por RUI MARTINS
Berna (Suiça) - Vai terminando o ano no qual se enterra, entre os escombros de bancos e empresas, o capitalismo selvagem, apelidado em Davos, onde foi concebido e parido, de neoliberalismo.
Tinha nascido de relações criminosas entre capitais esfaimados com empresas e políticos sem escrúpulos com o objetivo de transformar em lucros e dividendos tudo quanto o capitalismo tinha perdido desde o New Deal até a implosão soviética.
O capitalismo selvagem não trazia na testa o número 666 mas era, sem dúvida a Besta, anunciada no Apocalipse e confirmada no Capital de Marx. De vida curta, durou só 19 anos, teve crescimento acelerado, assumiu proporções imensas e foi extremamente destruidor. Ao morrer, abatido pela própria gula furiosa de um monstro ganancioso, que se alimentava da miséria, da desgraça, sem qualquer respeito por crianças, velhos e mulheres, a Besta do Capitalismo Selvagem ameaça, ainda agora, levar junto consigo para a cova milhões de inocentes seres humanos, vítimas do desemprego, do endividamento por crédito fácil mas implacável, da maldição do consumismo.
A devastação provocada pela Besta foi prefigurada por cataclismas profetizantes como terremotos e tsunamis assassinos em grande escala. Seu batismo foi comemorado com um festival de fogos de artifício de bombas sobre o Iraque e, como nas festas pagãs, centenas de milhares de pessoas foram mortas e sacrificadas no altar da Besta. Para saciar a voracidade da Besta, que, na primeira infância, se divertia com seus primeiros brinquedos nas bolsas de valores, tirava-se da boca do povo e da própria classe média tudo quanto fôsse possível em nome da racionalidade e economia na produção.
Conquistas sindicais duramente obtidas após dezenas de anos de lutas foram devoradas pela Besta em questão de minutos. Seu prato preferido era o de mastigar tudo quanto fôsse emprego certo e seguro para transformá-lo, ao defecar, em empregos precários, transitórios, temporários, inseguros. A Besta urrava pedindo lucros e estrangulava e devorava quem não conseguisse saciar seu apetite. Pouco antes de morrer, já cheirando o podre de sua decomposição, a Besta do neoliberalismo queria mais, queria todos trabalhando até os 70 anos, sem descanso no sábado ou domingo, para se ganhar mais e consumir o dobro. Apenas 19 anos de existência desvairada, mas tudo ou quase tudo se perdeu – seu lema principal era privatizar e reduzir o Estado a quase nada.
Felizmente, nem todos chegaram a obedecer as ameaças da Besta e seus sacerdotes formados nos EUA ou Europa, ainda apalermados com a morte da Besta, conseguiram salvar o que restava do Estado para evitar o pior, mas os estragos vão tornar difícil o Novo Ano.
Porém, como num conto mitológico que se renova numa outra representação no fechar e reabrir das cortinas do palco, a morte da Besta, cujo velório tem inspirado tanto temor, pode ser um belo presságio para a humanidade.
O culto e a adoração do lucro e do consumismo, como o do Bezerro de Ouro no Sinai, não podem mais nortear as economias das nações. O Estado, denegrido pela Besta como assistencialista, tem uma missão importante a cumprir nas sociedade humanas. O capital precisa ser produtivo e não querer se reproduzir só na especulação. Os bens não devem ser descartáveis mas beneficiar as necessidades da população sem necessidade de endividamentos.
Na tentativa de salvar o que restou da Besta, seus templos bancários, os donos do mundo mostraram haver muito dinheiro escondido. Dinheiro que nunca aparecia para socorrer povos sofrendo de calamidades, populações morrendo de fome, mas agora apareceu e não poderá mais desaparecer definitivamente como num passe de mágica.
Com o dinheiro com que se salvaram os bancos nos EUA e na Europa se poderia acabar com a fome e a miséria no mundo. Portanto, o mundo pode ser regido por outras leis que não o preço para os alimentos e os lucros sobre a miséria. Uma nova economia é possível, assim como foi possível se unir mesmo muitos países e indústrias em defesa do nosso planeta. Um outro mundo é possível, sem bestas, sem deuses, mas com solidariedade.
Quem sabe 2009, depois do entêrro da Besta do Neoliberalismo, vai sentir surgir a centelha de novas ideologias que, dentro de dois, três ou quatro milênios verão o nosso planeta sem famintos, sem miseráveis, sem agiotas, sem exploradores, sem gananciosos do lucro, numa outra fórmula de convívio econômico social, justa e solidária.
É tempo de Natal, de uma crença nascida na pobreza de uma manjedoura e tendo como atores um casal pobre e uma criança sem teto. A crença se deturpou e deu origem à riqueza e potência política, porém a idéia de um mundo mais justo nascido da pobreza perdura no inconsciente da humanidade. Porém é preciso não se adiar esse sonho para depois da morte ou num céu abstrato e tentar construí-lo aqui. Mesmo que sejam necessárias mais de mil gerações e que outras bestas surjam pelo caminho, tenho certeza de que os humanos sem ídolos, sem ícones, sem deuses e sem muletas construirão esse mundo.