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AzenhaDia 29 de fevereiro do ano passado, a página da BBC na internet mostrou um dos assessores do ministro da Defesa, deputado Matan Vilnai, ameaçando Gaza de "um holocausto". Com manchete em que se lia "Israel ameaça Gaza de 'holocausto' ", a matéria passou por nove revisões nas 12 horas seguintes. Antes do fim do dia, a manchete dizia "Militantes pró-Gaza 'arriscam-se a sofrer um desastre' ". (Depois, a matéria continuou a ser modificada, acrescida de uma nota de desculpas). Um funcionário do governo de Israel que ameace alguém de "holocausto" pareceu inadmissível, até para quem, rotineiramente invoca o mesmo espectro para afastar qualquer crítica que apareça contra o comportamento criminoso do Estado de Israel. Mas a nova versão da manchete jogou toda a responsabilidade e a culpabilidade claramente sobre os "militantes pró-Gaza".
Poder-se-ia argumentar que a radical alteração que a BBC promoveu na história refletiria a sensibilidade da rede ao tipo de pressão pela qual é bem conhecida a bem azeitada máquina do lobby israelense. Mas, como se pode demonstrar com vários exemplos, essa história só é excepcional porque, na primeira versão, o fato foi corretamente noticiado – e divulgou-se informação correta que poderia arranhar a imagem de Israel. A BBC auto censurou-se. Mais uma vez, censura reflexa.
Para encontrar provas do jornalismo vicioso que a BBC pratica, basta recolher amostras do noticiário sobre a guerra em curso entre Israel e Palestina que se vê hoje na internet. Em momento de conflito declarado, a cobertura da BBC acompanha invariavelmente o ponto de vista de Israel. Mais do que em qualquer outro aspecto, vê-se isso nos aspectos semânticos e no enfoque da reportagem. Mais do que no viés quantitativo (aspecto que foi meticulosamente examinado pelo Glasgow University Media Group, em estudo intitulado "Más notícias de Israel"), é o viés qualitativo que, de fato, encobre a realidade da situação. Isso se faz, quase sempre, construindo-se uma falsa paridade, um falso equilíbrio, falsificando-se uma isenção jornalística que iguala tudo, o poder, as culpas, a legitimidade, também do jornalismo. No atual conflito, tudo se repete.
"Líder do Hamás morto em ataque aéreo" foi a manchete na página internet da BBC, na 5ª-feira. À parte a manchete que 'legaliza' uma morte, são 14 parágrafos e a necessária referência a quatro israelenses mortos, antes da informação de que "pelo menos mais nove pessoas morreram, entre as quais quatro membros da família do líder assassinado, no bombardeio contra sua casa, no campo de refugiados de Jabaliya."
De fato, houve 16 mortos, 11 dos quais crianças; 12 feridos, 5 dos quais, crianças; 10 casas foram destruídas e mais 12 ficaram abaladas e ainda podem desabar. De fato, foi um massacre, uma carnificina.
Se o Hamás bombardeasse e matasse 28 cidadãos israelenses, dos quais, 16 crianças... a cobertura seria diferente. Seria infindável. Seria o que foi a cobertura da BBC para a evacuação dos colonos israelenses ilegalmente instalados em Gaza, em 2005, em terra roubada. Mike Sergeant, da BBC, sentado em Jerusalém, não é homem de sentimentalismos. Então, não há civis mortos na Palestina. A tragédia da Palestina é uma massa de corpos sanguinolentos que Sergeant coroa com "é clara indicação de que os militares israelenses sabem onde estão escondidos os líderes do Hamás."
"Israel reage ao ataque do Hamás," foi a manchete obscena do dia seguinte, na primeira página. Com a palavra Hamás sempre antecedida de "terroristas do" ou "militantes do" e sempre sobre imagens de corpos mutilados e destroços, o leitor médio facilmente aceita que não pode haver nada pior do que o Hamás. "Deu na internet" que a quarta mais poderosa máquina de matar do mundo está enfrentando um exército muito maior, mais cruel, mais poderoso, chamado Hamás, na Palestina. Depois, a BBC informou que, dentre outros "alvos", Israel bombardeou uma mesquita e uma família que dormia em casa.
A manchete da BBC, no mesmo dia, horas mais tarde – "Gaza enfrenta 'emergência crítica' " – foi até melhor. No texto, cita-se Maxwell Gaylard, coordenador do auxílio humanitário da ONU na região, que fala da extensão da crise humanitária. Depois, o alerta da Oxfam: a situação piora dia a dia; não há água potável, combustível, comida; os hospitais estão sobrecarregados e os esgotos vazam nas calçadas.
Em seguida, vem "o outro lado": Israel declarou, informa a BBC, que "não faltam nem comida nem remédios". Não seria difícil verificar quem mente e quem diz a verdade. Mas a investigação, nesse caso, provavelmente, violaria "o reconhecido padrão de isenção da BBC."
Há outro motivo, mais mundano, pelo qual a BBC não investigou, mas está escondido na linha do artigo.
Israel, lemos ali, "recusa-se a permitir a entrada de jornalistas internacionais em Gaza" (incluídos na proibição, é claro, jornalistas da BBC). Qualquer boa ética jornalística obrigaria a informar, na primeira linha, que ninguém sabe o que está acontecendo em Gaza. Que o jornalismo mundial alimenta-se hoje dos folhetos de propaganda distribuídos pelo exército de Israel.
O ato final da chicana vem em forma de barra lateral, na qual se contabiliza o número de Qassam disparados pelos palestinenses, por dia do conflito. Inacreditável, mas em matéria jornalística que se oferece como análise das conseqüências do bloqueio e dos bombardeios feitos por Israel, não se contabilizam os mísseis e bombas de fragmentação e de fósforo e a artilharia pesada, de Israel, que chove sobre a Palestina.
A fonte da qual a BBC recolhe suas informações isentas é o Intelligence and Terrorism Information Center, de Israel. A BBC não noticia que se trata de um instituto "privado" (um think tank), órgão do cinturão militar de propaganda israelense que, de acordo com o The Washington Post, "é diretamente ligado às lideranças militares israelenses e mantém escritório no prédio do ministério da Defesa." Falas de palestinenses, por sua vez, jamais são confiáveis e sempre aparecem entre aspas... por mais que seja facílimo verificar se são fato, ou se são propaganda comprada.
As aspas são sinal muito útil para mostrar que ali pode haver alguma mentira, algum interesse ocultado, alguma opinião pela qual a BBC não se responsabiliza. É recurso útil, se for aplicado com critério. Na BBC, não é.
Para ficarmos só num exemplo: depois da guerra do Líbano, quando a Anistia Internacional acusou os dois lados, Israel e o Hizbóllah, de terem praticado crimes de guerra, a acusação feita a Israel apareceu, na página da BBC, entre aspas. A acusação feita ao Hizbóllah... foi publicada sem aspas.
Assim, com manipulação sutil – e também com manipulação nada sutil – da linguagem, a BBC está ocultando de seus leitores a horrenda realidade da Palestina ocupada.
No léxico da reportagem da BBC, os palestinenses "morrem"; os israelenses "são mortos" ("morrer" implica causas naturais; "ser morto" implica ser assassinado... pelo Hamás); os palestinenses "provocam"; os israelenses "respondem"; os palestinenses "alegam"; os israelenses "declaram".
Além disso, escolas, mesquitas, universidade e postos de policiamento de trânsito são órgãos da "infra-estrutura do terror do Hamás"; os "militantes" "enfrentam" aviões F-16s e helicópteros Apache. O "terrorismo" é item presente no DNA dos palestinenses; os israelenses "defendem-se" – sempre, todos os dias, fora das fronteiras de Israel.
Todos os debates, comecem onde começarem e sejam quais forem os fatores ou as circunstâncias, estão relacionados com a "segurança" de Israel – os palestinos não precisam de segurança. Se se fala do muro que cerca terra anexada na Cisjordânia, só se fala da "efetividade" da barreira (de segurança). Nos casos, muito raros, em que se ouça alguma voz palestinense articulada, o debate é introduzido por matéria pré-editada, que visa a pô-la na defensiva. Quando tudo falha, sempre há o excelente argumento "da isenção". Quando a BBC não consegue acomodar os fatos em imagens, então recorre aos recursos de linguagem.
E há os contextos: a violência praticada por Israel sempre é analisada em termos de "objetivos"; a violência palestinense é sempre "absurda". O leitor médio é manipulado. E a palavra "ocupação" praticamente jamais apareceu na cobertura feita pela BBC. Nas últimas 20 matérias publicadas sobre Gaza, na página Internet da BBC, não aparece nem uma vez. E, se "ocupação" apareceu alguma vez... a expressão "Resoluções da ONU", essa, jamais foi ouvida ou lida. Na televisão é ainda pior, e o ponto de vista de Israel predomina absolutamente.
Embora seja difícil saber quem escreve os boletins que a BBC distribui, há meios para conhecer o contexto de opinião editorial no qual os jornalistas trabalham, por exemplo, em artigo do The Observer assinado pelo editor da BBC para o Oriente Médio, Jeremy Bowen – homem cujas ralas competências analíticas só se comparam à sua ignorância em matéria de história. Atrelado ao cavalo de batalha da BBC – a "isenção" – que se intromete em cada linha, Bowen acrescenta ao clichê a omissão. Não se fala em ocupação.
Bowen foi convenientemente posto em Sderot – onde foram instalados todos os jornalistas de confiança do departamento de propaganda do exército de Israel, bem longe do alcance dos rojões do Hamás, para que possam informar sem risco (e portanto com simpatia) –, e faz o que o mandaram fazer. Pelo 'outro lado', não há correspondentes para contar o que se passa nas áreas sobre as quais chovem as bombas israelenses. "Mortos entre a população civil" é ruim, mas só na medida em que impliquem "muita publicidade negativa para Israel". A partir dessa constatação, ele então conclui que "em nome da isenção, deve-se dizer que [Israel] não acerta todos os alvos que gostaria de acertar. Acertasse, o número de mortos seria muito maior." Então, especula sobre os possíveis objetivos de Israel; mas, apesar da obsessão com "os dois lados", nada diz sobre possíveis objetivos do Hamás.
Numa conferência em Londres, em 2004, um jornalista da BBC que trabalhava nos Territórios Palestinenses Ocupados contou-me que, no que tenha a ver com Israel, os parâmetros editoriais são são estreitos, que os jornalistas acabam aprendendo a adaptar as matérias para não terem problema com os editores. Ao mesmo tempo, os editores também logo aprendem a não criar problemas para os chefes e gerentes que são funcionários públicos nomeados. Desde os dias de Lord Reith, fundador da BBC, que ensinou o establishment a "confiar [que a BBC] nunca seria realmente isenta" em matéria de política internacional, a empresa tem atuado praticamente como braço de propaganda do Estado (alguma independência que tenha algum dia tido evaporou no expurgo executado por Tony Blair, no início do Inquérito Hutton).
Ao contrário do que se lê na maioria dos jornais dos EUA, cujos jornalistas mais progressistas não se cansam de elogiar a BBC, em comparação com a mídia nos EUA, a cobertura que a BBC tem dado aos eventos do Oriente Médio é pífia.
Como observou um especialista em estudo de mídia, David Miller, durante a guerra do Iraque ouviram-se menos vozes de oposição à guerra na BBC do que nos jornais norte-americanos. Estudo do Frankfurter Allgemeine Zeitung descobriu que a BBC é a empresa jornalística menos tolerante à crítica, dentre todos os jornais analisados, em cinco países.
Exatamente quando o correspondente da BBC no Iraque festejava a queda de Bagdá em termos de "Blair está vingado", o correspondente em Washington foi muito mais cauteloso na exultação: "Não há dúvidas de que o ímpeto de levar o bem, de levar valores norte-americanos ao resto do mundo, especialmente hoje, como se vê, ao Oriente Médio, está intimamente ligado ao poderio militar dos EUA."
A parcialidade da BBC na cobertura do conflito Israel-Palestina é simples reflexo da íntima afinidade que há entre sucessivos governos ingleses e Israel. Tanto Blair quanto seu successor Gordon Brown foram membros do grupo "Labour Friends of Israel". O ministro das Relações Estrangeiras, David Miliband, tem parentes que são colonos em áreas da Cisjordânia. Os três maiores escândalos de corrupção nos últimos cinco anos envolveram líderes do partido New Labour e dinheiro de milionários judeus sionistas (todos membros da confraria "Labour Friends of Israel").
Se a BBC não é imparcial, muito mais parcial é o governo inglês; a BBC apenas reflete a parcialidade 'oficial'. Apesar das pressões do lobby israelense, o ombudsman da BBC ("Independent Panel") concluiu recentemente que a cobertura da luta dos palestinenses não foi "ampla e equilibrada" e que apresentou "quadro parcial e, nesse sentido, enviesado".
Contudo, embora seja imenso o abismo que separa o mundo paralelo em que a BBC vive e os fatos que a mídia independente tem testemunhado e relatado, John Pilger escreveu: "Apesar das vozes que, na BBC, operam para tornar idênticos o ocupante e o ocupado, o ladrão e a vítima, apesar da avalanche de e-mails de elogios enviados pelos fanáticos de Sion, apesar do esforço para ocultar o empenho do Estado de Israel para destruir a Palestina, a verdade é hoje muito mais visível do que jamais foi."
O artigo original,em inglês, pode ser lido em:
http://electronicintifada.net/v2/article10122.shtml