Mylena Fiori
Foto: Wilson Dias/ABr
"O Brasil tem tido posição mais moderada, é o governo mais pró-ocidental, não tem uma linguagem anti-imperialista, enquanto os outros países tem posição mais extremista em relação aos objetivos ocidentais", diz Boaventura. "A Europa obviamente pretende, com esta negociação, premiar a moderação brasileira e, talvez perversamente, isolar as versões mais extremistas. Nomeadamente a Venezuela", avalia em entrevista à Agência Brasil, entre as centenas de livros que ocupam cada centímetro quadrado de sua sala de trabalho em Coimbra.
"Estes são os jogos, as grandes manobras políticas globais que se jogam nestas cimeiras", afirma, em referência à primeira Cúpula Brasil-União Européia, que será realizada nesta quarta-feira, 4, em Lisboa, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros líderes europeus.
Boaventura destaca, porém, as limitações da diplomacia européia, por não poder se sobrepor aos interesses nacionais de cada um dos 27 países-membros. Também aposta na "lucidez" da política externa brasileira e de outros países do mundo. Por estas razões, não acredita no êxito da estratégia européia. "A Europa não está em condições de impor condições ao mundo. Acredito que esta parceria pode ser boa para a Europa para começar a ver outra realidade, outras pessoas, outras caras. A Europa tem que aprender muito, o retorno das caravelas ainda não aconteceu e é bom que aconteça agora".
Portugal assume a presidência rotativa da União Européia colocando o Brasil e a África entre suas prioridades de política externa. O mandato começa com a Cúpula Brasil-UE e termina, em dezembro, com outra cúpula, entre europeus e africanos. Quais os objetivos desta estratégia? Todos podem ganhar com isso?
Boaventura de Sousa Santos - Penso que fundamentalmente as duas cimeiras se justificam por razões distintas. Portugal é quem teve contatos políticos, culturais e econômicos, para o bem e para o mal, com Brasil e África. No meu entender, mais para o mal, porque foi um contato colonial. Mas foi de muitos séculos e, portanto, criou também algumas possibilidades de cooperação cultural. Portugal, que teve sempre esta fronteira muito flexível entre a Europa e o que está além da Europa, está bem posicionado para trazer estes temas à discussão. O problema é saber como é que vão ser tratados. E aí, claro, Portugal não tem poder para imprimir uma marca especial a estas negociações porque, fundamentalmente, o que está em jogo é a negociação econômica e o que fala mais alto são os números, os interesses no comércio. Portugal, aí, tem uma posição subordinada.
Por que o interesse europeu de aprofundar o diálogo com o Brasil?
Boaventura - O Brasil é um fruto apetecido para a Europa por duas razões. Em primeiro lugar, porque é uma potência regional e também inter-regional, devido a suas interações com Índia e África do Sul. A Europa procura adensar seu intercâmbio com o Brasil fundamentalmente no plano econômico para procurar um tratado comercial bilateral no momento em que o comércio global está bloqueado. Isto é muito semelhante ao que os Estados Unidos têm feito na América Latina depois que falhou a Alca [Área de Livre Comércio das Américas]. Há também outra coisa na agenda no plano econômico, que é tentar que o Brasil contribua para o desbloqueamento do comércio internacional. Mas a política externa do Brasil tem sido muito lúcida no sentido de mostrar que se não houver cedências importantes da União Européia e dos Estados Unidos, estes países não servem para o Brasil.
E qual a outra razão?
Boaventura - A outra razão tem a ver com os aspectos políticos. O Brasil tem uma posição geoestratégica nas mudanças políticas que têm ocorrido no continente sul-americano. Vários governos foram democraticamente eleitos com um programa que procura pôr fim a uma ordem internacional que consideram injusta e imperialista, porque permite a exploração desenfreada dos seus recursos naturais e de suas riquezas enquanto a esmagadora maioria das populações vive na miséria e na pobreza. Durante muitos séculos suas riquezas foram sendo saqueadas e, neste momento, estes povos disseram ponto final de alguma maneira. É assim que devemos entender a posição de [Nestor] Kirchner [presidente argentino] quando decidiu reduzir unilateralmente parte da dívida externa. É assim também na Bolívia e na Venezuela, quando decidem nacionalizar o petróleo e o gás. Neste domínio, a filosofia política do governo brasileiro pretende se aproximar da filosofia política da Europa, do modelo social europeu, de tentar alta competitividade e alguma proteção social. O Brasil tem tido uma posição mais moderada, é o governo mais pró-ocidental, não tem uma linguagem anti-imperialista.
E a estratégia pode funcionar?
Boaventura - Não penso que neste aspecto a cimeira vá ter um grande êxito, precisamente porque o Brasil tem uma política externa muito lúcida, assentada na idéia de que o Brasil tem suas opções políticas, que são diferentes da Bolívia e da Venezuela, mas tem solidariedade continental com estas opções políticas porque todas elas, no seu conjunto, contribuem para um objetivo comum, que é melhorar as condições de vidas das populações excluídas. Portanto, penso que não vai ser possível, através do Brasil, isolar a Bolívia ou a Venezuela. O presidente Lula já deu mais do que sinais de que não pretende isso.
Durante o mandato português, também estão previstas cimeiras com outras grandes economias consideradas emergentes, como Rússia e Índia... O jogo é o mesmo?
Boaventura - Todas estas cimeiras têm essa característica: adensar o comércio bilateral quando o comércio global, na Organização Mundial do Comércio, está bloqueado. O que interessa sempre, do ponto de vista da Europa, é fundamentalmente os negócios, não é uma visão política estratégica alternativa aos Estados Unidos. Vejo com bastante distância estas cimeiras. Sou europeu, não eurocêntrico, e procuro me colocar sempre na posição dos outros países e das outras regiões diante da Europa. E se eles forem lúcidos, sabem que não há muito mais do que isto em jogo neste momento.