sábado, 11 de outubro de 2008

Miriam, a louca


por Miguel do Rosário, no Óleo do Diabo


Durante toda minha vida convivi com o medo da loucura. É uma coisa de família, uma paranóia horrível. No entanto, nunca surtei, nunca perdi um milímetro de minha lucidez. Devo ter perdido alguns milhões de neurônios com bebedeiras, ok, mas não faz tanta diferença para o conjunto de aproximadamente 14 bilhões de neurônios com que nasci, segundo a ciência. Convenci-me, por fim, que não era louco, nunca fui, embora não possa assegurar que nunca serei. Em momentos de depressão, todavia, a paranóia insiste em voltar. Hoje descobri quão ingênuo tenho sido. Doida é a Miriam Leitão. E se uma louca como ela pode ser a principal colunista econômica do país, eu, se eu for louco (e o Frank Sinatra dizia que todos o somos), também posso ter minhas ambições. Leiam a matéria abaixo:

O peso da máxi

Já é maxidesvalorização. De 26 moedas emergentes, o real foi que mais perdeu: 35%. Desde agosto, se a conta do PIB for feita em dólar, é como se o Brasil tivesse perdido US$ 309 bi. Parte é efeito dos derivativos dos exportadores, um problema que ninguém sabe a dimensão. Um exportador me disse o seguinte: “O BC pede serenidade como o capitão do Titanic mandava a orquestra tocar."

O Banco Central fez ontem várias operações no mercado de câmbio e não reduziu a pressão do dólar. Quanto mais o dólar sobe, mais os exportadores que fizeram operações especulativas com câmbio perdem dinheiro.

— O exportador estava apostando a favor da moeda brasileira. Quem está ganhando dinheiro são os bancos estrangeiros. Além disso, os exportadores não estão conseguindo se financiar para produzir; a exportação vai parar — disse o presidente de uma das maiores empresas brasileiras.

O BC, segundo me garantiu ontem um dos seus dirigentes, não tem qualquer compromisso em defender a queda do dólar. Não está fazendo leilões para evitar que o dólar suba, mas sim para suprir a falta das linhas de crédito internacionais para o comércio. O problema é que não tem adiantado.

Nathan Blanche, especialista em câmbio, acha que o BC tem que vender dólar líquido, em operações direcionadas aos exportadores. Com mais oferta, o dólar pode cair, reduzindo a cotação e o prejuízo das empresas.


Leram? Acreditam nisso? Durante seis anos, a senhora PIG vociferou contra o dólar baixo, dizendo que as exportações brasileiras seriam fortemente prejudicadas. Fazia, sistematicamente, previsões catastróficas para a balança comercial, que, segundo ela, não resistiria ao câmbio desfavorável. Os números sempre contradiziam suas previsões. O Brasil ampliou e ainda vem ampliando suas vendas externas mesmo com moeda forte. A razão é a enorme diversificação de nossos produtos, e a melhora da qualidade deles. Em muitos setores, como carnes, autopeças e aviões, produto brasileiro é sinônimo de excelência e o mundo aceita pagar um pouco mais caro.

Mas, como todos sabem, exportadores ganham em dólares. Quando o dólar cai, portanto, eles perdem. Eles têm resistido, nos últimos tempos, através do aumento da produtividade e redução de custo. Agora, com essa disparada do dólar, a senhora PIG quer nos convencer, na contra-mão de tudo que afirmou por anos a fio, que os exportadores terão prejuízo com a alta do dólar e cita empresários que teriam "especulado" com o câmbio.

Ora, senhora PIG, no mercado cambial existem diversas ferramentas para evitar riscos com o câmbio. São os chamados hedge, onde você faz um seguro para evitar sustos com dólar baixo ou alto. Os exportadores prudentes fazem hedge, os especuladores especulam. Há séculos que exportadores brasileiros que especulam com o câmbio acabam quebrando uma hora ou outra. Com isso, surgiu uma classe de empresários que prefere dispensar o lucro fácil e arriscado e fazer negócios de maneira mais segura e estável. Não se trata apenas de capitalismo, mas da própria vida. De valores. Concorrência. Pegue dois empresários que competem no mercado de exportação de um determinado produto. Um deles especula e procura, com o lucro, prejudicar seu concorrente, que não especula e, por isso, não pode oferecer os descontos que o outro oferece aos clientes. Quando ocorre uma crise cambial que dá prejuízo ao especulador, há uma justiça. No fundo de todo movimento, há uma justiça, uma busca pelo equilíbrio. A senhora quer defender os especuladores? E ainda afirmar que os exportadores estão perdendo dinheiro com o dólar alto? Ora, o dólar está pouco mais de R$ 2. Há seis anos era R$ 4!!!! O exportador que não especulou, ao contrário, poderá ganhar muito mais com o dólar alto, pela razão óbvia de que o preço de seu produto é cotado em dólar.

A ideologia vendida por nossa mídia é estarrecedora. Dinheiro para melhorar salários e assistência social é considerado "aumento de gastos". Mas sempre que o governo acena com empréstimos paternalistas (ou mesmo doações, sob o título de pacote anti-crise sistêmica), os mesmos colunistas e editorialistas reagem com indisfarçável entusiasmo.

E ontem (ou anteontem) Arnaldo Jabor comete mais uma fraude jornalística. Diz que o governo Lula não se preparou para a atual crise financeira americana. Naturalmente, sob patrocínio da família Marinha, usa o palanque para fazer propaganda ideológica do PSDB e do governo FHC. O país, sob a tutela de FHC, acumulou uma trilionária dívida pública externa e interna quase inteiramente atrelada ao dólar. Se a crise fosse hoje, o Brasil, literalmente, teria sua espinha dorsal rompida. Lula não só pagou inteiramente a nossa dívida externa, como desdolarizou a dívida pública interna. O que temos hoje são reservas internacionais em dólar, de forma que, com a alta da moeda americana, nossas reservas dispararam. Ou seja, estamos com mais dinheiro hoje do que antes da crise. A bolsa de SP despencou, mas bolsa é para isso mesmo, para subir e descer.

Sou contra qualquer ajuda a bancos, pequenos, médios ou grandes. Eles que se virem sozinhos. Se é para haver ajuda, então que se estatize ou se transfira ações e carteiras de clientes para o Banco do Brasil. É um absurdo que, num país onde existem ainda milhões de pessoas se alimentando mal e onde o principal programa assistencial, o Bolsa Família, distribui um valor irrisório para as famílias (máximo de 120 reais), de R$ 17 a R$ 107, uma ninharia tão acidamente criticada pelos segmentos conservadores, os mesmos segmentos agora venham defender ajuda para especuladores que se deram mal na bolsa de valores.

O dinheiro da bolsa não desaparece. Os valores migram para outros segmentos: para imóveis, terras, ouro, indústrias de base, para títulos públicos (ou seja para os governos). O estouro da bolha é sempre benéfico para as economias reais. Os fundamentos da economia global não são apostas financeiras, mas a produção de tecnologia, aço, soja, petróleo, alimentos, autopeças. A crise financeira global tem uma razão de ser e será benéfica para desmistificar o poder dos mercados. A civilização não pode depender de mercados de risco, não pode depender de bolsa. Precisamos de governos fortes. Precisamos de organizações internacionais fortes que não estimulem a especulação e sim os fundamentos de cada economia.

O Brasil seguramente sairá mais fortalecido dessa crise, porque a sua economia é diversificada e possui um mercado interno suficiente para viver autonomamente. Se o mundo inteiro acabasse e só restasse o Brasil, teríamos alimentos, petróleo, água, minério de ferro, suficientes para toda a eternidade. Teríamos um déficit de tecnologia que a necessidade nos obrigaria a superar rapidamente. A civilização humana evolui aos trancos, superando dificuldades. A crise financeira americana, para começo de conversa, representa um tremendo desgaste ideológico para o tipo de capitalismo lobbista, mafioso, privatista e concentrador, um capitalismo aqui defendido pelo PSDB e DEM, que produz monstros como Daniel Dantas. No capitalismo neo-con, bancos e especuladores têm cada vez mais liberdades e o cidadão comum cada vez menos. É uma fraude ideológica, assim como foi o governo FHC. Falavam em reduzir impostos, mas foram os tucanos, assim como Bush nos EUA, que patrocinaram o maior aumento da carga tributária da história recente do Brasil. A carga tributária brasileira passou de 25,09% em 1993, último ano do governo anterior à FHC, para 35,53% em 2002, último ano da gestão tucana. Um aumento de 42%! Já sob Lula, a carga tributária passou dos já citados 35,53% em 2002 para 37,37% em 2005 (último ano apurado pela Receita), aumento de 5%. Quem aumenta mais imposto?

Bush faz a mesma coisa. Prega o Estado mínimo e redução de gasto, e patrocinou o maior aumento de gastos públicos da história norte-americana, com a guerra contra o terror, e a guerra contra o Iraque. FHC fez aqui também. Os tucanos falam em redução de gastos públicos, mas o Estado nunca gastou tanto como em sua gestão - com a diferença que não gastavam com melhores salários, programas sociais, programas industriais, estradas, hidrelétricas, prospecção de petróleo no fundo do mar e financiamento à agricultura familiar, como faz Lula. Não, o governo gastava tudo com juros de dívida pública, doação aos bancos e para cobrir o rombo financeiro de sua política cambial incompetente. O neo-liberalismo é um capitalismo para enganar trouxas, leia-se classe média, que nunca sofreu tanto como sob sua batuta. A única vantagem que o neo-liberalismo proporciona à classe média é que ele ferra tanto mas tanto os pobres, que esses não têm condições de disputar com ela o mercado de trabalho, sobretudo as vagas no serviço público. Por outro lado, o neo-liberalismo não respeita o serviço público - veja a humilhação que o governo de São Paulo impõe a seus servidores, pagando-lhes os piores salários do país, mesmo sendo o Estado mais rico.

Muito boa essa resposta...

Carta aberta ao Wianey Carlet!

O jornalista Wianey Carlet, em uma de suas crônicas esportivas, pediu cadeia para os torcedores colorados que fizerem foguetório no hotel em que se hospedará o Boca Jrs, por ocasião do jogo da Sul-americana contra o INTER.
O colorado Ronald Miorin dirigiu essa carta a ele:

"Prezado Jornalista,
Tenho acompanhado, com atenção, tuas publicações a respeito da iniciativa de alguns torcedores colorados de arrecadar dinheiro para adquirir fogos de artifício que serão usados para perturbar o sono dos jogadores do Boca Juniors na véspera da partida contra o Internacional. Sou obrigado a confessar: fico triste ao ler sobre a tua pretensa indignação e mais triste ainda ao ver teu ridículo pedido de providências às autoridades policiais. Sim... fico triste... porque a hipocrisia me entristece, e a ignorância me entristece muito mais...Mas vamos ao que interessa:
Em primeiro lugar (e te digo como advogado que sou), perturbar o sossego alheio com fogos de artifício não é crime, nem contravenção. A contravenção só existe (e esse É o texto da lei de 1940) se a perturbação é feita no exercício de atividade profissional, com gritos e algazarra ou com emprego de aparelhos sonoros ou instrumentos musicais. Goste tu, ou não, atirar foguetes não é proibido pelas leis brasileiras.
Em segundo lugar (e agora te falo como torcedor), essas práticas fazem parte da cultura do futebol. Acordar o adversário na véspera do jogo, atrasar a entrada do time em campo, vaiar o toque de bola do time visitante, demorar a reposição da bola quando o time da casa está ganhando e todas as outras pequenas falcatruas futebolísticas fazem parte da cultura do futebol. Desde que não sejam violentas (e me parece que o barulho incomoda, mas não agride, nem machuca), essas condutas são socialmente aceitas.Te digo mais. É tudo isso que transforma o futebol (de simples esporte que é) nessa imensa emoção mundial. Emoção, aliás, que paga o teu salário.
"É verdade! Não é o Inter, o Grêmio, o Clemer, o Vítor, o Ronaldinho Gaúcho, o Fernandão ou o Dunga que te sustentam, mas os milhares de torcedores do Inter e do Grêmio que, todos os dias, compram o jornal em que tu escreves besteiras e escutam a rádio onde tu destilas tuas fracas opiniões. E só fazem isso porque o futebol emociona, alegra e perturba. É claro que tu sabes disso. O jornal em que tu escreves reserva uma página para as notícias mundiais. Uma página diária para tratar da fome, das guerras, das eleições, das melhores e das piores coisas que acontecem no mundo inteiro. Para o futebol, esse teu mesmo jornal dedica cinco ou seis páginas. Há um analista de economia e dez "comentaristas de futebol" como tu... pessoas que ganham salários para opinar se o Vítor saiu mal do gol, se o D'Alessandro é melhor que o Fernandão ou porque o Dunga deve cair ou ser mantido no comando da seleção. Acho que vais concordar comigo que precisa muito pouca inteligência para opinar sobre um assunto desses. Mas apesar de saberes tão pouco, tu ganhas bem, és reconhecido e, eventualmente, até respeitado. E tudo porque tratas do futebol.
Vamos ser sinceros: no dia em que o futebol perder o encanto, ninguém mais vai comprar Zero Hora, e tu vais ter que trabalhar. Então, aceite o conselho do Gordo: arrume outro assunto para preencher tua coluna... deixe o futebol ser como sempre foi... estás velho demais para carregar sacos no porto ou catar latas para reciclagem.
Do seu leitor e ouvinte, Ronald "Gordo" Miorin.
PS: Se tiveres oportunidade, peça ao Coronel Mendes explicar porque há tão pouco policialmento ostensivo em Porto Alegre, porque furtam e roubam tantos carros e porque faltaram brigadianos para policiar as eleições de São Francisco de Assis, se ele tem tempo e recursos para se preocupar com torcedores e foguetes. "

Silvério Pessoa - Bate O Mancá: O Povo dos Canaviais (2000)




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Créditos: UmQueTenha

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Ahmad Jamal

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Ahmad Jamal - Live at the Pershing - But Not For Me (1958)
MP3 / 320kbps / RS.com: 63mb / Cover
Gênero: jazz, swing, mainstream

uploader: redbhiku

Faixas:
1. But Not For Me
2. Surrey With The Fringe On Top
3. Moonlight In Vermont
4. Put Another Nickel In Music Music Music
5. There Is No Greater Love
6. Poinciana
7. Woody ‘n’ You
8. What’s New

A mídia que balança o berço

"Numa época em que se fala muito de ecologia, é preciso que nos conscientizemos de que proteger nossos filhos do risco de desenvolver uma forma de dependência em relação à tela luminosa é uma forma de ecologia do espírito"

Maria Helena Masquetti(diplo-Br)


Nestes tempos de crianças expostas a tantos tipos de mídia, o velho provérbio “a mão que balança o berço governa o mundo” propicia uma reflexão sobre quem é realmente a maior autoridade na estrutura familiar. Tomando-se por autoridade aquele que provê a manutenção da família, supõe-se que ambos, marido e mulher, dividam entre si esse papel de governar a educação dos filhos. No entanto, cada vez mais, as crianças expressam valores e anseios contrários aos da educação recebida em casa e na escola. O fato é que elas dependem dos exemplos adultos para a construção de sua identidade. E, por acreditarem no que ouvem ou vêem, em sua lógica infantil, passam a ver a mídia [1] como outra autoridade dentro de casa.

Por meio dos sites, jogos eletrônicos, revistas, mensagens comerciais e programas inadequados, a mídia propõe-se a satisfazer, de várias formas, os desejos infantis que, pela manobra persuasiva, converte em necessidades. Expresso em números (Interscience, 2003), o resultado desse bombardeio de mensagens e apelos comerciais é de 80% de influência das crianças nas compras da família. Isso concorre para diminuir a autoridade dos pais perante os filhos. A propósito, há alguns meses, muita gente viu um comercial de automóvel equipado com um aparelho de DVD, insinuando que a atuação dos pais pode ser dispensável na vida dos filhos mediante a aquisição de determinada tecnologia. A mensagem mostrava dois carros na estrada. Num deles, os pais se desesperavam por não saber como conter as rusgas entre os filhos pequenos enquanto, no outro, equipado com o aparelho DVD, o clima era de total tranqüilidade pela atenção das crianças presa à tela.

O que melhor explica o fato dos filhos aderirem tão mais prontamente a tantas mensagens da mídia e desdenhar os ensinamentos dos pais é a permissividade expressa por ela das duas formas mais sedutoras para a criança: a ausência do “não”, palavrinha incômoda porém decisiva para a demarcação dos limites imprescindíveis à socialização; e a reverência irrestrita às vontades das crianças que só faz ampliar nelas a fantasia de poder ter tudo.

Mídia: uma babá aparentemente dedicada, afetuosa e complacente demais com os desejos infantis

Um pequeno recorte na trama do filme de Curtis Hanson: “A Mão que balança o berço” – título, aliás, inspirado no citado provérbio, como explicita a fala de um de seus protagonistas –, ilustra essa atração dos pequenos por adultos complacentes demais com os desejos infantis. A trama gira em torno de uma babá aparentemente dedicada e afetuosa que começa a se apropriar das duas crianças de um jovem casal de forma lenta e sedutora. Valendo-se de sua maior disponibilidade de tempo junto aos pequenos, a babá permite à garotinha mais velha – cerca de cinco anos – assistir a um gênero de filme vetado à ela pelos pais em função de sua pouca idade. Como é de se esperar, a garotinha logo entende a babá como mais amorosa que seus pais.

De modo geral, tal cumplicidade com os caprichos infantis está presente em diversos tipos de mídia dirigidos às crianças. E a tendência é antecipar-se, cada vez mais, essa interferência na educação delas. Por isso, quem tiver hoje nos braços seu recém-nascido já não pode deixar para mais tarde a preocupação com os impactos da comunicação midiática na formação dos pequenos. Ela já está do lado do berço na forma dos programas para bebês. Se nos faltam ainda dados de pesquisa para saber o que acontecerá, daqui a alguns anos, com os bebês “educados” via TV, não faltam experiências e estudos sobre a formação do psiquismo. Um bebê não tem estrutura mental para saber sequer quem é e o que é; não tem idéia de suas dimensões físicas; desconhece o mundo à sua volta e, sobretudo, é fusionado com sua mãe, tendo-a como uma extensão de si mesmo. Como concluiu o psicanalista e pediatra Donald Winnicott, um dos mais brilhantes estudiosos do desenvolvimento infantil, “não existe tal coisa chamada bebê, significando com isso que se decidirmos descrever um bebê, encontrar-nos-emos descrevendo um bebê e alguém. Um bebê não pode existir sozinho, sendo essencialmente parte de uma relação”.

Alheio aos danos que pode trazer ao psiquismo infantil, o objetivo do marketing é implantar o quanto antes na criança a necessidade de consumir

Sendo assim, o que pensar sobre a relação de um bebê com um aparelho de televisão que fala e age, sem estabelecer um contato real com ele? Uma das primeiras formas de contato da criança com o mundo é a identificação projetiva, mecanismo psíquico por meio do qual ela projeta aspectos de si mesma sobre o outro enquanto sente como seus determinados aspectos deste outro em virtude do estado de fusionamento em que se encontra. Sendo assim, é fundamental refletir sobre o quê um bebê irá projetar na caixa de uma TV (sem sua mãe dentro), com uma seqüência de imagens ainda sem sentido ou valor para ele? E, pior ainda, que aspectos ele tomará do aparelho e da produção eletrônica como partes de si mesmo?

Se não podemos prever o futuro, olhemos o que já acontece, no presente, com tantas crianças que nos rodeiam, no cotidiano ou na prática clínica: natural nos primeiros anos de vida, o narcisismo (amor a si mesmo) e a onipotência (certeza de poder ser e ter tudo) andam durando além do previsto quando, até por volta dos seis anos, deveriam ter se convertido na capacidade de se preocupar com o outro. O que estará estimulando, então, nas crianças, o prolongamento dessas características? Quem pensou em interesse comercial, acertou no x da questão que envolve hoje a preocupação com os impactos da publicidade e de determinados tipos de entretenimento na formação das crianças. Alheio aos danos que pode trazer ao psiquismo infantil, o objetivo do marketing é implantar o quanto antes na criança a necessidade de consumir. Como diz Suzan Linn, doutora em Educação e professora de Psiquiatria da Escola de Medicina de Harvard, em seu livro Crianças do consumo – A Infância Roubada, “quando nos referimos a produtos especificamente projetados para crianças “do berço à universidade” pode ser o máximo que alguém possa almejar, mas muitos fabricantes buscam lealdade à marca que dure do berço ao túmulo”.

Na reportagem “A perigosa relação do bebê com a TV”, do Jornal Observatório da Imprensa – a jornalista Leneide Duarte-Plon destaca um dos trechos do manifesto assinado pelos cientistas franceses Pierre Delion e Bernard Golse publicado por este jornal: "Numa época em que se fala muito de ecologia, é preciso que nos conscientizemos de que proteger nossos filhos do risco de desenvolver uma forma de dependência em relação à tela luminosa é uma forma de ecologia do espírito. Por isso, é urgente que nos mobilizemos para a criação de uma moratória que proíba a existência desses canais, antes que a ciência possa conhecer melhor a relação da criança pequena com a tela".

Pelo tanto que evoluímos, chega a parecer irreal que tenhamos hoje que nos revolver em argumentos para impedir que se continue penetrando um terreno tão frágil e misterioso como a psique de um bebê. E isso sob a proposta, desculpe, descabida de ampliar-lhe a inteligência e a criatividade como afirmam alguns argumentos de vendas desses programas para os pequenos. Nascidos em berço de ouro ou em cestos pobres de palha, as perspectivas dentro de cada bebê estão intactas nessa fase do broto e não demandam outros cuidados além dos prescritos pela natureza. Os mais caros entre eles são o calor do seio materno, o alimento saudável, as vozes amorosas e a mão protetora que governa seu passo a passo até o contato pleno com a vida real. Se há tanta preocupação com o desenvolvimento dos bebês, que ela seja convertida, então, para a melhora social do “berço” que os abrigará ao nascer. Nada substitui o amor e os efeitos que só ele pode produzir na construção de um novo indivíduo. Recordando uma vez mais a sabedoria e prudência de Winnicott: “Ainda temos muito que aprender sobre os primeiros tempos de uma criança e talvez só as mães possam dizer o que queremos saber”.

Mais:

Maria Helena Masquetti assina, no Caderno Brasil, a coluna Consumo & Direitos. Edição anterior:

Sapatos de pano contra o vazio de afetos
Como na antiga lenda, vieram as pomposas estratégias do marketing, em suas carruagens douradas de sedução, propondo-se a oferecer às crianças um mundo de maravilhas e tratando de atirar ao fogo as criações. Mas atenção: há meios de construir outra infância

Um tapinha não dói em quem se acostumou com a dor
Carinho é gostoso, tapa é ruim. De quantas pesquisas necessitamos para ter certeza disso? Lembrando Belchior em uma outra música, não precisamos que nos digam de que lado nasce o sol porque bate lá nosso coração — e a esperança de um futuro melhor para nossas crianças

Em liquidação, a auto-estima
No Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, vale notar que as crianças tornaram-se o público-alvo preferido da publicidade. Ainda em formação, são bombardeadas com a idéia de que os prazeres se compram — o que prolonga a imaturidade, acentua frustrações e produz, no futuro, adultos infantilizados



[1] A mídia é, muitas vezes, legitimada pela audiência que os pais lhe presta

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Equador apresenta proposta de Fundo Monetário alternativo


A criação de um Fundo Monetário Alternativo e de uma rede de bancos centrais foram as propostas apresentadas nesta quarta-feira (8) pelo ministro da Economia do Equador, Pedro Páez, para fazer frente à crise econômica. As propostas do ministro foram feitas durante a Conferência Internacional de Economia Política que se realiza na cidade venezuelana de Caracas e na qual participam economistas de mais de 20 nações.


O ministro destacou que "podemos começar a construir a soberania energética, temos possibilidades de recursos suficientes com uma redefinição da divisão internacional de trabalho".


Ele acrescentou que a concepção de uma nova estrutura financeira é a solução para iniciar a soberania econômica e energética dos povos latino-americanos. "Devemos redefinir propostas específicas, baseadas nas necessidades dos povos, garantindo os direitos humanos e as necessidades básicas, com alternativas como a Alba e Unasul", disse.


O ministro equatoriano insistiu em que "podemos construir a soberania energética, temos possibilidades de recursos suficientes com uma redefinição da divisão internacional do trabalho, uma nova relação entre o aparato financeiro e produtivo".


Paez explicou que a economia deverá se basear em três pilares fundamentais. O primeiro deles, é a construção de uma nova rede para avançar na consecução de elementos que permitam a soberania alimentaria, energética, pesquisa e desenvolvimento de saberes tradicionais.


O segundo se baseia na construção de uma rede de bancos centrais que superem a visão neoliberal do passado, enfocada nos elementos chave do desenvolvimento a partir dos territórios.


"Tudo isto tendo como coração um Fundo Monetário Alternativo ao Fundo Monetário Internacional (FMI) que ligue as áreas de estabilização macro econômica que estabelecem as possibilidades de sub imperialismo no cenário da integração dos povos", destacou.


Fonte: Agência Adital

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Abertas as inscrições para o FSM 2009










Já estão abertas as inscrições para atividades e organizações que desejem participar do Fórum Social Mundial 2009, que será realizado de 27 de janeiro a 1° de fevereiro, em Belém, no Pará. As inscrições podem ser feitas pelo site do FSM 2009. Numa segunda etapa, serão abertas as inscrições individuais, para atividades culturais e imprensa. Apenas organizações poderão inscrever atividades que farão parte da programação do Fórum. Todas as atividades inscritas serão autogestionadas, ou seja, as organizações proponentes devem se encarregar de definir o formato das mesmas, nomes de palestrantes e outras questões. A organização do FSM garantirá o local para a realização da atividade e também se responsabiliza pela divulgação da mesma no site do fórum.

O território onde serão realizadas as atividades do Fórum é composto pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pela Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), uma área verde margeada pelo rio Guamá e pela floresta. Alguns pontos da programação já estão definidos. A marcha de abertura ocorrerá na tarde do dia 27 de janeiro. O dia 28 será o Dia da Pan-Amazônia: 500 anos de resistência, conquistas e perspectivas afro-indígena e popular. Essa data será dedicada a levar ao mundo as vozes da Amazônia, por meio de diversas atividades, como testemunhos, conferências, celebrações e mostras culturais. De 29 a 31 de janeiro serão realizadas as demais atividades auto-gestionadas. Por fim, no dia 1° de fevereiro, ocorrerá o encerramento do FSM 2009, com ações descentralizadas e auto-gestionadas, onde devem ser apresentados os acordos, declarações e alianças construídos no decorrer do evento. Para maiores informações clique AQUI.

Mestre Salustiano - Sonho da Rabeca - 1998


Este talvez seja uma das postagens mais importante do blog, Grande Meste Salu, nos deixou em corpo, ams sempre lembraremos dele como um genio, que da simplicidade, ficou uma grande marca, Salve, Salve, Mestre Salustiano!!!! Deleitem-se!!!!
Créditos: Lado B
Saravá!!!

Manoel Salustiano Soares, conhecido como Mestre Salustiano ou Mestre Salu nasceu em Aliança, zona da mata norte de Pernambuco, no dia 12 de novembro de 1945.
Seu pai, João Salustiano, era um tocador de rabeca e foi quem o ensinou a fazer e a usar o instrumento. Mestre Salu usa praíba, imburana, pinho, mulungu e cardeiro para fazer suas rabecas, pois segundo ele são as melhores madeiras para produzir o som.
Fundou o Maracatu Piaba de Ouro, em 1997, tendo participado com o grupo do festival de Cultura Caribeña, em Cuba. É o comandante do cavalo-marinho Boi Matuto, que criou em 1968, e do Mamulengo Alegre.
Mestre Salustiano também é um artesão. Além das rabecas é ele quem confecciona os bichos do bumba-meu-boi, cavalo, boi, burra; as máscaras do cavalo-marinho, feitas de couro de bode ou de boi e os mamulengos de mulungu.
É um dos grandes responsáveis pela preservação da ciranda, do pastoril, do coco, do maracatu, do caboclinho, do mamulengo, do forró, do improviso da viola e de outros folguedos populares do folclore nordestino.
Mestre Salustiano faleceu aos 62 anos, na cidade do Recife, no dia 31 de agosto de 2008.
Uma enorme perda pra nossa musica, por isso, baixem e deleitem-se, isso é uma ordem!!!!

O abalo dos muros




Frei Betto

Em 2009 faz 20 anos a queda do Muro de Berlim, símbolo da bipolaridade do mundo dividido em dois sistemas: capitalista e socialista. Agora, assistimos ao declínio de Wall Street (Rua do Muro), na qual se concentram as sedes dos maiores bancos e instituições financeiras.

O muro que dá nome à rua de Nova York foi erguido pelos holandeses em 1652 e derrubado pelos ingleses em 1699. New Amsterdam deu lugar a New York.

O apocalipse ideológico no leste europeu, jamais previsto por qualquer analista, fortaleceu a idéia de que fora do capitalismo não há salvação. Agora, a crise do sistema financeiro derruba o dogma da imaculada concepção do livre mercado como única panacéia para o bom andamento da economia.

Ainda não é o fim do capitalismo, mas talvez seja a agonia do caráter neoliberal que hipertrofiou o sistema financeiro. Acumular fortunas tornou-se mais importante que produzir bens e serviços. A bolha especulativa inflou e, de súbito, estourou.

Repete-se, contudo, a velha receita: após privatizar os ganhos, o sistema socializa os prejuízos. Desmorona a cantilena do "menos Estado e mais iniciativa privada". Na hora da crise, apela-se ao Estado como bóia de salvamento na forma de US$ 700 bilhões (5% do PIB dos EUA ou o custo de todo o petróleo consumido em um ano naquele país) a serem injetados para anabolizar o sistema financeiro.

O programa Bolsa Fartura de Bush reúne quantia suficiente para erradicar a fome no mundo. Mas quem se preocupa com os pobres? Devido ao aumento dos preços dos alimentos, nos últimos dozes meses o número de famintos crônicos subiu de 854 milhões para 950 milhões segundo Jacques Diouf, diretor-geral da FAO.

Quem pagará a fatura do Proer usamericano? A resposta é óbvia: o contribuinte. Prevê-se o desemprego imediato de 11 milhões de pessoas vinculadas ao mercado de capitais e à construção civil. Os fundos de pensão, descapitalizados, não terão como honrar os direitos de milhões de aposentados, sobretudo de quem investiu em previdência privada.

A restrição do crédito tende a inibir a produção e o consumo. Os bancos de investimentos põem as barbas de molho. Os impostos sofrerão aumentos. O mercado ficará sob regime de liberdade vigiada: vale agora o modelo chinês de controle político da economia, e não mais o controle da política pela economia, como ocorre no neoliberalismo.

Em 1967, J.K. Galbraith chamava a atenção para a crise do caráter industrial do capitalismo. Nomes como Ford, Rockefeller, Carnegie ou Guggenheim, exemplos de empreendedores, desapareciam do cenário econômico para dar lugar à ampla rede de acionistas anônimos. O valor da empresa deslocava-se do parque industrial para a Bolsa de Valores.

Na década seguinte, Daniel Bell alertaria para a íntima associação entre informação e especulação, apontando as contradições culturais do capitalismo: o ascetismo (acumulação) em choque com o estímulo consumista; os valores da modernidade destronados pelo caráter iconoclasta das inovações científicas e tecnológicas; lei e ética em antagonismo quanto mais o mercado se arvora em árbitro das relações econômicas e sociais.

Se a queda do Muro de Berlim trouxe ao leste europeu mais liberdade e menos justiça, introduzindo desigualdades gritantes, o abalo de Wall Street obriga o capitalismo a se repensar. O cassino global torna o mundo mais feliz? Óbvio que não. O fracasso do socialismo real significa vitória do capitalismo virtual (real para apenas um terço da humanidade)? Também não.

Não se mede o fracasso do capitalismo por suas crises financeiras, mas sim pela exclusão - de acesso a bens essenciais de consumo e direitos de cidadania, como alimentação, saúde e educação - de dois terços da humanidade. São 4 bilhões de pessoas que, segundo a ONU, vivem entre a miséria e a pobreza, com renda diária inferior a US$ 3.

Há sim que buscar, com urgência, um outro mundo possível, economicamente justo, politicamente democrático e ecologicamente sustentável.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.


terça-feira, 7 de outubro de 2008

Anatomia do racismo
Ex-Ministra da Cultura e do Ensino Superior da Palestina

Culpar a vítima tem sido o recurso comum dos culpados ao racionalizar e distorcer o horror do crime em si. Sejam esposas espancadas, crianças vítimas de abusos, ou palestinos há muito submetidos à brutalidade da horrenda ocupação militar israelita. O primeiro (e último) recurso de covardia está em difamar a vítima, acusando-a de ter provocado a crueldade merecida do crime.
O pré-requisito essencial, claro, é a total desumanização das vítimas e a eliminação de seus direitos e atributos mais básicos, assim como seus pedidos de proteção.
Inevitavelmente, a mistura resultante da vitimização é incrementada numa etapa posterior pela vulnerabilidade aumentada, pela distorção, e pela exclusão da proteção de aspectos humanos e imperativos morais.
Portanto, a última explosão de confrontos entre o exército de ocupação israelita e manifestantes civis palestinos, transformou-se no campo de recreio para a força total da "metralha giratória" israelita, no mais deliberado, concentrado e racista exercício de fraude e desumanização dirigido contra um povo.
A forma mais elementar de fraude, está em inventar uma simetria falsa entre o invasor e o invadido, entre opressor e vítima.
A "violência" do poderoso exército de ocupação israelita, usando munição real, tanques e helicópteros (no mínimo) é equiparada à "violência" dos civis palestinos protestando contra a continuada perda de direitos, terras e vidas.
Além disso, pede-se aos palestinos que sejam dóceis, que parem com a "violência", que ponham um fim ao cerco a Israel — como se o exército mais poderoso da região estivesse sendo "ameaçado" pela rejeição do povo desarmado à sua ocupação e brutalidade. A solução simples e óbvia, é claro, seria a retirada do exército e o fim da ocupação.
Isto, ironicamente, é acompanhado de uma desvalorização dos direitos e vidas palestinos, pela tradução de nossa fraqueza objetiva na diminuição de direitos onde o poderoso determina os parâmetros de "justiça" para o fraco.
A apresentação como um todo exibe constantemente a síndrome da "responsabilidade do homem branco". Os palestinos devem ser "gratos" por qualquer "oferta generosa" que Israel escolha "garantir" a eles, independente da injustiça e ilegalidade flagrantes da negociação israelita.
Tanto a extrema direita, quanto a extrema esquerda em Israel (assim como nos EUA) têm adotado esta abordagem condescendente, paternalista, para a paz — Barak foi "muito longe" em "oferecer" aos palestinos quase 90% de suas terras com algumas "responsabilidades" em Jerusalém, e aqueles palestinos "ingratos" estão sendo "intransigentes" e linha-dura.
Tendo comprometido 22% da Palestina histórica, nós não fomos convidados a ser parte da anexação ilegal de Jerusalém por Israel e de sua política de assentamentos — isto é, uma parceria nada sagrada para a violação da lei internacional e das resoluções relevantes da ONU.
Se não formos determinados na auto-negação, se não recusarmos o papel de bons nativos e não continuarmos rejeitando a versão unilateral israelita de "paz", que nos "oferece" um estadozinho subserviente de isolados Bantustões sob o sistema de apartheid de Israel, então seremos forçados à submissão.
Afinal de contas, se pressão, ameaça, e "queda-de-braço" político não funcionam, a agressão militar absoluta pode produzir os resultados desejados — uma vez que "os árabes só entendem a línguagem da violência".
Táticas instantâneas ou políticas de pânico entram no jogo com rótulos tais como "terrorista", ou "ditatorial", ou palestinos "violentos", na medida em que disfarçam a realidade do desejo humano palestino de resistir à subjugação e opressão como prova de tais distorções.
Uma situação típica é visível claramente: Arafat deve "controlar" seu povo (nação de ovelhas?) e lhe "ordenar" que se acalmem e aceitem sua escravização e repressão pelos israelitas, de outro modo ele não será mais um "parceiro da paz" e não pode ser considerado um "líder".
Ao mesmo tempo, Israel não pode negociar com Arafat, ou com os palestinos, porque são tradicionalmente "antidemocráticos" e, portanto, não têm nada a ver com democracias "civilizadas", como a de Israel e a dos Estados Unidos.
Paralelamente, outros rótulos instantâneos e epítetos estereotipados são facilmente lançados como um exercício conveniente para reduzir o aspecto humano dos palestinos. Os insultos históricos e familiares usados pelos oficiais e figuras públicas israelitas (incluindo "baratas", "vermes de duas pernas", "cães") foram ampliados para incluir "cobras" e "crocodilos".
A redução de nossa característica humana a uma série de abstrações, em nenhum lugar é tão sinistra quanto no jogo numérico. As vítimas palestinas do fogo israelita são fornecidas diariamente como um número "X" de mortos e "Y" de feridos. Seus nomes, identidades, esperanças despedaçadas, e sonhos destruídos não são mencionados. Ausente também estão a dor e a angústia de suas mães, de seus pais, irmãs, irmãos e outros entes queridos que terão de viver a vida com a trágica perda.
A documentação visual do assassinato a sangue-frio do menino Muhammad al-Durra destruiu a complacência daqueles que se sentiam confortáveis com o anonimato dos palestinos e com a invisibilidade de seu sofrimento. Mesmo assim, diante da evidência irrefutável, a máquina de propaganda israelita tentou distorcer a verdade.
Primeiro, foi dito que ele foi morto por atiradores palestinos; depois, que ele foi "pego no fogo-cruzado". A pior versão foi a descrição cínica do menino Muhammad como um "criador de casos" ou um menino "malicioso" que atraiu a morte para si mesmo — como se a resposta adequada para uma criança vivendo sua infância fôsse a morte deliberada.
A última acusação envolveu uma questão: "O que ele estava fazendo lá?". A verdadeira questão deveria ter sido "o que o exército israelita estava fazendo lá?", no coração da Gaza palestina atirando em civis, inclusive uma criança e seu pai, que foram pegos em flagrante tentando engajar-se no ato "provocativo" de fazer compras juntos.
Notem a diferença, entretanto, quando dois agentes israelitas disfarçados, pertencendo aos notórios esquadrões da morte israelitas, foram mortos por manifestantes palestinos.
Nenhum palestino tentou justificar o ato. Ao contrário, ordens foram dadas para investigar e prender os responsáveis. Afinal de contas, deve existir algo como a lei e o processo devido.
Ao contrário, Israel deslocou seus tanques e tropas, apertando o cerco e estrangulando as cidades, aldeias e campos de refugiados palestinos. Então trouxe os seus helicópteros Apache e disparou sobre cidades palestinas na mais absurda e cruel forma de punição coletiva. Sua versão dos eventos apresentou os agentes israelitas como reservistas que "por engano se desviaram para Ramallah" e então foram "linchados" pela multidão. Referências ao "assassinato", "sede de sangue" e "selvageria" transformaram-se na tendência verbal predominante.
Embora ninguém vá concordar com a morte dos soldados, é importante entretanto, lidar com os fatos reais e o contexto:
Ramallah, uma cidade sob total cerco militar israelita, foi fechada a todos o movimento de entrada e saída da cidade. Apenas uma entrada foi aberta, inteiramente sob controle dos múltiplos pontos de checagem militar israelitas. Portanto, "desviar-se" para Ramallah iria requerer tentativas deliberadas e repetidas exigindo tenacidade, persistência e mesmo astúcia.
Os dois agentes israelitas foram claramente infiltrados e plantados no meio de uma marcha de protesto no coração da cidade. A ocasião era o funeral de um homem palestino, Issam Joudeh Hamad, de uma aldeia de Umm Safa, que tinha sido raptado por colonos israelitas e torturado até à morte de uma maneira horrível.
São cenas e fotografias horríveis do corpo, mais o testemunho dos médicos que o examinaram, que se exibidas aos olhos do mundo aumentariam os pontos dos palestinos e desumanizariam os israelitas. Algumas estações árabes me informaram que as imagens eram tão chocantes que evitaram usá-las.
A maioria das pessoas que participaram da marcha na sitiada cidade palestina de Ramallah conhecia a vítima, e alguns tinham visto o corpo. Os dois agentes israelitas disfarçados que tinham se infiltrado na marcha, foram reconhecidos pelos palestinos como membros dos "Esquadrões da Morte" responsáveis por muitos assassinatos e provocações.
Apesar do fato da polícia palestina ter tentado protegê-los, os dois foram mortos diante das câmeras.
Imediatamente isto se tornou uma justificativa para chamar todos os palestinos de assassinos, e pela mais sistemática e venenosa campanha de ódio na história recente. Isto também foi usado como uma justificativa para os ataques aéreos israelitas sobre Ramallah e outras cidades palestinas.
No emocionante apelo aos seus compatriotas (13 de outubro de 2000) para não explorar este incidente para justificar o racismo e o ódio existentes em Israel, o poeta israelita Yitzhak Laor documentou vários linchamentos de palestinos pelo exército e forças de segurança israelitas. Em todos os casos os perpetradores nunca foram punidos e nenhum ultraje moral foi expresso pelo público israelita, menos ainda houve o bombardeio de cidades israelitas!
O mesmo se aplica ao reino de terror dos colonos israelitas que atingem palestinos em suas próprias casas e cidades, com a proteção e o conluio total do exército israelita.
Apresentados como "civis israelitas" indefesos cercados pelos palestinos "hostis", a natureza sinistra e letal da violência dos colonos, como extremistas armados em fúria, é com frequência ignorada. A ilegalidade dos assentamentos israelitas, o caráter fundamentalista extremista dos colonos armados, e os atos horríveis de rapto, tortura, assassinato e violência aleatória que são cometidos com impunidade, raramente são mencionados. Por toda a parte, os palestinos continuam a ser responsabilizados.
O insulto mais flagrantemente racista é o roubo israelita de nossa humanidade como pais. Em uma tentativa de nos roubar nossos sentimentos mais básicos por nossas crianças, nós somos acusados de "enviar crianças para a morte", para "aumentar os pontos na mídia".
O horror é posteriormente misturado pela total e inquestionável equanimidade com a qual este grande insulto nacional é repetido por judeus de todas as partes, sem qualquer distância crítica ou mesmo consciência da enormidade de tal acusação racista.
Quando crianças palestinas se tornaram alvos dos atiradores isralenses e de outra violência do exército, o ministro da educação não teve outra opção a não ser fechar as escolas temporariamente, de modo a minimizar a exposição dos estudantes em seu caminho para a escola.
Isto foi imediatamente interpretado pela metralha giratória israelita como prova de que nós fechamos as escolas de modo a "liberar" nossas crianças para sair e "criar distúrbios", obstruindo portanto o caminho livre das balas israelitas.
A segurança do lar e as tentativas dos pais em proteger suas crianças não são nem consideradas. A maioria das crianças foram atingidas na cabeça ou na parte superior do corpo, principalmente com balas de alta velocidade. Os alvos mais comuns das balas de aço revestidas de borracha foram os olhos das crianças.
A política de atirar para matar (ou aleijar permanentemente) tem sido empregada pelo exército israelita. Os oficiais israelitas alegam que eles praticaram a moderação.
Claro eles podem fazer pior — eles podem cometer genocídio ou completar a limpeza étnica iniciada em 1948.
Ainda assim, é a segurança de Israel que está em jogo.
O poderoso exército de ocupação de Israel encolhe-se de medo diante do clamor do povo palestino por justiça e liberdade.
O povo palestino não precisa de segurança em sua própria terra ou em suas próprias casas, uma vez que eles têm sido sistematicamente desumanizados pelos seus opressores, como a merecer o que quer que aconteça a eles.
Pior do que ser "não-existente" (como na falácia "uma terra sem povo para um povo sem terra") nas mentes da narrativa oficial de Israel nós agora parecemos existir em um plano mais baixo, como espécies sub-humanas, destituídas das mais elementares qualidades e direitos que orientam a consciência e os valores morais da humanidade como um todo.
Tudo isto para aliviar a culpa e a responsabilidade do verdadeiro culpado.
Os apologistas da ocupação israelita devem encontrar um endereço alternativo para culpar pelo horror infligido aos palestinos; assim, quem melhor do que as próprias vítimas?