Mas o que via o operário
Vinícius de Moraes (trecho do poema O operário em construção)
Hoje me recuso a ser pautada pela mídia gorda. Hoje quero dar um tempo nas leituras das Vejas e Épocas, não quero fazer referência a nada que vi na TV Globo, nem mesmo ao aberrante programa do Jô Soares em que ele vomita preconceitos raciais e de gênero ao comentar a vida sexual das mulheres angolanas. Hoje quero falar de um tipo de gente invisível para esses veículos de desinformação, mas que fazem verdadeiramente esse país no que ele tem de melhor. Tipo de gente que é a maioria do povo brasileiro.
Num bar popular em Fortaleza, ouvindo música brega e bebendo cerveja com amigos, conheci seu Benedito, Bené para os mais chegados. Única mulher no ambiente masculino, no meio de comentários sobre o resultado do jogo do Fortaleza e sobre o DVD pirata de um suposto filme pornô estrelado por Juliana Paes, puxei conversa com o senhor sorridente que bebia tranqüilamente sua cachacinha.
Seu Bené é negro. Seus 55 anos são somados a uma vida sofrida que lhe confere uma aparência de mais idade. Hoje seu Bené está desempregado. Como ele mesmo diz: “quem vai dar emprego para velho?”. Vive fazendo pequenos favores para a vizinhança, que em troca lhe dá comida e apoio. Sua moradia é a calçada do bar ou do Lava-jato em frente.
Quando jovem, seu Bené foi para o Sudeste, como tantos nordestinos, atraído pelas promessas do “milagre brasileiro” produzido pela ditadura civil-militar. “Milagre” que combinava crescimento econômico, superexploração da classe trabalhadora e repressão brutal. Uma das expressões do “milagre” foram as obras faraônicas, importantes para propagandear o Brasil grande e para levar a cifras astronômicas as verbas destinadas às empreiteiras que se locupletavam com dinheiro público. Seu Bené trabalhou em duas delas: a construção da Rodovia do Aço e a Ponte Rio-Niterói. Nesta última escapou da morte por pouco, pois faltou ao trabalho no dia em que um acidente levou a vida de oito companheiros de sua equipe.
Findo o “milagre” artificialmente produzido, depois de muitas dificuldades em arrumar emprego, resolveu voltar ao Ceará. Não tinha dinheiro para a passagem e foi literalmente a pé até Mossoró, Rio Grande do Norte, onde conseguiu sua primeira carona. Seu Bené buscava no seu estado natal o apoio de um tipo de solidariedade que, para os nordestinos, é raro de encontrar na cidade grande. “Em Fortaleza pelo menos não queimam índios nas ruas e ninguém me deixa passar necessidade”.
Seu Bené casou, mas disse que foi porque a mulher ficou grávida, pois, espírito aventureiro, não queria “se amarrar”. O casamento terminou, ficaram duas filhas que estão hoje “encaminhadas na vida”. A mais velha é enfermeira chefe de um hospital de Fortaleza e a segunda prestará vestibular este ano para Direito. Com lágrimas nos olhos, seu Bené disse que se afastou das meninas, pois se não tinha condições de ajudá-las, também não queria atrapalhar as suas vidas e se tornar um peso para a família.
Perguntei ao seu Bené se ele, que tanto tinha trabalhado, recebia aposentadoria e ele respondeu que não. Trabalhou sem carteira assinada boa parte de sua vida e agora tinha de esperar ter 60 anos para tentar uma aposentadoria por idade. Mas não tinha muita esperança de conseguir.
Chegada a hora de ir embora, seu Bené se despediu de mim dizendo que tinha gostado muito de conversar comigo. Elogiou meu português correto e disse que sentia falta de conversar com quem falava assim e podia compreender o contexto histórico de sua trajetória de vida, entendendo o seu sentido. Orgulhoso de sua formação, seu Bené volta e meia afirmava que tinha profissão. Esse mesmo trabalho que, organizado sob a lógica da expropriação capitalista, era fonte de sofrimento, também marcava uma identidade positiva enquanto atividade autocriadora.
Fui para casa pensando como as políticas de extermínio que hoje são assumidas oficialmente pelo governo do meu estado são, na verdade, a face mais explícita de um sistema que é cruel por natureza. O capitalismo é contra a vida humana, animaliza os seres humanos ao condená-los a trabalhar para garantir sua sobrevivência imediata e não para a sua autoemancipação. O brilho que encontrei nos olhos de seu Bené enquanto ele me narrava sua vida é expressão de potencialidade criativa, de energia transformadora, de desejo de felicidade e beleza. A força desse brilho vem da certeza de poder construir o mundo com suas próprias mãos. No entanto, seus limites são impostos por um modo de produção que torna o trabalho escravidão e fonte de sofrimento, estranho ao próprio trabalhador.
Gilmar Mauro, uma das lideranças mais importantes do MST, numa belíssima fala na I Conferência Vozes de Nossa América, realizada recentemente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, contou sobre seus sentimentos contraditórios quando passava pela avenida Paulista. Se, por um lado, sentia um grande desespero ao ver naquelas construções a materialização da força do capital, por outro, se enchia de esperança ao perceber que tudo aquilo tinha sido erguido pela mão da classe trabalhadora. E, se a classe trabalhadora foi capaz de construir tudo aquilo, ela também seria capaz de por abaixo a ordem do capital e reconstruir um outro mundo, com base em valores humanos.
Pensei nisso, e também em Vinícius, em Brecht e no dia em que gente como seu Bené começar a dizer não.
Créditos:ObservatórioDaIndustriaCultural