitacional
brasileiro é esclarecedor acerca da motivação básica para o surgimento e
expansão do movimento dos sem-teto no Brasil. [7] No que se refere,
especificamente, à luta para permanecer nas áreas centrais, cabe
ressaltar que, para os moradores das ocupações − que são, na sua
esmagadora maioria, trabalhadores informais, muitos deles ambulantes −,
morar nas proximidades do CBD significa residir perto dos locais em que
comercializam seus produtos, sem sofrer excessivamente com custos de
transporte. Algo fundamental, portanto − isso sem falar na
infraestrutura técnica e social, há muito consolidada nas áreas centrais
das cidades.
Por outro lado, o capital vê na "revitalização" de
áreas centrais, justamente, um riquíssimo veio a ser explorado. Já nos
anos 80 David Harvey, desdobrando um
insight sobre a
importância crescente da produção do espaço (e não somente no espaço)
para acumulação capitalista que originalmente remete a Henri Lefebvre,
havia discutido a relevância do "circuito secundário" da acumulação de
capital. [8] Este circuito é aquele que se vincula não à produção de
bens móveis, mas sim à produção de bens imóveis, isto é, do próprio
ambiente construído. O capital imobiliário (fração do capital um tanto
híbrida, que surge da confluência de outras frações) tem, nas últimas
décadas, assumido um significado crescente, na interface com o capital
financeiro – às vezes com consequências globalmente catastróficas, como
se pode ver pelo papel da bolha das "hipotecas podres" na crise mundial
que eclodiu em 2008. Pelo mundo afora, a contribuição da construção
civil na formação da taxa de investimento foi-se tornando cada vez mais
expressiva, nas últimas décadas. E em todo o mundo – das Docklands, em
Londres, a Puerto Madero, em Buenos Aires –, "revitalizar" espaços
obsolescentes (presumidamente "mortos", pelo que se vê com o ostensivo
uso ideológico de um termo como "revitalização") tem sido um dos
expedientes principais na criação de novas "frentes pioneiras urbanas"
para o capital.
segal-8No Rio de Janeiro, a disputa entre as
ocupações de sem-teto e os interesses ligados à "revitalização" da Zona
Portuária e do Centro – a qual gravita ao redor do projeto do "Porto
Maravilha", [9] em que, com o respaldo da política repressiva batizada
pela Prefeitura de "Choque de Ordem", se tenta promover uma
"gentrificação" [10] em larga escala – vai ficando mais e mais evidente e
tensa. Diversos pesquisadores do Núcleo de Pesquisas sobre
Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) têm desenvolvido estudos que mostram essas tensões. [11]
Em
São Paulo tem-se um processo análogo, que gira em torno do projeto da
"Nova Luz", de revitalização da "Cracolândia" e adjacências. [12] E,
também analogamente, está-se diante, também em São Paulo, de um "regime
urbano" [13] caracterizável como conservador e repressivo, identificado
com o "empresarialismo urbano" e não com a reforma urbana (nem mesmo na
sua versão "domesticada", "tecnocrática de esquerda", levada à
caricatura pelo Ministério das Cidades do governo Lula).
Em meio a
uma "democracia" representativa ritualmente celebrada por meio de
eleições regulares, na qual os direitos políticos formais são básica e
aparentemente respeitados, direitos humanos e sociais fundamentais são,
entretanto, sistematicamente violados. Atualmente, a repressão e as
tentativas de cooptação e desmobilização popular a serviço da expulsão
das populações pobres das áreas centrais das grandes cidades são um
exemplo cabal dessas violações de direitos. Considerando a disparidade
de meios econômicos, propagandísticos e de violência à disposição dos
contendores, trata-se de uma luta tremendamente desigual. Mas, contra a
força dos argumentos, nem sempre o "argumento" da força prospera
indefinidamente. Vale lembrar do lema aprovado pela
Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, no México, em 2007: "Nosotros no podemos con sus armas. Ustedes no pueden con nuestras ideas."
Agradecimento
Agradeço a Daniela Batista Lima pelo levantamento dos dados atualizados sobre
déficit habitacional e domicílios vagos no Brasil que constam da nota 7.
Notas
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1]
Focalizei essas questões em "Which right to which city? In defence of
political-strategic clarity". Interface: a journal for and about social
movements, 2(1), pp. 315-333. Disponibilizado na Internet
(http://interface-articles.googlegroups.com/web/3Souza.pdf) em
27/05/2010.
[2] Ver, de Murray
Bookchin, Urbanization without Cities. The Rise and the Decline of
Citizenship. Montreal e Cheektowaga: Black Rose Books, 1992.
[3]
O tema da acessibilidade foi interessantemente trabalhado por Kevin
Lynch em seu admirável livro Good City Form (Cambridge [MA], The MIT
Press, 1994 [1981]). (Há uma tradução para o português, intitulada A boa
forma da cidade, publicada em 2007 pelas Edições 70, de Lisboa.)
[4]
Esse é o sentido, portanto, da ressalva que fiz antes: "para o bem e
para o mal". Sem dúvida que a segurança jurídica da posse é uma demanda
tradicional e legítima das populações dos espaços segregados que, por
sua situação ilegal ou irregular, sofre toda sorte de discriminações,
intimidações e violências. A questão é que a regularização fundiária
também se presta a uma facilitação da (re)inserção de espaços no
circuito formal do mundo da mercadoria. E mais: em se tratando,
sobretudo, de ocupações de sem-teto, que muitas vezes têm sido
interessantes ambientes de experimentação de formas de organização e
socialização alternativas (em certos casos chegando até mesmo à
autogestão e formas bastante "horizontais" de organização política), um
esquema de regularização fundiária pode, dependendo de sua natureza,
desestruturar toda uma vida de relações e prejudicar certas iniciativas e
atividades dos moradores. Valores e hábitos cultivados com dificuldade,
como assembleias regulares, compartilhamento de responsabilidades,
cooperação sistemática, rotatividade de tarefas, etc. podem vir a ser
solapados, sendo substituídos completamente ou quase completamente pelo
individualismo e pelo privatismo.
[5] A
expressão "terras marginais" lembra a teoria da renda da terra,
sistematizada por Ricardo e aprimorada por Marx. No entanto, há objeções
bastante razoáveis à transposição da reflexão marxiana (ou ricardiana)
para o espaço urbano, objeções que, em larga medida, compartilho (ver,
por exemplo, a tese de doutorado de Csaba Deák, Rent Theory and the
Price of Urban Land. Spatial Organization in a Capitalist Economy, de
1985
[http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/85r-thry/CD85rent.pdf]).
Utilizo aqui aquela expressão, por conseguinte, em um sentido mais
livre, sem que o leitor ou a leitora deva pressupor que estou querendo
forçar uma analogia.
[6] Vide, sobre
esse assunto, o meu livro A prisão e a ágora. Reflexões sobre a
democratização do planejamento e da gestão das cidades (Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2006).
[7] Segundo
estimativas da Fundação João Pinheiro (Déficit habitacional no Brasil -
Municípios selecionados e microrregiões geográficas, Belo Horizonte,
Fundação João Pinheiro, 2005, 2.ª ed.), o déficit habitacional
brasileiro já montava, em 2000, a 7,2 milhões de domicílios. Contudo,
segundo relatório de julho de 2010 do Ministério das Cidades, baseado em
levantamentos da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no
Brasil estimado para 2008 teria baixado para cerca de 5,6 milhões de
domicílios, dos quais 83% estariam localizados nas áreas urbanas
(http://www.cidades.gov.br/noticias/deficit-habitacional-brasileiro-e-de-5-6-milhoes/).
(Para 2007, a Fundação João Pinheiro, em estudo com data de junho de
2009, havia estimado o déficit habitacional em aproximadamente 6,3
milhões de domicílios, dos quais 82,6% localizados nas áreas urbanas
[http://www.fjp.gov.br/index.php/servicos/81-servicos-cei/70-deficit-habitacional-no-brasil].)
Os números da Fundação João Pinheiro sobre o déficit habitacional
brasileiro me parecem conservadores; mas, seja lá como for, a ordem de
grandeza dos números referentes ao estoque de domicílios é a mesma,
embora os valores sejam um pouco mais elevados. Segundo dados divulgados
pelo Ministério das Cidades, os domicílios vagos em condições de serem
ocupados e em construção, em todo o Brasil, correspondiam, em 2008, a
7,2 milhões de imóveis, dos quais 5,2 localizados em áreas urbanas (vide
"link" supracitado); e conforme a Fundação João Pinheiro, em todo o
Brasil seriam cerca de 7,3 milhões de imóveis não ocupados, dos quais
aproximadamente 5,4 milhões localizados em áreas urbanas; desse total,
6,2 milhões estariam em condições de serem ocupados - o restante estaria
em construção ou em ruínas, este último caso correspondendo a uma
minoria de cerca de 300 mil unidades (vide "link" supracitado).
[8]
Ver, de Harvey, "The urban process under capitalism: A framework for
Analysis" (incluído em The Urbanization of Capital, Baltimore, The Johns
Hopkins University Press, 1985). De Lefebvre, vale a pena começar por A
revolução urbana (a edição que consultei é espanhola: La revolución
urbana, Madrid, Alianza Editorial, 1983 [1970], 4.ª ed.; há uma edição
brasileira, publicada em Belo Horizonte pela Editora UFMG, em 1999) e
prosseguir com A produção do espaço (La production de l'espace, Paris,
Anthropos, 1981 [1974]).
[9] O "site" oficial do projeto é: http://www.portomaravilhario.com.br/
[10]
"Gentrificação" é um horrível termo técnico, aportuguesamento canhestro
do inglês "gentrification", ou nobilitação, enobrecimento. Na
literatura especializada, trata-se do processo, menos ou mais violento,
menos ou mais gradual, de substituição da população pobre por atividades
econômicas de alto status (shopping centres, prédios de escritórios,
etc.) e residências para as camadas mais privilegiadas.
[11]
De maneira às vezes mais direta, às vezes mais indireta, é o caso da
tese de doutorado de Tatiana Tramontani Ramos (em andamento) e das
dissertações de mestrado de Eduardo Tomazine Teixeira (defendida em
2009), Matheus da Silveira Grandi (defendida em 2010), Rafael Gonçalves
de Almeida (em andamento), Marianna Fernandes Moreira (em andamento) e
Amanda Cavaliere Lima (em andamento).
[12] O "site" oficial do projeto é: http://www.novaluzsp.com.br/
[13]
O conceito de "regime urbano" (urban regime) foi proposto por Clarence
Stone ("Urban regimes and the capacity to govern: A political economy
approach", Journal of Urban Affairs, 15[1], 1993, pp. 1-28) para
caracterizar as combinações de formas institucionais e interesses
econômicos (especialmente interesses e pressões de classe) que se
expressam na qualidade de estilos de gestão específicos: uns mais
abertos à pressão dos trabalhadores e permeáveis à participação popular
(com ou sem aspas), outros mais repressivos e refratários a uma agenda
"progressista", e por aí vai. Mesmo que a classificação de Stone não
deva ser transposta irrefletidamente para uma realidade bem diferente da
estadunidense, como a brasileira, a ideia do conceito é útil em si
mesma.
Ilustração: Esculturas de George Segal.