Passados cinco séculos do início da colonização portuguesa no Brasil, o filho de um cozinheiro português quer ajudar a resolver um dos maiores problemas criados pelos próprios ibéricos: a escravatura e as perversas formas de dominação de raça e classes após a Lei Áurea, que ficou devendo muito aos negros – aceitou a liberdade física, mas negou a econômica e a social, dentre tantas outras. Quem está se propondo a ajudar na questão é o sociólogo e escritor Boaventura de Sousa Santos, que frequentemente vem ao país e até se intitula um “brasileiro adotado”.
Ferrenho defensor das ecologias de saberes populares, Boaventura esteve em Brasília, em julho, e encontrou com a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, que, juntamente com outros dez ministros, compõe o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Pois é justamente lá, no STF, que está em curso um dos processos mais importantes para os negros no Brasil.
Vale lembrar que outro ministro que compõe o elenco de magistrados é o presidente do tribunal, Gilmar Mendes. Mas Gilmar não deve estar muito feliz com a ida de Boaventura em seu plenário. Isso porque o professor português o definiu como "uma figura patética", destacando sua publicidade excessiva na imprensa. "Nos Estados Unidos, o presidente do Tribunal não aparece na mídia como o Gilmar. No máximo, ele vai dar uma palestra em uma universidade, de vez em quando", criticou.
E deverá ser Gilmar que presidirá uma sessão que poderá ter seu resultado influenciado por Boaventura. Desde que, em 2003, o
presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou o decreto 4.847, em 25 de setembro, a vida dos quilombolas poderia ter ganhado outros vieses, com a agilização da demarcação de suas terras. Entretanto, o então PFL, atual Democratas, tradicionalmente ligado à bancada ruralista, não gostou da proposta, e resolveu entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, contra o projeto.
Aí entra o professor Boaventura. Ele se dispôs, um pouco incomodado, a ir ao STF dar uma aula sobre a história da colonização portuguesa no Brasil, seus efeitos e injustiças históricos, para sensibilizar os ministros para a causa. Entretanto, não entende bem porque isso é necessário. “Falei com ela (Cármem Lúcia) que posso vir, mas há muito material produzido no Brasil. É só ler, é só querer ler”, questionou o professor, em palestra realizada em Belo Horizonte, dia 4 de agosto, em Belo Horizonte, a convite do Sinpro Minas.
E não é à toa que Boaventura se arrisca nessa intentona. Para ele, que lutou contra o imperialismo português que persistiu até 1975 em colônias africanas e no Timor Leste, a maior herança do colonialismo é a pífia distribuição fundiária e o racismo. Olhe um pouco à sua volta e verá que o professor tem razão.
A data da audiência pública em que Boaventura irá participar no STF ainda não está marcada. Mas parte do recado já foi dado. Quem sabe, agora, os brasileiros não estudam um pouco mais o tema em vez de rejeitá-lo?
Em entrevista exclusiva à NovaE, Boaventura detalhou seus argumentos, e também falou do governo Lula, de suas políticas ambiental e social, do agronegócio e da crise econômica mundial do capitalismo. Além disso, afirmou que o Brasil está pronto para ter uma mulher na presidência. Entretanto, ele prefere o ministro da Justiça, Tarso Genro. Confira abaixo.
Qual é a participação do senhor na defesa da demarcação das terras dos quilombolas?
Como trabalho bastante com os advogados populares, que trabalham com os quilombolas, tive notícia de que eles iriam pedir à ministra Carmem Lúcia uma Audiência Pública em face daquela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que foi impretada pelo antigo PFL, os Demos.
Essa ADI visa fundamentalmente considerar inconstitucional muitos dos processos de regulamentação dos territórios de remanescentes de quilombos – que ultimamente têm sido uma grande transformação, digamos assim, na vida do campo do Brasil devido ao reconhecimento e à organização dos afrodecendentes para reaverem as terras que foram desapropriados, onde viveram muitos anos. Essa é uma luta muito importante, uma vez que sou conhecido e os ministros conhecem as minhas posições.
Eu quis sensibilizar, basicamente, o Supremo Tribunal Federal, para a importância da questão quilombola, sobre a qual existe tanto desconhecimento no Brasil, o que é uma coisa que me surpreende. Uma vez que há muita informação disponível sobre esse movimento, e as razões históricas, fundamentalmente justiça histórica, que está por trás dele. Mas a verdade é que há muita ignorância a respeito disso. A ignorância, no meu entender, pode ser altamente prejudicial ao movimento, e à reivindicação dos quilombolas. Porque pode mudar os critérios dos códigos livrais, que atravessam toda uma parte de direito civil que tem uma concessão privatística da propriedade, e são muito renitentes a reconhecer os direitos históricos sobre a terra. Nesse caso dos remanescentes e também no caso dos indígenas.
Como o senhor vê a questão de um português vir ao Brasil para ter que falar sobre esse tema, já que (a escravidão no Brasil) foi uma criação de Portugal?
É uma pergunta interessante. Obviamente, não me sinto responsável pelo colonialismo. Por contrário, ainda tive a oportunidade de lutar contra o colonialismo, porque ele durou até tão tarde. Desde os anos 1960 lutei contra ainda as colônias que existiam no império e que só se libertaram em 1975. Mas é verdade que a minha ligação a eles e com outras causas que tenho abraçado no Brasil não tem muito a ver com essa responsabilidade, porque não a reconheço.
É fundamentalmente porque eu tenho trabalhado no Brasil. Há muita gente que pensa, nos círculos internacionais, que sou brasileiro. Sou um brasileiro adotado. Fiz aqui meu trabalho de campo, meu doutoramento foi feito numa favela do Rio de Janeiro. E participo da vida social, acadêmica e também política, com os movimentos sociais. Num processo que se intensificou muito depois do Fórum Social Mundial. Para mim, é na decorrência disso que eu me dispus a tomar essa ação e vou fazer mais. Também fui o primeiro signatário de um abaixo assinado em defesa da Reserva Raposa Serra do Sol. Também trabalho bastante com o movimento indígena no Brasil, no Equador e na Bolívia, porque também é um caso de justiça histórica que deve ser resolvido.
Mudando o foco da conversa, o senhor acha que o capitalismo, se conseguir passar bem por esta crise, sairá mais forte ou mais fraco?
É muito difícil responder a essa questão. As crises do capitalismo são sempre multifacetadas porque têm diferentes temporalidades. Esta crise financeira, por exemplo, é de uma temporalidade curta. Ela explodiu em agosto de 2008. Obviamente que essa crise não é de agora. Ela já vem de meados da década de 1980 e depois de 1990. Rússia, Brasil, Indonésia e Tailândia foram vítimas disso. A especificidade desta é que ela aconteceu no coração do sistema. E esta é uma crise de curta duração, que é sinal de outras, provavelmente mais profundas, mas que pode ser resolvida a curto prazo, sem em grandes transformações sistêmicas. Mas há outras crises que são muito mais de longa duração. Essa tem a ver com os limites ambientais e esse tipo de desenvolvimento. Eu penso que essa é a grande crise do capitalismo. Ela vai surgir duma ou doutra forma. É aquela que vejo que vai haver mais dificuldades para sua resolução. Não só porque ela toca nos fundamentos do capitalismo, enquanto nesta crise financeira não estamos a por em causa um certo tipo de capitalismo, o neoliberal, que se propôs desvencilhar do Estado, e que em momentos de crise volta ao útero do Estado.
Temos outra crise mais profunda, que atinge a todos nós, na medida em que ela, como no aquecimento global, como em todas as crises que decorrem dos limites ambientais desse tipo de desenvolvimento, vem de nossos próprios hábitos do cotidiano. São os nossos carros, o nosso conforto, daqueles privilegiados no mundo que têm acesso a esses bens.
Eu penso que o capitalismo vai entrar numa crise civilizacional. E essa vai se manifestar de diversas formas, algumas das quais estamos a ver. É muito difícil de ver qual o tipo de crie. Já muitas vezes foram anunciadas as crises finais de capitalismo, que afinal não foram. A questão ambiental tem tantos prolongamentos. Ao nível da questão social, das pandemias, da fome, da seca, das mudanças climáticas. Eu prevejo que aqui haja uma maior turbulência porque a articulação sistêmica que pode impedir que isso ocorra é muito mais complicada.
Com a crise, o governo Lula isentou os carros do IPI, e também produtos da construção civil, como o chuveiro elétrico. Se houvesse uma mudança de viés de desenvolvimento, haveria um estímulo à produção de aquecedores solares para as residências, por exemplo. Como o senhor vê a questão ambiental no governo Lula? Ele está perdendo a chance de mostrar ao mundo que o Brasil poderia ser uma potência ambiental?
A política ambiental deste governo é um desastre. Isso nota-se pela sucessão dos ministros do Ambiente. Este que está agora (Carlos Minc), também já em dificuldades, e sendo uma pessoa muito mais tolerante para o tipo de desenvolvimento atento na idéia do agronegócio, com todas as suas consequências ambientais. Ele próprio sente dificuldades. Obviamente que a ministra Marina Silva teve muito mais dificuldades. Portanto, eu penso que tem sido realmente um desastre. E isso se intensificou ao longo dos anos.
O governo Lula ficou preso a um desenvolvimentismo que já não é o do século XXI. Por exemplo, poderia ter apostado nas energias renováveis. Ao invés disso, aposta no agrofuel, que não é biofuel. Não tem nada a ver com biologia, com a preservação do meio ambiente, ao contrário. É uma outra cultura de plantação. E entrou dentro da cultura genética dos líderes que neste momento governam o país. Num país com essa dimensão, com esta riqueza e com essa diversidade biológica, que tem uma responsabilidade mundial, eu penso que isso é um desastre.
O que está a passar na Amazônia é de proporções inadmissíveis. Nós estamos a assistir, ao contrário do que se diz, uma destruição da Amazônia, com crimes ambientais a ponto de criar a destruição do encontro das águas. Há realmente uma cultura desenvolvimentista, que no meu entender está a minar toda aquela potencialidade de esperança que o Brasil veio trazer ao mundo, no momento em que resolveu ter uma liderança regional, e eventualmente global, ao lado de Rússia, China e Índia (BRIC). É bem que o sistema se torne policêntrico, é mal se esses países, ao entrar, venham a reproduzir o pior do sistema
Apesar da questão ambiental, Lula está fazendo um bom governo?
É um bom governo porque tem um alto nível de aceitação. Beneficiou-se obviamente do carisma de Lula, que desfez todas aquelas idéias estereotipadas que havia no tempo do Fernando Henrique Cardoso, de que a esquerda é burra, que um metalúrgico não pode governar o país. Ele pôde governar o país, atrás de uma conjunção de razões externas e internas que foram muito favoráveis. Foi muito favorável o desenvolvimento da China.
Ao nível interno houve algumas políticas que tiveram um efeito redistributivo. Não só sistemas de ação afirmativa, obviamente foram criadas formas de acesso à universidade pública, mas principalmente o Bolsa-Família. Foi ele que alimentou o mercado interno que veio acabar por ser uma almofada de proteção contra a crise financeira. Este governo tem coisas muito positivas do ponto de vista social. Soube distribuir uma migalha a populações que estavam muito desprovidas. Mas permitiu que o capital financeiro, sobretudo o capital agrário, tivesse as possibilidade de lucro como nunca tinha tido no passado.
O Brasil está pronto para ter uma mulher na presidência?
Eu penso que a Dilma está obviamente. Não sei se a Dilma é realmente a candidata ideal da esquerda. Se estivesse no Brasil eu teria outros candidatos. Mas é a candidata que vamos ter, aparentemente. É uma incógnita para todos saber em que medida o peso e a aceitação que o presidente Lula tem hoje se pode transferir para o apoio à candidata Dilma. É problemático, é uma grande jogada de grande risco da parte do presidente Lula. Mas acho que seria muito bom para o Brasil ter uma mulher como presidente.
Quem seria o melhor candidato para o senhor?
Obviamente, Tarso Genro.