A Suíça é um país encantador, com calendários de paisagens
bucólicas, floridas e/ou nevadas que fizeram felizes milhões de
brasileiros durante gerações, um recanto de paz onde as guerras não
entram, cujo lema (não oficial) é um manifesto pela solidariedade, a
famosa frase dos três mosqueteiros (que eram quatro) de Alexandre Dumas
Pai, "um por todos, todos por um", certo? Errado.
A Suíça é um país estremecido por uma vaga de intolerância que
ameaça projetá-la internacionalmente como um território ocupado por
políticas e propaganda de inspiração racista, ondas de xenofobia,
perseguições contra minorias étnicas e culturais, voltada para a defesa
de uma "pureza européia" como raramente se viu desde as sinistras
campanhas de arianismo dos anos 20 e 30 que levaram ao nazismo no mundo
germânico. Errado? Não, certo.
Infelizmente, certo. Mas felizmente não é toda a Suíça (assim como
não foi todo o mundo germânico que mergulhou na sandice nazista). Há
ainda quem manifeste indignação, perplexidade, repúdio diante do que
aconteceu.
E o que, afinal, aconteceu?
No domingo, 29 de novembro, houve um plebiscito na democrática
Suíça, onde tudo pode ser plebiscitado, desde que seja objeto de uma
petição com um certo número de assinaturas. O tema do plebiscito era se
a construção de minaretes (as torres com sacadas circulares, junto às
mesquitas muçulmanas, de onde o muezzim anuncia as preces) deveria ser
proibida em território suíço, ou não. Autoridades, religiosos de todas
as religiões, o Vaticano, militantes dos direitos civis, ecologistas,
até políticos conservadores e de direita se posicionaram contra a
proibição, a favor dos minaretes. Ademais, a população muçulmana na
Suíca é pequena (400 mil em 7,75 milhões, cerca de 5,1%) e, na maioria,
não provem de países árabes, mas da Turquia, da Albânia e da Bósnia; em
todo o país há apenas 4 minaretes.
As pesquisas de opinião davam uma confortável maioria para o "não".
Talvez isso tenha contribuído para afrouxar o ímpeto dos que defendiam
a liberdade para os minaretes e para todos os cultos religiosos. O fato
é que o "sim" venceu, com 57% dos votos, e mergulhou o país numa crise
de credibilidade e também de temor.
Crise de credibilidade: a Suíca deixou de ser aquela "terra de
tolerância" descrita no primeiro parágrafo desse "post". Aliás, já
vinha deixando de ser. Em campanhas eleitorais anteriores, um poster
racista, em que três ovelhinhas brancas chutavam uma negra para fora da
bandeira suíça, já chamara a atenção. Agora o poster principal da
campanha pró "sim", ou seja, contra os minaretes, mostrava uma mulher
com trajes muçulmanos, ao lado de minaretes negros sobre a bandeira
suíça, cuja forma (a das torres) se confundia com a de mísseis. Tão
ameaçador e intolerante era o poster, que ele chegou a ser proibido em
algumas cidades.
Crise de temor: teme-se agoras que haja represálias por parte dos
países de predominância muçulmana, não propriamente sob a forma temida
do terrorismo, mas sim sob a forma apavorante da retirada de
investimentos e de depósitos em bancos.
Segundo a revista Der Spiegel (artigo de Michel Soukup), por trás de
ambas as propagandas (a das ovelhinhas e a das torres/mísseis), está um
alemão residente na Suíça, Alexander Segart, de 46 anos, que se declara
um defensor ardoroso do cristianismo. Mas a campanha, cujo efeito na
Europa é temido e pode de fato ser ameaçador, parece ter um tipo de
apelo diverso do que o religioso. A sua base de propagação, também
manifesta em vídeos e outros meios da mídia (inclusive no Brasil)
difundidos pela internet, é uma suposta "islamização" da Europa e do
mundo. Essa "islamização" teria como armas uma taxa de crescimento
populacional maior entre os muçulmanos e uma militância religiosa e
cultural mais empenhada do que aquela dos "frouxos" cristãos e
ocidentais. Em tempos recentes uma acirrada polêmica marcou a licença
para a construção de uma grande mesquita em Colônia, na Alemanha, e um
dos argumentos brandidos pelos opositores era o de que a "cultura
muçulmana" não "pertence à Europa", seja lá que insensatez isso queira
traduzir. Insensatez? Sim, além de intolerância absurda, insensatez.
Por exemplo: não fossem os sábios muçulmanos, os europeus e outros
povos teriam "esquecido" quase todo o seu mundo da antigüidade grega.
Parlamentares e ativistas suíços estão se mobilizando para averiguar
a possibilidade de declarar o resultado do plebiscito inconstitucional,
além de pretenderem levar o caso à consideração do Parlamento e do
Tribunal da União Européia em Estrasburgo, numa medida, na verdade,
preventiva, já que a Suíça não faz parte da UE.
A adesão de movimentos de direita à campanha da proibição não
surpreendeu. O que trouxe mais mal estar à história toda foi a adesão
de grupos que se consideram "de esquerda" ou "militantes dos direitos
humanos", argumentando com sua preocupação diante da "posição da
mulher" nas culturas muçulmanas. Essa posição, disfarçada de
"progressismo", esconde na verdade um ranço neo-colonial, baseado na
idéia de que "como sou mais adiantando eu sei o que é melhor para
você". Uma coisa é debater posições autoritárias ou machistas
na cultura islâmica - aliás, em todas as culturas e sociedades. Outra é
sair proibindo, barrando, impedindo a liberdade de expressão (é disso
que se trata) em nome de que "nós" somos "o" modelo para o mundo, o
que no mínimo revela a arrogância de quem nào consegue se focar no
espelho.
Infelizmente, a proibição dos minaretes, como também aponta o artigo
do Der Spiegel, têm precedentes em outros tipos de proibição: na Arábia
Saudita torres de igrejas cristãs são proibidas, o que apenas prova que
a insensatez não tem fronteiras.