terça-feira, 3 de novembro de 2009

O choro das viúvas de Micheletti

Migueldo Rosario no blog Oleo do Diabo
 
Na medida em que a crise em Honduras inicia uma distensão, e que as sucessivas derrotas dos golpistas (a primeira foi não ter recebido reconhecimento de nenhum país e ter sido condenado por todas as organizações internacionais) se tornam mais visíveis, observo em nossa midia, parte da qual apoiou o golpe, o surgimento de uma nova e interessante figura: as viúvas de Honduras.

Noblat é uma delas. Recorto o que ele disse hoje, em sua coluna do jornal O Globo:

A derrubada de Zelaya foi legal, segundo a Constituição. Afinal, ele tentara mudá-la para introduzir a reeleição à presidente.

A primeira frase é um idiotice e uma falsidade jurídica. A derrubada de Zelaya não foi legal. Foi um golpe de Estado. Não é por outro motivo que o novo governo não foi reconhecido e que Zelaya continuou sendo o único presidente legítimo, para toda a comunidade internacional. Até O Globo chamava, embora hesitante e intermitentemente, e apenas semanas depois do golpe, o governo Micheletti de golpista. A afirmação de Noblat, portanto, é esquizofrênica. Ele defende um governo golpista em seus estertores. É uma viúva desesperada tentando defender a honra do marido nazista morto por um pelotão de fuzilamento da Resistência francesa.

A segunda frase é uma mentira odiosa. Blogosfera, juristas, diplomatas, já a desmentiram categoricamente, por diversas vezes. Zelaya pediu a inclusão de uma pergunta a mais na cédula eleitoral, sobre a criação de uma assembléia constituinte. Essa assembléia iria iniciar discussões políticas, que incluem mudanças na Constituição. Não dá nem para chamar Noblat de leguleio (aquele que interpreta servilmente a lei, sem atender a seu espírito), ou de chicaneiro (o que distorce a lei para cometer crimes), mas de safado mesmo, ou burro. Uma Constituição não é uma tábua de pedra onde as leis ficam estáticas para sempre. Constituição é um corpo jurídico sempre flexível em linha com os anseios do povo. É absolutamente ridículo que Noblat (e outros, são tantas as víuvas de Micheletti no Brasil...) queira nos convencer que a simples possibilidade de um país abrir um debate sobre a reeleição, tendo a delicadeza de perguntar ao povo se concorda ou não, é motivo para sua derrubada sumária, sem o mais básico processo legal de defesa.

É ridículo, ainda mais partindo de um jornalista político brasileiro, ciente de que Fernando Henrique Cardoso, mudou a Constituição brasileira, sem a delicadeza de perguntar ao povo, para instituir a reeleição PARA SI PRÓPRIO.

O maior crime, ao que parece, é a delicadeza de perguntar ao povo. Os neocons da América Latina consideram o instrumento de consulta popular uma agressão à democracia. Enquanto isso, Uribe aprova a instalação de bases americanas na Colômbia sem sequer consultar o Congresso Nacional... Ou seja, o bolivarianismo que faz consultas ao povo é autoritário, enquanto as forças que instituem mudanças radicais na Constiuição (como fez FHC) sem nenhuma consulta popular são modelos de bom comportamento democrático. E dar golpe de Estado, para Noblat e para todas as numerosas viúvas de Micheletti, também é democrático. Ah, já ia esquecendo, é o golpe democrático do Jabor!

*

Na verdade, o golpe ainda não acabou. As pessoas, porém, esquecem um fator básico. A população hondurenha recebeu uma vacina. O que é uma vacina? É receber o vírus da doença no corpo para criar anticorpos daquela doença. Foi exatamente isso que aconteceu ao povo hondurenho. Todas as pesquisas de opinião, discussões parlamentares, todas as articulações entre Micheletti e Zelaya, estão negligenciando o mais importante. O que está pensando o povo hondurenho de tudo isso? O golpe de Micheletti foi um desastre social e econômico. Os ricos têm reservas para enfrentar os momentos de dificuldade. Muitas vezes, até ganham dinheiro, explorando a miséria e a insegurança. Os pobres, naturalmente, sempre são os mais prejudicados. Ao que tudo indica, o povo hondurenho desenvolveu um ódio profundo contra as forças retrógradas de Honduras, contra os golpistas, e identificou exatamente o papel da mídia nesse processo. Pensar que o mundinho político de Honduras permanecerá o mesmo depois do que aconteceu não é apenas ingenuidade, é estupidez e cegueira política. O povo exigirá mudanças. E mesmo que os golpistas recebam anistia lítica e jurídica em função dos acordos do alto escalão, o povo não os perdoará pela tragédia social que produziram. Sim, porque para os ricos o golpe pode ter sido apenas uma aventura. Para os pobres, no entanto, significou o desmantelamento de suas finanças, o esfacelamento de seus sonhos, a morte, a fome, o desespero, e o maior erro político de todos é subestimar os povos, é subestimar a força de sua violência e de sua dor. Os golpistas irão pagar, muito caro, uma hora ou outra, pela violência indesculpável contra a soberania popular, contra a democracia, contra a vida de milhões de hondurenhos. E as viúvas de Micheletti no Brasil não poderão fazer outra coisa senão enfiar seus rostos num vaso sanitário, e puxar a descarga.

*

Algumas das viúvas de Micheletti não têm coragem de apoiar explicitamente o golpe, mas é fácil identificá-las. Eliane Catanhede, por exemplo, põe Micheletti e Zelaya em pé de igualdade. Vários fizeram isso. Sem coragem de defender Micheletti, tentam agradar o baronato midiático conservador que os emprega atacando igualmente Zelaya. Sem ter o que atacar em Zelaya, zombam de seu bigode, de seu chapéu. Caluniam-no dizendo que não possui uma personalidade política própria, que é um submisso seguidor de Chávez. Mentem ao acusá-lo de querer instituir a reeleição. Antes do golpe as eleições presidenciais já estavam marcadas para o fim deste ano, e Zelaya não concorria. A famigerada inclusão de uma pergunta a mais na cédula não dizia nada sobre reeleição. Caso fosse montada uma assembléia constituinte, a reeleição seria, primeiro, debatida pelo parlamento, depois votada, e depois, caso fosse aprovada, o povo poderia ser novamente consultado. Zelaya passou longe do golpismo de Fernando Henrique Cardoso, que atropelou qualquer bom senso democrático para instituir a reeleição para si mesmo sem ao menos ter a delicadeza de consultar o povo. Chávez ao menos fez um plebiscito popular. FHC, não. Repetindo, o crime maior para os antibolivarianos radicais de nossa mídia é consultar o povo...

Barbárie e modernidade no século 20


Barbárie civilizada
Barbárie civilizada


Michael Löwy  - Portal do PSOL








 A palavra "bárbaro" é de origem grega. Ela designava, na Antigüidade, as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e brutais. A oposição entre civilização e barbárie é então antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia dos iluministas, e será herdada pela esquerda. O termo "barbárie" tem, segundo o dicionário, dois significados distintos, mas ligados: "falta de civilização" e "crueldade de bárbaro".

A história do século 20 nos obriga a dissociar essas duas acepções e a refletir sobre o conceito - aparentemente contraditório, mas de fato perfeitamente coerente - de "barbárie civilizada".
Em que consiste o "processo civilizador"? Como bem demonstrou Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder político1. O que Elias não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo Estado... Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele podia escrever, ainda em 1939: "Comparada ao furor do combate abissínio (...) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado parece moderada (...); ela só se manifesta em sua força brutal e sem limites em sonho e em alguns fenômenos que nós qualificamos de 'patológicos'".2
Alguns meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma guerra entre nações "civilizadas" cuja "força brutal e sem limites" é simplesmente impossível de comparar com o pobre "furor" dos combatentes etíopes, tamanha é a desproporção. O lado sinistro do "processo civilizador" e da monopolização estatal da violência se manifestou em toda sua terrível potência.
Se nós nos referimos ao segundo sentido da palavra "bárbaro" - atos cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento e a morte deliberada de não-combatentes (em particular, crianças) - nenhum século na história conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX. Certamente, a história humana é rica em atos bárbaros, cometidos tanto pelas nações "civilizadas" quanto pelas tribos "selvagens". A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o massacre de indígenas das Américas, o tráfico negreiro, as guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie "civilizada", isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.
Karl Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão associadas às necessidades de acumulação do capital. Em O Capital, especialmente no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica radical dos horrores da expansão colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico de negros. Essas "barbáries e atrocidades execráveis" - que segundo Marx (citando de modo favorável M.W. Howitt) "não têm paralelo em qualquer outra era da história universal, em nenhuma raça por mais selvagem, grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido" - não foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente denunciadas como uma "infâmia"3. Considerando algumas das manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou os workhouses - estas "bastilhas de operários" -, Marx escreveu em 1847 esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a Escola de Frankfurt: "A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização"4
Mas com o século XX, um limite é transgredido, passa-se a um nível superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a esse ponto.
A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme, em 1914-15: Roxa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição - cada um à sua maneira - de alguma coisa sem precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.
Ao usar a palavra de ordem "socialismo ou barbárie", Rosa Luxemburgo em A crise da social-democracia, de 1915 (assinada com o pseudônimo "Junius"), rompeu com a concepção - de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional - da história como progresso irresistível, inevitável, "garantido" pelas leis "objetivas" do desenvolvimento econômico ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo que dá a ela essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma percepção da história como processo aberto, como série de "bifurcações", onde o "fator subjetivo" - consciência, organização, iniciativa - dos oprimidos tornam-se decisivos. Não se trata mais de esperar que o fruto "amadureça", segundo as "leis naturais" da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais.
Porque o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie. Em um primeiro momento ela parece considerar a "recaída na barbárie" como "a aniquilação da civilização", uma decadência análoga àquela da Roma antiga5. Mas logo ela se dá conta que não se trata de uma impossível "regressão" a um passado tribal, primitivo ou "selvagem", mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos conquistadores "bárbaros" do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão modernas - os tanques, o gás, a aviação militar - tinham sido colocadas ao serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa.
As intuições de Kafka são de uma natureza totalmente diferente. É sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie. Trata-se de uma novela intitulada A colônia penal: em uma colônia francesa, um soldado "indígena" é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume em poucas palavras a quintessência do arbitrário: "a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida!". Sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura que escreve lentamente sobre seu corpo com agulhas que o atravessam a frase "Honra teus superiores".
O personagem central da novela não é nem o viajante que observa os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o comandante da colônia. É a máquina mesma.
Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat), que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, é sobretudo este que está lá pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de "muitos florilégios e ornamentos". O oficial mesmo é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo se sacrifica à esse insaciável Moloch6.
Em que "máquina de poder" bárbara, em que "aparelho da autoridade" sacrificador de vidas humanas, pensava Kafka? A colônia penal foi escrita em outubro de 1914, três meses após a eclosão da grande guerra. Há poucos textos na literatura universal que apresentam de maneira tão penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo impessoal.
Esses pressentimentos parecem se perder nos anos do pós-guerra. Walter Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes sem precedentes. Daí seu pessimismo - não fatalista, mas ativo e revolucionário. Em um artigo de 1929 ele definia a política revolucionária como "a organização do pessimismo" - um pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E acrescenta ironicamente: "confiança ilimitada somente no IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe"7. Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam mostrar, alguns anos mais tarde, a capacidade maléfica e destrutiva da modernidade8.
Pode-se definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:
- Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do homicídio. Exterminação em massa graças às tecnologias científicas de ponta.
- Impessoalidade do massacre. Populações inteiras - homens e mulheres, crianças e idosos - são "eliminados", com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas.
- Gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, "racional" (em termos instrumentais) dos atos bárbaros.
- Ideologia legitimadora do tipo moderno: "biológica", "higiênica", "científica" (e não religiosa ou tradicionalista)
- Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do século XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos armênios em 1915, o genocídio levado a cabo pelo Pol Pot no Camboja, aquele dos tutsis em Ruanda etc. associam, cada um de maneira específica, traços modernos e traços arcaicos.
Os quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a modernidade da barbárie são o genocídio nazista contra os judeus e os ciganos, a bomba atômica em Hiroshima, o Goulag estalinista e a guerra norte-americana no Vietnã. Os dois primeiros são provavelmente os mais integralmente modernos: as câmaras de gás nazistas e a morte atômica norte-americana contêm praticamente todos os ingredientes da barbárie tecno-burocrata moderna.
Auschwitz representa a modernidade não somente pela sua estrutura de fábrica de morte, cientificamente organizada e que utiliza as técnicas mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como observa o sociólogo Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral. "Como toda outra ação conduzida de maneira moderna - racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada - o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. (...) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal...."9
A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno, pseudo-científico, biológico, antropométrico, eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso anti-semita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: "A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos nossa saúde sem eliminar os judeus".10
Em seu notável ensaio sobre Auschwitz11, Enzo Traverso destaca, com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio. Não se trata nem de uma simples "resistência irracional à modernização", nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de uma manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido, infernal, da civilização ocidental, de uma barbárie industrial, tecnológica, "racional" (do ponto de vista instrumental). Tanto a motivação decisiva do genocídio - a biologia racial - quanto suas formas de realização - as câmaras de gás - eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de exterminação nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, "a organização científica do trabalho" de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber.
Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação da razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como máquina "desumanizada", impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica, é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também para a fábrica capitalista, que estava presente em Auschwitz, ao mesmo tempo nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas câmaras à gás, lugares de produção "em cadeia" de mortos. Mas a "solução final" é irredutível à toda lógica econômica: a morte não é nem uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.
Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações - inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso - do nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo alemão (Georges Lukács), de uma "saída" da Alemanha para fora do berço ocidental (Jürgen Habermas) ou de um movimento de "descivilização" (Entzivilisierung) inspirado por uma ideologia "pré-industrial" (Norbert Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização pelo estado da violência - como o mostram, depois de Hobbes, tanto Weber quanto Elias - é necessário reconhecer que a violência do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX. Auschwitz não representa uma "regressão" em direção ao passado, em direção a uma idade bárbara primordial, mas é realmente um dos rostos possíveis da civilização industrial ocidental. Ele constitui ao mesmo tempo uma ruptura com a herança humanista e universalista dos Iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilização.
Se o extermínio dos judeus pelo Terceiro Reich é comparável a outros atos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento singular. É necessário recusar as interpretações que eliminam as diferenças entre Auschwitz e os campos soviéticos, ou os massacres coloniais, os pogroms etc.12 O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz é Hiroshima, como compreenderam tão bem Günther Anders e Dwight MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de morte formidavelmente moderna, tecnológica e "racional". Mas as diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades americanas não tiveram jamais como objetivo - como aquelas do Terceiro Reich - realizar o genocídio de toda uma população: no caso das cidades japonesas, o massacre não era, como nos campos nazistas, um fim em si mesmo, mas um simples "meio" para atingir objetivos políticos. O objetivo da bomba atômica não era o extermínio da população japonesa como fim autônomo. Tratava-se sobretudo de acelerar o fim da guerra e demonstrar a supremacia militar americana face à União Soviética. Em um relatório secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target Committee - o "Comitê de Alvo", composto pelos generais Groves, Norstadt e do matemático Von Neumann - observa friamente: "A morte e a destruição irão não somente intimidar os japoneses sobreviventes a fazer pressão pela capitulação mas também (a bônus) assustar a União Soviética. Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a guerra e, ao mesmo tempo, ajudar à moldar o mundo do pós-guerra"13. Para obter esses objetivos políticos, a ciência e a tecnologia mais avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis inocentes, homens, mulheres e crianças foram massacrados - sem falar da contaminação pela irradiação nuclear das gerações futuras.
Uma outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas: em uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o secretário de Estado, Stimson, relatava seus sentimentos: "Eu disse a ele que estava inquieto com esse aspecto da guerra... porque eu não queria que os americanos ganhassem a reputação de ultrapassar Hitler em atrocidade"14.
Em muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica representada pela arma atômica, quanto pelo caráter ainda mais distante, impessoal, puramente "técnico" do ato exterminador: pressionar um botão, abrir a escotilha que liberta a carga nuclear. No contexto próprio e asséptico da morte atômica entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas formas manifestamente arcaicas do Terceiro Reich, como as explosões de crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa modernidade se encontra na cúpula norte-americana que toma - após ter cuidadosa e "racionalmente" pesado os prós e os contras - a decisão de exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki: um organograma burocrático complexo composto por cientistas, generais, técnicos, funcionários e políticos tão cinzentos quanto Harry Truman, em contraste com os acessos de ódio irracional de Adolf Hitler e seus fanáticos.
No curso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba, certos oficiais, como o general Marshall, declararam suas reservas, à medida em que eles defendiam o antigo código militar, a concepção tradicional da guerra, que não admitia o massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de vista novo, mais "moderno", fascinado pela novidade científica e técnica da arma atômica, um ponto de vista que não tinha nada a ver com códigos militares arcaicos e que não se interessava senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em critérios de eficácia político-militar15. Seria necessário acrescentar que um certo número de cientistas que tinham participado, por convicção antifascista, nos trabalhos de preparação da arma atômica, protestaram contra a utilização de suas descobertas contra a população civil das cidades japonesas.
Uma palavra sobre o Goulag estalinista: se há muito em comum com Auschwitz - sistema concentracionário, regime totalitário, milhões de vítimas - ele se distingue pelo fato que o objetivo dos campos soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros mas sua exploração brutal como força de trabalho escrava. Em outras palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra - como aquela fabricada por Stéphane Courtois e outros anticomunistas profissionais - pode apagar essa diferença.
O Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era burocraticamente administrado por um Estado totalitário e colocado ao serviço de projetos estalinistas faraônicos de "modernização" econômica da União Soviética. Mas ele se caracteriza também por traços mais "primitivos": corrupção, ineficácia, arbitrariedade, "irracionalidade". Ele se situa por essa razão em um degrau de modernidade inferior ao sistema concentracionário do Terceiro Reich.
Enfim, a guerra americana no Vietnã, atroz pelo número de vítimas civis exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execuções coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção extremamente moderna: fundada sobre uma planificação "racional" - com a utilização de computadores, e de um exército de especialistas - ela mobiliza um armamento muito sofisticado, na ponta do progresso técnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm, herbicidas, bombas à fragmentação etc.16
Essa guerra não foi um conflito colonial como os outros: bastava lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o Vietnã foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o massacre não era um objetivo em si, mas um meio político; e se a cifra de mortos é bem superior àquela das duas cidades japonesas, não se encontra no Vietnã aquela perfeição da modernidade técnica e impessoal, aquela abstração científica da morte que caracteriza a morte atômica"17.
A natureza contraditória do "progresso" e da "civilização" moderna se encontra no coração das reflexões da Escola de Frankfurt. Em Dialética do Iluminismo (1944), Adorno e Horkheimer constatam a tendência da racionalidade instrumental de se transformar em loucura assassina: a "luminosidade gelada" da razão calculista "carrega a semente da barbárie". Em uma nota redigida em 1945 para Minima Moralia, Adorno utiliza a expressão "progresso regressivo" tentando de dar conta da natureza paradoxal da civilização moderna.18
Entretanto, essas expressões ainda são tributárias, apesar de tudo, da filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são em nada uma "regressão à barbárie" - ou mesmo uma "regressão": não há nada no passado que seja comparável à produção industrial, científica, anônima e racionalmente administrada da morte em nossa época. Basta comparar Auschwitz e Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos bárbaras do século IV para se dar conta que eles não têm nada em comum: a diferença não é somente na escala, mas na natureza. É possível comparar as práticas mais "ferozes" dos "selvagens" - morte ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, redução das cabeças etc. - com uma câmara de gás ou uma bomba atômica? São fenômenos inteiramente novos, que não seriam possíveis a não ser no século XX.
As atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa civilização industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são mais "regressões": são crimes irremediavelmente e exclusivamente modernos.
Existe entretanto um domínio específico da "barbárie civilizada" em que se pode efetivamente falar de regressão: a tortura. Como destaca Eric Hobsbawn em seu admirável ensaio de 1994, "Barbárie: um guia para o usuário": "A partir de 1782 a tortura foi formalmente eliminada do procedimento judiciário dos países civilizados. Em teoria, ela não era mais tolerada nos aparelhos coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prática era tão forte que ela não pôde retornar após a derrota da Revolução Francesa que a havia seguramente abolido (...) Pode-se suspeitar que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao progresso moral - por exemplo as prisões militares ou outras instituições análogas - ela de fato não desapareceu..." Ora, no século XX, sob o fascismo e o estalinismo, nas guerras coloniais - Argélia, Irlanda etc. - e nas ditaduras latino-americanas, a tortura é de novo empregada em grande escala.19
Os métodos são diferentes - a eletricidade substitui o fogo e os torniquetes - mas a tortura de prisioneiros políticos tornou-se, no curso do século XX, uma prática rotineira - mesmo se não-oficial - de regimes totalitários, ditatoriais, e mesmo, em certos casos (as guerras coloniais), "democráticos". Nesse caso, o termo "regressão" é pertinente, na medida em que a tortura era praticada em inúmeras sociedades pré-modernas, e também na Europa, da Idade Média até o século XVIII. Um uso bárbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso do século XIX voltou no século XX, sob uma forma mais "moderna" - do ponto de vista das técnicas - mas não menos desumana.
Levar em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício - nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna - ou de sua cópia "socialista" burocrática.
Não se trata também de reduzir a história do século XX a seus momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1961; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994; foram alguns dos momentos fortes - mesmo se efêmeros - dessa dimensão emancipadora do século. Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta das gerações futuras por uma sociedade humana e solidária.
Notas:
1 Norbert Elias, La Dynamique de l'Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975, pp.181-190. A referência ao combate abissínio soa estranha no momento em que a Etiópia combatia pela sua liberdade contra a invasão colonial do fascismo italiano, portador de uma pretensa missão "civilizadora".
2 Norbert Elias, La civilisation des moeurs, Paris, Calmann-Lévy, 1973, p.280.
3 Marx, Le Capital, vol. I, p.557-558, 563.
4 K. Marx, "Arbeitslohn", 1847, Kleine Ökonomische Schriften, Berlin, Dietz Verlag, 1955, p.245.
5 R. Luxemburgo, A crise da social-democracia, 1915.
6 Kafka, "In der Strafkolonie", Erzählung und kleine Prosa, N. York, Schocken Books, 1946, pp.181-113.
7 W. Benjamin, "O surrealismo. O último instante de inteligência européia", 1929. Mythe et violence, Paris, Letras Novas, 1971, p.312
8 Lembremos que o grande truste químico IG Farben não somente utilizou massivamente a mão-de-obra escrava em Auschwitz mas também produziu o gás Zyklotron B, que servia para exterminar as vítimas do sistema concentracionário.
9 Zygmut Bauman, Modernity and the Holocaust, London, Polity Press, 1989, p.15, 28.
10 Citado por Zygmunt Bauman, op.cit, p.71
11 Enzo Traverso, L'Histoire déchirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels, Paris, Cerf, 1997
12 Sobre esse assunto, remeto à excelente colocação de Enzo Traverso, "A singularidade de Auschwitz. Hipóteses, problemas e derivações da pesquisa histórica". Pour une critique de la barbarie moderne. Ecrits sur l'histoire des Juifs e de l'antisémitisme, Lausanne, Ed. Page deux, 1997.
13 Citado dos arquivos históricos recentemente abertos ao público em Barton J. Bernstein, "The Atomic Bombings Reconsidered", Foreign Affairs, fevereiro 1995, p. 143.
14 Ibid, p.146.
15 Sobre as reservas de Marshall, cf. Barton J. Bernstein, Op.cit, p.143.
16 De fato, é inteiramente racional se a "razão" significa racionalidade instrumental, aplicar a força militar norte-americana, os B-52, o napalm e todo o resto no Vietnã "sob dominação comunista" (claramente um "objeto indesejável"), como o "operador" para o transformar em "objeto desejável". Joseph Weizenbaum, "Computer Power and Human Reason". From Judgmente to Calculation, S. Francisco, W.H. Freeman, 1976, p.252
17 Outras guerras coloniais tiveram lugar no século XX - na Indochina, na Argélia, na África colonial portuguesa etc., mas nenhuma atingiu o grau de modernidade como aquela do Vietnã. Em comparação, elas parecem arcaicas, primitivas.
18 T.W.Adorno, M. Horkheimer, La Dialectique de la raison, Paris, Gallimard, 1974, p.48 e T.W. Adorno, Minima Moralia, Paris, Payot, 1983, p.134
19 E. Hobsbawn, Barbarism: An User's Guide. On History, London, Weidenfelds and Nicholson, 1997, pp.259-263.
Tradução: Alessandra Ceregatti
Michael Löwy, brasileiro, é sociólogo, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

do sitio www.infoalternativa.org


Que haja ricos, não é um direito dos pobres?


Certa vez escrevi que no mundo só existem três tipos de bens: universais, gerais e colectivos.
Os bens universais são aqueles dos quais nos basta que haja um exemplar ou um exemplo para que nos sintamos universalmente tranquilos. São as coisas que estão aí, e que não faz falta apanhar com a mão ou possuir de forma individual: há sol e há lua, há estrelas, há mar, há um Machupichu e um Everest, há um Taj Mahal e uma Capela Sistina, um Che Guevara e um São Francisco, há García Lorca e José Martí e García Márquez e Silvio Rodríguez e Cintio Vitier.
Os bens gerais são aqueles, em contrapartida, que é necessário generalizar para que a humanidade esteja completa. Não basta apenas que haja pão no palácio do príncipe ou que haja uma casa no jardim do conde; essas são as coisas que devem estar aqui, que todos devemos apanhar com a mão ou desfrutar pessoalmente: temos moradia, água, medicamentos e se não as temos é porque alguma coisa não anda bem neste mundo. Não é uma injustiça que haja um único sol no céu ou um único Guernica de Picasso, mas sim que não haja suficiente pão para todos.
Por fim, os bens colectivos são aqueles de cujas vantagens devemos desfrutar todos por igual, mas que não se podem generalizar sem pôr em perigo a existência dos bens gerais e dos bens universais. São aqueles bens, em definitivo, que é necessário partilhar. Trata-se, por exemplo, dos meios de produção, que não se podem privatizar sem que isso deixe sem bens gerais (pão, moradia, saúde) milhões de seres humanos. E trata-se também de alguns objectos de consumo, cuja generalização poria em perigo o bem universal por excelência, fonte e garantia de todos os outros bens: a própria Terra. Todos devemos ter pão e moradia, mas se todos tivéssemos - por exemplo – carro, a sobrevivência da espécie seria impossível. O motor de explosão, portanto, não é um bem geral, do qual cada um de nós possa ter um exemplar, mas um bem colectivo cujo uso haverá que partilhar e racionalizar.
Ao longo da história, diferentes classes sociais apropriaram-se dos bens gerais e dos bens colectivos, e nisto o capitalismo não se distingue de sociedades anteriores. Mais inquietante é o que o capitalismo fez, ou está em processo de fazer, com os bens universais. Não me refiro apenas à colonização do espaço, à privatização das ondas, das sementes e das cores ou ao desaparecimento de espécies, montanhas e selvas. Refiro-me, sobretudo, à desvalorização mental que os “universais” sofreram sob a corrosão antropológica do mercado. O normal é comprazer-se na visão das estrelas; o normal é comprazer-se contemplando o suave balanceio da neve; o normal é comprazer-se com a leitura do Canto Geral de Neruda. Ou não? Em 1895, Cecil Rhodes, imperialista inglês, empresário e fundador da companhia De Beers (dona de 60% dos diamantes do mundo), contemplava mal humorado os astros da sua janela, «tão claros e tão distantes», tão longe do seu apetite imperial que «queria e não podia anexá-los». Numa escala mais pequena, um apresentador da televisão espanhola lamentava em 2005 que não tivesse que pagar por contemplar a neve, tão branca e tão formosa, que cobria os campos e cidades de Espanha e que perdia de algum modo o seu prestígio oferecendo-se indiscriminadamente ao olhar de todos por igual. E, numa escala ainda mais pequena, conheci um poeta que não podia ler os versos de Neruda sem se enfurecer: «Teria que tê-los escrito eu!». É coisa de crianças querer a Lua e de mães corruptoras prometê-la. O capitalismo é um infantilismo destrutivo. Isola o rasgo pueril de uma criança mal-educada e generaliza-o, normaliza-o, recompensa-o socialmente. O que está aí, que não podemos apanhar com as mãos, o que é por isso mesmo de todos, empobrece-nos, entristece-nos e não vale nada.
O que resta dos bens universais? Ficam os ricos. Os ricos são de todos. O que mais nos agrada do capitalismo não é que produza carros e aviões e hotéis e máquinas: é que produz ricos. As orgias babilónicas de Berlusconi, as pensões milionárias dos banqueiros espanhóis no meio da crise, o luxo cafona dos políticos corruptos de Valência e de Madrid, não são manchas ou pecados do capitalismo: são pura publicidade. A lista dos homens mais ricos do mundo elaborada pela revista Forbes não é mais que bárbara ostentação propagandística que gera muita mais adesão ao sistema que o acesso desigual a mercadorias baratas e banais. Existe algo de estranho que as mulheres latino-americanas, questionadas sobre o seu “marido ideal”, o imaginem estadunidense, loiro, de olhos claros, altíssimo, cirurgião ou empresário e, evidentemente, milionário? Ou que na nova China o pai com que sonham as jovens mães seja Bill Gates? Ou que na lista das dez personalidades mais admiradas pelos homens estadunidenses não haja um único escritor ou cientista, quase todos sejam executivos ou proprietários de empresas e todos imensamente ricos? Ou que a revista de maior tiragem de Espanha – com quase 700.000 exemplares – seja a Hola? Ou que os mais famosos enlatados e telenovelas da TV, seguidos por milhões de espectadores, consistam em tratados de antropologia das classes altas (seus hábitos, seus problemas, seus prazeres)?
Se os pobres não podem partilhar a riqueza, podem ao menos partilhar os seus ricos. Se não podem consumir riqueza, podem consumir vidas de ricos. Bill Gates, Carlos Slim, Warren Buffet, Amancio Ortega são a Lua e o Machupichu e a Capela Sistina e o Taj Mahal do capitalismo. São o Sol e a Neve e o Canto Geral do mercado globalizado. Podem ser os responsáveis por o mundo vir abaixo, mas são também os artífices deste milagre: o de estarmos muito contentes e tudo nos parecer bem enquanto desabamos.
Quem quer igualdade? A desigualdade, não é um direito dos pobres? Que haja milionários, não é um direito dos mil-euristas? Não devemos defender, de armas na mão, o nosso direito a que outros sejam ricos? Não devemos agradecer-lhes as suas extravagâncias? Não devemos pelo menos votar neles?
Esse é o modelo que os EUA e a Europa tentam impor ao resto do mundo. Não o direito a que haja estrelas e Machupichu e cataratas de Iguaçu e Nona Sinfonia de Beethoven, mas a que haja ricos; não o direito a pão e casa e sapatos, mas a saber quem são e como vivem os milionários.
Revolução? O Pão e a Lua.

(Subentendendo-se que “pão”, no dicionário socialista, quer dizer também leite e roupa e casa e hospitais e transportes públicos; e “lua” quer dizer também mar e música e verdades e soberania política).
 

O PIG-RS(Partido da Imprensa Golpista) defendendo o impossivel.....

A imprensa, Yeda e Lula no Pampa

 
Paulo Cezar da Rosa 

Muita gente acredita na recuperação de Yeda Crusius, na possibilidade dela vir até a reelege-se em 2010. Crê que vencidos os inquéritos, os processos administrativos, judiciais e políticos, como o impeachment e a CPI ainda em curso na Assembleia, a governadora renascerá das cinzas numa campanha eleitoral restauradora de sua imagem e sua política. O trabalho que está sendo feito nos últimos 60 dias para Yeda reforça essa tese. No lugar da governadora geradora de conflitos, uma Yeda "paz e amor" passou a ser apresentada em todos os meios de comunicação em fotos e manchetes.

Até ano passado a possibilidade de recuperação era real. Um conjunto de elementos indicava que Yeda poderia afirmar seu governo e, um pouco como Lula no pós-mensalão, dar a volta por cima. Agora, não existe mais gerenciamento de imagem que resolva seus problemas. Os que acreditam poder recompor sua viabilidade eleitoral em geral subestimam a inteligência do eleitor. Acham que o marketing e mídia podem tudo.

Os motivos que levaram Lula às alturas na avaliação do cidadão brasileiro são os mesmos que colocam Yeda entre os piores governos da história do Rio Grande. O presidente Lula chegou aos 80% de aprovação por causa da sua política e navegando na contra-mão do PIG. Já Yeda fez o inverso. Com uma proteção permanente do PIG, a governadora hoje tem cerca de 80% de desaprovação. Ou seja, assim como o PIG não derrotou Lula, o PIG não será capaz de reerguer Yeda em 2010.

Políticas inversas
A saga de Yeda Crusius no Rio Grande do Sul repete, em grande medida, a de seus antecessores. Jair Soares, Alceu Colares, Antonio Britto, Olívio Dutra, Germano Rigotto foram governadores que buscaram acertar e acabaram recusados pelo eleitor. Mas Yeda tem uma particularidade: ela sempre dependeu da força das suas ideias e pôde desprezar, em sua trajetória, partidos, forças sociais e soluções de compromisso. Até chegar, quase por acaso, ao cargo que ocupa hoje.

Tudo o que se pensar sobre Lula e suas políticas, deve-se colocar um sinal de negativo para compreender Yeda. Enquanto Lula agrega, Yeda confronta. Enquanto Lula conversa, Yeda briga. Enquanto o Brasil segue em frente, O Rio Grande vai para trás.

Yeda faz um governo que teve a ousadia de instalar uma representação em Brasília chamando-a de "embaixada", como se o Brasil fosse um outro país. No governo gaúcho, confrontada com uma posição em que, obrigatoriamente, é preciso "fazer política", Yeda revelou-se incapaz. Sua gestão é uma sucessão de confrontos e feitos inúteis ou negativos, a maior parte deles com os próprios aliados. Incluem-se nesta lista o vice-governador, Paulo Feijó, do DEM; o assessor morto em Brasília, que chegou a ser nomeado "embaixador" da "representação gaúcha"; o "companheiro" Lair Ferst, que teria feito uma delação premiada; o ex-secretário da Segurança Pública, Otávio Germano (PP), que teria a ver com a corrupção no Detran.... A lista é longa e deve frequentar as atas de julgamentos e condenações judiciais nos próximos anos. Diante de tudo isso, Yeda mostrou-se inconfiável ao eleitor. Ela havia prometido "um novo jeito de governar". O mínimo que deveria ter cumprido seria encarar de um modo diferente a corrupção. Mas, não. Yeda acabou decorando o quarto do neto em sua casa particular com dinheiro público. Comprou puffs e assoalhos emborrachados. E não existe PIG no planeta que consiga justificar isso. Nem vai resolver o PSDB intervir no estado gaúcho, nomeando uma agência paulista para cuidar da imagem de Yeda.

O papel do PIG gaúcho
Já manifestei aqui meu distanciamento crítico quanto ao termo PIG. Esqueçam! Vocês, leitores, me convenceram de que é preciso trabalhar com o conceito. Mas vamos ao que interessa: O PIG gaúcho fez tudo o que podia e não podia por Yeda Crusius. Se alguma coisa vale a minha palavra, eu testemunho: nunca um governante teve tamanha boa vontade da mídia quanto Yeda Crusius. Nem mesmo Antônio Britto foi tão defendido. Yeda teve tudo, tudo, tudo. E ainda está tendo. E, em que pese o peso e importância da mídia na formação da opinião das pessoas, todo o apoio que foi dado à governadora não conseguiu forjar uma imagem positiva de seu governo.

Ao mesmo tempo, o PIG gaúcho vem martelando contra Lula noite e dia nos últimos anos mas também não consegue imprimir uma imagem negativa ao presidente. Ao contrário, hoje Lula tem no RS praticamente os mesmos índices que possui no país. Ou seja, o papel do PIG gaúcho, cada vez mais, é enrolar peixe no dia seguinte.
Paulo Cezar da Rosa
Direto de Porto Alegre para Carta Capital

Marketa Lazarová (1967)

NOME DO FILME
  Título Original: Marketa Lazarová
  Gênero: Épico / Drama / Histórico
  Ano de Lançamento: 1967
  Duração: 162 min
  País de Produção: Tchecolosváquia
  Diretor(a): Frantisek Vlácil

Sinopse:
Votado o melhor filme tcheco de todos os tempos, "Marketa Lazarová" é um épico medieval poderoso e apaixonado situado no século XIII. Baseado na obra do escritor de vanguarda Vladislav Vancura, o filme segue a rivalidade entre dois clãs guerreiros, os Kozlíks e os Lazars, e o amor condenado dos filhos dos rivais, Mikolás Kozlík e Marketa Lazarová. Com reminiscências da obra de Tarkovsky e Kurosawa e fundado sobre a rica tapeçaria da ficção checa, este filme ambicioso e cheio de camadas é a coroação de Vlácil e um dos marcos por descobrir do cinema mundial

Elenco:
Josef Kemr ... Kozlík
Magda Vásáryová ... Marketa Lazarova
Nada Hejna ... Katerina
Jaroslav Moucka ... Jan
Frantisek Velecký... Mikolás
Karel Vasicek ... Jirí
Ivan Palúch ... Adam 'One-handed'
Martin Mrazek ... Václav
Václav Sloup ... Simon
Pavla Polaskova ... Alexandria
Alena Pavlíková ... Drahuse
Michal Kozuch ... Lazar
Zdenek Lipovcan ... Jakub
Harry Studt ... Old Count Kristián
Vlastimil Harapes... Young Count Kristián

Dados do Arquivo:
Marketa Lazarová
Formato: RMVB
Qualidade: Preto e Branco
Audio: Tcheco
Legenda: Português (embutida)

CRÉDITOS:www.filmesepicos.tk

Download via Megaupload

domingo, 1 de novembro de 2009

Reflexões de Fidel...

Uma espécie em perigo de extinção

 
Por Fidel Castro
 
Na Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente convocada pela ONU no Rio de Janeiro, afirmei quando era o chefe do Estado cubano: “Uma espécie está em perigo de extinção: o homem”. Quando proferi e fundamentei aquelas palavras, recebidas e aplaudidas pelos chefes de Estado ali presentes – inclusive o presidente dos Estados Unidos, um Bush menos tenebroso que seu filho George W. – estes acreditavam dispor ainda de vários séculos para enfrentar o problema. Eu próprio não o via numa data tão próxima como sessenta ou oitenta anos.
 
Hoje se trata de um perigo realmente iminente e seus efeitos são já visíveis. A temperatura média aumentou 0,8 grau centígrado desde 1980, segundo o Instituto de Estudos Espaciais da NASA. As últimas duas décadas do século 20 foram as mais quentes em centenas de anos. As temperaturas no Alasca, no oeste canadense e no leste da Rússia subiram a um ritmo que duplica a média mundial. O gelo do Ártico está desaparecendo rapidamente e a região pode experimentar seu primeiro verão completamente livre de gelo no ano 2040. Os efeitos são visíveis nas massas de gelo de mais de 2 Km de altura que se derretem na Groenlândia, nas zonas glaciais da América do Sul, do Equador ao Cabo Horn, fontes fundamentais de água, e a gigantesca camada de gelo que cobre a extensa zona antártida.
 
As atuais concentrações de dióxido de carbono atingiram o equivalente a 380 partes por milhão, cifra que supera a geração natural dos últimos 1650.000 anos. O aquecimento está já afetando os sistemas naturais de todo o mundo. Se isso ocorrer, será devastador para todos os povos.
 
Desde a Antiguidade, os filósofos e pensadores mais avançados procuraram a justiça social. Apesar disso, a escravidão física durou legalmente até há 129 anos, quando se decretou a abolição da escravatura na colônia espanhola de Cuba.
 
Hoje, os Estados Unidos possuem milhares de armas nucleares que poderiam exterminar várias vezes a população do mundo. São, por sua vez, os maiores produtores e exportadores de todo tipo de armas. O ritmo acelerado das pesquisas científicas em todas as áreas da produção material e dos serviços, sob a ordem econômica imposta ao mundo depois da Segunda Guerra Mundial, conduziu a humanidade a uma situação insustentável.
 
Nosso dever é exigir a verdade. A população de todos os países tem direito de saber os fatores que originam a mudança climática e quais são as possibilidades atuais da ciência para reverter a tendência, se ainda se dispõe realmente delas.
 
O povo cubano, especialmente sua magnífica juventude, demonstrou que, ainda em meio a um brutal bloqueio econômico, é possível ultrapassar obstáculos inimagináveis.

Sobre a America Latina...

Saque na América Latina:

Caminhos e Agentes

Ana Esther CeceñaA presente crise do sistema capitalista “exige uma mudança de estratégia e uma mudança da modalidade de dominação que abarca todas as dimensões da organização social, territorial e política do sistema, sobretudo porque a necessidade das condições gerais de valorização correspondente aos momentos de ajustamento cíclico, característicos do regular funcionamento do processo de acumulação do capital, ocorre agora num momento de questionamento integral da crise sistémica, da incapacidade de resolver internamente a contradição progresso-depradação criada nos próprios fundamentos da sociedade capitalista como lugar de domínio da natureza pelo homem.

Por tudo isto a actual crise não é apenas financeira nem se resolve com subsídios ou com fusões e centralização do capital”.

Ana Esther Ceceña* - www.odiario.info

Actualmente, estamos em crise. Crise sistémica que não anuncia uma queda ou o rebentamento imediato, mas que exprime a vocação mutante do capitalismo e a sua capacidade de adaptação ou reeducação às condições de mudança do que acontece, não só economicamente mas também socialmente. No entanto, o carácter sistémico da crise mostra a não sustentabilidade civilizacional do capitalismo.

Nas actuais circunstâncias, a crise cíclica é indicativa da incapacidade do mercado em garantir por si só as condições gerais do processo de acumulação do capital e de apropriação da riqueza e, nesse sentido, apela aos mecanismos de contenção social para assegurar tudo o que o mercado não consegue tornar coeso e controlar, sobretudo quando a economia capitalista é ao mesmo tempo legal e ilegal. A ninguém escapa que a crise económica não está a tocar nos sectores ilegais que, indubitavelmente, contribuíram para a gerar e muito provavelmente serão parte da sua solução.

De qualquer modo, a crise exige uma mudança de estratégia e uma mudança da modalidade de dominação que abarca todas as dimensões da organização social, territorial e política do sistema, sobretudo porque a necessidade das condições gerais de valorização correspondente aos momentos de ajustamento cíclico, característicos do regular funcionamento do processo de acumulação do capital, ocorre agora num momento de questionamento integral da crise sistémica, da incapacidade de resolver internamente a contradição progresso-depradação criada nos próprios fundamentos da sociedade capitalista como lugar de domínio da natureza pelo homem.

Por tudo isto a actual crise não é apenas financeira nem se resolve com subsídios ou com fusões e centralização do capital. Isso permite seguir em frente mas, simultaneamente agrava a situação de suicídio técnico em que irremediavelmente se encontra o capitalismo, apesar da sua capacidade em manter o mundo inteiro sob as suas regras de funcionamento, mesmo sabendo que, paradoxalmente, tendem para a insustentabilidade da própria vida.

A IIRSA COMO ESTRATÉGIA DO PODER HEGEMÓNICO

A força interna do capitalismo defende-se e reconstrói-se permanentemente através do desenho de um conjunto de estratégias integrais, multidimensionais, que se estendem planetariamente, entre os quais se encontram os megaprojectos de reordenamento territorial, que também são necessariamente de reordenamento político, como o da Integração Regional da América do Sul, IIRSA [na sua sigla em castelhano]. A principal virtude de projectos como a IIRSA é a de serem capazes de restabelecer e potenciar as condições gerais da valorização, mais do que a de gerar chorudos negócios na sua própria execução, o que também acontece.

Observados numa perspectiva ampla, a IIRSA e o Plano Puebla Panamá são duas partes do mesmo projecto: supostamente, ambos foram concebidos por um Presidente da região, num caso Vicente Fox, do México, e no outro Fernando Henrique Cardoso do Brasil. Com toda a diferenciação cultural, intelectual e política que há entre os dois, presuntivamente desenharam ao mesmo tempo dois projectos semelhantes e geograficamente iguais [empatados]. As negociações e execuções específicas variam de acordo com as condições subregionais, mas os fundamentos dos projectos são: construir uma infra-estrutura de comunicações, transportes e geração de energia que constitua um ágil e dinâmico sistema circulatório que permita enlaçar as economias regionais com o mercado mundial.

Um único projecto de mercantilização total da natureza para uso massivo desde o centro do México até ponta da Terra do Fogo. Não se trata da exploração dos elementos naturais para uso doméstico, nem local nem nacional, mas da sua exploração de acordo com as dimensões de um comércio planetário sustentado em cerca de 50% por empresas transnacionais. A infra-estrutura que se propõe – e que é exigida – é precisamente a que permitirá à América Latina converter-se numa peça chave do mercado internacional de bens primários, à custa da devastação dos seus territórios, abrindo novamente essas veias da abundância que sangram a pachamama e que alimentam a acumulação de capital e a luta mundial pela hegemonia. O desenho desta infra-estrutura vai do coração às extremidades, do centro da América do Sul até aos portos no caso da IIRSA e da Colômbia-Panamá até à fronteira com os Estados Unidos no caso do Projecto Meso-americano, novo nome do Plano Puebla Panamá.

A dimensão da exploração do território da América Latina e da extracção dos seus valiosos elementos encontra-se em relação com os crescentes níveis exigidos por uma economia mundial que responde às vertiginosas necessidades de multiplicação dos próprios lucros muito mais do que às necessidades reais da população mundial, e apela a uma maior agilidade da circulação de mercadorias para reduzir ao máximo os momentos improdutivos do capital. O nível de extracção e de produção das empresas envolvidas, ainda que a sua origem seja local, modificou-se na proporção desta nova procura de recursos. Casos como o de Vale do Rio Doce são sintomáticos das novas dinâmicas: as empresas enraizadas na produção mineira numa zona de grande abundância de jazidas são, a pouco e pouco, estrangeiradas através da colocação de acções na bolsa de valores de Nova Iorque ou outras idênticas e os seus níveis de produção, já elevados, multiplicam-se de acordo com as necessidades de valorização dos capitais proprietários. O ritmo dos comboios que transportam o ferro até ao porto incrementou-se e a quantidade de vagões carregados multiplicou-se nos últimos anos, assegurando com isso a posse privada, agora fora da terra, já na qualidade de mercadoria, de um elemento natural que se converteu em parte importante da disputa hegemónica. Com isto se aumenta o saque de que foram objecto os povos latino-americanos desde há mais de 500 anos, com o começo da conquista-colonização, e se submetem os territórios, espaço da relação natureza-sociedade a uma depreciação selvática e irreversível. [1]

A exportação de matérias-primas, vista pelos analistas macroeconómicos como um sinal de desenvolvimento e prosperidade está a alterar as próprias condições de vida pelo seu carácter massivo e por responder a necessidades alheias às das sociedades locais. O mesmo ocorre com as modernas vias de transporte que se propõem e que se estão a preparar com a IIRSA. As rotas da IIRSA colocam o enorme território sul-americano à disposição das necessidades de saque dos recursos estratégicos, como a pode observar-se no mapa 1, que mostra o que considero o desenho estratégico da IIRSA.



Agora os canais inter-oceânicos não procuram a rota mais curta entre oceanos mas a mais vasta e rica. Os 80 km do Canal do Panamá são agora substituídos por 20 km da rota amazónica. Esta diferença de critérios evidencia que a conexão tem outros objectivos diferentes dos do passado, de acordo com o aumento das capacidades e envergadura da apropriação capitalista. Com as rotas da IIRSA assegura-se não apenas a extracção de recursos de cada uma das suas partes, mas que essa extracção se realiza de forma articulada. Ligam-se interesses nacionais ou locais com interesses transnacionais e inclusive estratégicos.

As rotas da IIRSA passam pelas recursos de água, de minerais, de gás e petróleo; pelos corredores industriais do subcontinente; pela áreas de diversidade genética mais importantes do mundo, pelos refúgios indígenas e por tudo o que é valioso e apropriável na América Latina. A ampliação dos caudais dos rios para os dedicar a um trânsito intenso estão a pôr em risco os pantanais e a degradar as condições de vida de espécie animais e vegetais, ao mesmo tempo que violenta os modos de vida de comunidades confinantes ou a eles ligadas; a exploração e exportação massiva de minerais castiga a selva com um tráfego pesado constante que vai rapidamente comendo a mancha amazónica e ameaça os glaciares; as modalidades locais de organização da vida vêem-se confrontadas com uma dinâmica vertiginosa que lhes é alheia e que as altera clara e irreversivelmente.

O EMARANHADO DE INTERESSES DA IIRSA

Têm sido largamente denunciados os danos presentes ou previsíveis presentes neste projecto, mas apesar disso a insistência em o manter é tenaz. Cabe então perguntar que espécie de interesses prevalece sobre os elevadíssimos riscos ecológicos e sociais inerentes à IIRSA?

Por um lado, o facto de contar com a anuência ou inclusivamente o entusiasmo de muitos governos latino-americanos é o resultado de uma combinação em que os governos e empresas locais recebem alguns benefícios que, ao seu nível, podem ser significativos.

Por outro lado, evidentemente que uma rede infraestrutural das características da que está planeada é indubitavelmente uma facilidade para as actividades extractivas, e económicas em geral, dos grandes capitais do mundo na busca de recursos competitivos e valiosos, que em muitos casos podem ser considerados estratégicos para a reprodução global do sistema e, portanto, para assegurarem não só as condições de vida do capitalismo mas também a sua hegemonia.

A construção da própria infra-estrutura parece não ser o prato mais cobiçado. As grandes transnacionais têm como foco dos seus interesses muito mais a exploração dos recursos que são grandes negócios para os investidores locais, mas relativamente modestos para elas, como a construção de estradas, caminhos-de-ferro, hidrovias, represas e outras semelhantes.

Pela forma como se comportaram os governos e as empresas, parece haver um quase acordo de complementaridade em que ambos beneficiam, e por isso ambos defendem o projecto como próprio. Esta bizarra comunhão de interesses cresceu ultimamente com a entrada de capitais estrangeiros em empresas locais, a maioria das vezes dedicadas a actividades extractivas, como é o caso de Vale do Rio Doce. Estas empresas potenciam-se, aumentam a sua produção e, evidentemente, as suas exportações; ligam-se mais estreitamente ao mercado mundial, mas continuam a aparecer como nacionais, apesar de em vários casos o seu capital já ser maioritariamente estrangeiro.

Actualmente, talvez a empresa sul-americana mais favorecida pela IIRSA seja a Odebrecht, que se apresenta como brasileira. Por se tratar de uma empresa de engenharia e construção, nesta primeira etapa está envolvida em projectos em toda a região da IIRSA.

A Odebrecht tem investimentos em 13 países na América para além do Brasil. Geograficamente vai desde o México até à Argentina e também com actividades no Caribe (República Dominicana), América Central (Costa Rica, Panamá) e América do Sul (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai), como pode ver-se no mapa que mostra a proximidade das áreas dos seus projectos de investimento com as de recursos mais valiosos.



Historicamente, nas actividades extractivas registou-se sempre a presença de grandes transnacionais estrangeiras, daí esta ligação de interesses que mencionámos. É um sector em que a concorrência dificulta a entrada de capitais nacionais, sobretudo depois da desprotecção e da mudança de critérios sobre os patrimónios devidas ao neoliberalismo.

Revendo as listas das 500 maiores empresas do mundo, há muito anualmente elaborada pela revista Fortune, e a das 500 maiores da América, elaborada pela revista América Economia, o que se observa é a escassa participação de empresas latino-americanas de maior envergadura. Ainda que se encontrem nestas actividades, a sua participação é de muito menor importância, excepto os casos de Odebrecht, Aracruz e Votorantim, originalmente as três de capital brasileiro.

A extracção de petróleo e gás é em alguns países exclusivo de empresas do Estado, mas no que respeita aos outros países, as empresas principais neste sector são a Exxson, Royal Dutch, British Petroleum, Chevron, CONOCO-Phillips, ENI, Petrobras, Repsol-YPF, SK, Occidental Petroleum, Lukoil, En Cana e Oil and Nature Gás. A localização de projectos destas empresas não deixa dúvidas sobre a sua boa perspicácia, visto que se encontram em todas as regiões de importantes jazidas, como se observa no mapa. Estas localizações vão ser protegidas pelas facilidades das infra-estruturas, de tal forma que o seu acesso ao mercado mundial, que em si já é bastante ágil, como se pode observar no mapa. Estas localizações ficam protegidas pelas facilidades das infra-estruturas projectadas pela IIRSA, de tal forma que o seu acesso ao mercado mundial, já bastante ágil como vimos, ver-se-á ainda melhorado.



Os minerais, elementos que definem a estrutura material básica dos processos produtivos, têm na América Latina um dos seus espaços de maior diversidade e abundância. Os minerais metálicos são um foco de atracção de grandes empresas de dimensão planetária como a Anglo American, BHP Billinton, Rio Tinto, Vale do Rio Doce, Xstrata e Nippon Mining Holdings, e a sua distribuição territorial leva-as a diversas regiões sul-americanas, regiões que, em todos os casos, têm a virtude de estarem ligadas através das rotas da IIRSA (ver mapa)



A apropriação dos bosques, naturais ou artificialmente criados, tem as suas principias zonas em pontos muito específicos. O seu desenvolvimento territorial é muito menos extenso que o das actividades anteriores, mas também se trata de capitais de enorme montante, ligados à produção de celulose e papel (ver mapa). As principais empresas do sector são a Stora Enzo, Weyerhauser, Aracruz Celulose, Votorantim Celulose, Kablin, Suzano Papel e Celulosa, CELCO y CMPC, as duas últimas com investimentos no sul do Chile.



Evidentemente, além das empresas mencionadas há todo um emaranhado de empresas mais pequenas ligadas às actividades das maiores e totalmente dependentes daquelas, ou os seus níveis de produção não se repercutem nos grandes mercados nem definem as dinâmicas da economia.

A ideia que preside à apresentação do desenvolvimento geográfico destes grandes investimentos vem do interesse em ver a capacidade destes agentes capitalistas para ocupar e definir o território e as suas dinâmicas. Uma das coisas que nos devem preocupar é a forma como o território está a ser explorado e como projectos como a IIRSA reforçam essa tendência.

E, na realidade, apesar de neste campo podermos constatar a grande quantidade e diversidade dos interesses em jogo, é o sujeito hegemónico quem está à frente do processo. Nós sabemos quanto é o território ocupado por bases militares estadunidenses (território estrangeiro), mas seria necessário medir o território ocupado pelas propriedades das empresas para se ficar com uma ideia da dimensão territorial da dominação.

Com esse cálculo ficaríamos em melhores condições para valorizar se a IIRSA é um projecto dos Estados sul-americanos ou uma exigência desses grandes capitais que arrastam os Estados para a formulação de políticas que os beneficiam pois, que são hoje os Estados se não uma parte desse sujeito económico, desse sujeito dominante que por vezes se chama capital brasileiro, outras vezes capital equatoriano, muitíssimas vezes mais capital estadunidense mas que, por fim, revela uma fusão de interesses relacionados com o grande capital das empresas transnacionais, impulsionadas, protegidas e representadas pelo Estado norte-americano?

Inclusive, hoje, ainda que seja difícil falar de nacionalidade do capital, efectivamente há um enorme peso do capital estadunidense em todas as actividades mais importantes, mais dinâmicas e com maior futuro no mundo. É isso que autoriza a continuar a falar do sujeito estadunidense como sujeito hegemónico, isto é, esse grande capital que se aglutina à volta do Estado estadunidense, ainda que contenha alguns mexicanos, brasileiros, japoneses ou capitais provenientes de qualquer outro lugar, mas organicamente incorporados nessa estrutura de poder.

Notas:
Este trabalho contou com a valiosa contribuição de Rodrigo Yedra, membro do Observatório Latinoamericano de Geopolítica.

[1] Basta ver o que está a acontecer no estado brasileiro do Pará, originalmente selvagem, hoje cheio de pastagens para o gado e de crateras mineiras que desflorestam e transformam as lógicas locais de sociabilidade e organização da reprodução.





* Ana Ceceña é Directora do Observatório Latino-americano de Geopolítica no Instituto de Investigações Económicas da Universidade Nacional Autónoma de México.


Este texto foi publicado em www.rebelión.org/


Tradução de José Paulo Gascão

Prioridade na campanha eleitoral: heresia ou alternativa?


Milton Temer
Milton Temer

Texto de Milton Temer

É vasta a pauta de reflexão que se apresenta para a esquerda latino-americana com respeito ao socialismo. Principalmente no que concerne ao modelo de sociedade. Mas não será mais oportuno discutir os meios que nos podem levar à ruptura com o capitalismo? Por tal percurso, não teremos recursos menos infensos ao doutrinarismo para definir os padrões da sociedade que ansiamos construir como contraponto à inevitável perspectiva de barbárie que esse regime nos anuncia?
Independentemente do que pensem movimentistas, a realidade latino americana está comprovando. Se possibilidades existem, aqui e ali,   de transformações revolucionárias, elas não têm surgido pela via normal da insurgência social. O que tem sido comprovado é não haver caminho mais eficaz para a transformação qualitativa da realidade social, nos tempos atuais, que o da conquista do governo, pela eleição presidencial. A não ser pela heroica Revolução Cubana, há meio século, nenhum outro processo de luta armada resultou em conquistas consolidadas, no continente. Pelo contrário, Na América Central, onde mais eles se concretizaram, quando não desapareceram, se transformaram em mantenedores da ordem vigente. Na Colômbia, que serviria de exceção, se é verdade que as FARCs e o ELN não perderam controle de amplas áreas do território, também não é menos verdade que há impasse insuperável nas atuais condições de confronto.  E a saída possível se afirma a cada dia pela inserção organizada no quadro político institucional. Estaria aí, talvez, a alternativa do poder popular a uma crescente acomodação social à direita, como comprovam as pesquisas pró-Uribe, a despeito de tudo de sujo que seu passado consagra.
Ou seja; é pela via institucional; pelas campanhas presidenciais, com posteriores eleições para Assembléias Constituintes encaminhadas pelos presidentes eleitos, que mudanças qualitativas vêm se afirmando na Venezuela, na Bolívia e no Equador.
A despeito dessa realidade incontestável, está aí uma heresia para movimentistas e doutrinaristas de todos os matizes. Uma heresia para os que, na organização das iniciativas de mobilização social, ou eventos de amplitude multinacional, como o Forum Social Mundial, permanecem inflexíveis na censura à participação explícita no jogo institucional, mesmo, ou principalmente, quando conduzida por partidos políticos que se pautam pelo objetivo estratégico do socialismo.
Vamos, então, ao grão, no debate, para tentar chegar a acordos mínimo.
É preliminar incontestável que, por si só, as condições objetivas para a ruptura com a ordem vigente não produzem revolução. Às condições objetivas favoráveis, é fundamental acrescentar o papel subjetivo do agente transformador; do sujeito revolucionário. Porque, e é bom não cessar de repetir, como corretamente prenunciou Marx, se é verdade que os homens não desenham seus passos futuros a despeito das circunstâncias da realidade em que vivem, também não é menos verdade que, mesmo que a realidade lhes seja inteiramente propícia, são eles, esses homens, e não um determinismo histórico mecanicista, quem pode produzir a ruptura capaz de os transportar da ordem vigente a uma ordem social superior.
Sujeito Revolucionário... De quem falamos quando nos referimos a Sujeito Revolucionário? O que é o proletariado do capitalismo resultante da grande revolução tecnológica do século XX, no qual a acumulação especulativa se impôs à produtiva? Certamente não estamos falando do operário da linha de produção industrial exclusivamente. Em função de tudo o que se destruiu, e se criou, no cenário dessa revolução tecnológica implantada sob a égide do capital financeiro, e de todo o espectro de contra-valores que ele carrega, estamos tratando de algo muito mais difuso.
Estamos falando de profissionais liberais, trabalhadores autônomos, informais, passando obrigatoriamente, e isto é fundamental, por uma parte significativa das Forças Armadas. Sim, parte significativa das Forças Armadas, para se contrapor ao setor tradicionalmente vinculado às concepções de que defender a ordem é defender a estrutura da sociedade burguesa.
E aí está o busílis. Como aglutinar esse conjunto disperso de segmentos interessados num mesmo objetivo, mas muito distantes no quotidiano da vida?
Ora, se formos realistas para compreender que lutas setorizadas, aqui e ali, são como jangadas isoladas em meio ao oceano, sem nenhuma intercomunicação permanente, podemos ter certeza de que daí nunca saíra uma esquadra de combate organizado. Não será, portanto, apenas dos chamados movimentos - independentemente de suas capacidades mobilizantes e organizativas - que surgirá o polo dirigente no momento decisivo. Principalmente no caso brasileiro, no qual o que preenche de forma principal tais qualidades é um movimento de luta agrária, é o MST, de alcance eficaz diminuto nos decisivos centros urbanos, onde se concentra mais de 80% da nossa população ativa.
Se possibilidade existe, portanto, ela está no único momento em que os meios alienantes de opressão ideológica não estão exclusivamente controlados pelo grande capital. Ela está na campanha eleitoral, principalmente na disputa da Presidência da República, e muito também na dos candidatos a cargos parlamentares.
Vale aqui, para fazer a citação sempre exigida pelos que se movem exclusiva e estaticamente pela doutrina, recorrer a Engels, num dos seus textos, para fácil constatação: a Introdução à edição de 1895 de "As lutas de classe na França de 1848 a 1850", do velho Marx.
Tratava-se, então, de um embate político com os que só viam o caminhos da insurreição armada, da luta nas barricadas, como caminho para por fim ao domínio da burguesia, outrora aliada, então inimiga ferrenha do proletariado ascendente.
(...)Graças ao discernimento com que os operários alemães utilizaram o sufrágio universal introduzido em 1866, o crescimento do partido (socialdemocrata) surge abertamente (...). Em 1871, 102 mil (...) Em 1890, 1,787 milhão, mais de um quarto do total de votos expressos.
Para Engels, os operários haviam operado com competência o preconizado em programa dos marxistas franceses, transformando o direito de voto, "de um instrumento de logro, que tinha sido até aqui, em instrumento de emancipação". E a razão do êxito da participação no sufrágio universal vem logo a seguir:
"Na agitação da campanha eleitoral, forneceu-nos um meio ímpar de entrarmos em contato com as massas populares no que elas ainda se encontram distantes de nós. E de obrigar todos os partidos a defender perante todo o povo as suas concepções e ações face aos nossos ataques".
Engels vai mais longe. Mostra a importância das bancadas parlamentares, ao afirmar que para além do que a campanha eleitoral propicia, a eleição de deputados
"abriu aos nossos representantes uma tribuna no Reichstag, de onde podiam se dirigir-se aos seus adversários no Parlamento, e às massas fora dele, com uma liberdade e autoridade totalmente distintas das que se tem na imprensa".
Se ainda não for suficiente, podemos recorrer a Gramsci, no artigo 'Os Revolucionários e as Eleições", no 'Ordine Nuovo', de 15 de novembro de 1919:
"(...) a revolução encontra as grandes massas populares italianas ainda informes, ainda pulverizadas num fervilhar animalesco de indivíduos sem disciplina e sem cultura, que obedecem apenas aos estímulos do ventre e das paixões bárbaras. Precisamente por isso é que os revolucionários conscientes aceitaram a luta eleitoral: para criar uma forma primordial nesta multidão; para vinculá-la à ação do Partido Socialista, para dar um sentido e um vislumbre de consciência política (...)
É possível produzir formulações com maior atualidade para a conjuntura que vivemos?
É claro. Haverá sempre alguém lembrando que uma coisa é o crescimento do partido, utilizando as contradições dos instrumentos institucionais burgueses para combater a própria burguesia. Outra são os exemplos históricos de rendição inevitável após a chegada ao poder, quando a traição programática e a submissão aos interesses da burguesia jogam os programas prometidos no lixo da história. Não só pelo exemplo da própria socialdemocracia européia (nunca é demais lembrar que foi um governo socialdemocrata, eleito, quem entregou Rosa de Luxemburgo e Karl Liebnitch aos seus assassinos), e que terminou, no passado recente, fazendo o jogo sujo da implantação da restauração neoliberal que a direita não tinha condições de, só por ela, concretizar. Há também o próprio contexto brasileiro, em que o PT, socialista no programa, se transformou, sob a égide do governo Lula, num bastião mais eficaz de defesa do grande capital do que o havia sido o antecessor mandarinato tucano-pefelista de Fernando Henrique Cardoso.
Mas para o bem ou para o mal, nesse ponto é que devemos introduzir o poder do subjetivo, atuando sobre a realidade objetiva - conceito de que a história não se faz por ela,  mas pelos homens, quando traçam seu destino. Se, conquistado o governo através da Presidência da República, o representante da esquerda que aí chegar, após a campanha que nunca  deixará de ser renhida, terá chegado num clima de mobilização social intensa. E tem dois caminhos.
Quando chega proclamando que "a partir da eleição sou presidente de todos", estará cometendo traição inominável contra a cidadania que o elegeu. Porque ninguém pode ser, a priori, presidente de todos. Quando assim se coloca, certamente já se entregou aos de cima; aos poderosos; aos que terá derrotado no processo eleitoral, mas contra os quais não quer se indispor - por covardia ou por opção ideológica, oculta durante a campanha e diante do programa que pretendeu promover.
Foi o caso de Lula. Sua primeira entrevista coletiva após a confirmação da vitória eleitoral foi ao Jornal Nacional da Globo. Sentadinho na cadeira suplementar, e sob comando dos apresentadores, com todo o respeito aos patrocinadores do intervalo comercia; já estava ali o simbolismo, confirmado ao longo do mandato, da transformação do líder rebelde em capataz do patronato. Diferente, e muito, de um  saudoso burguês moderado, Tancredo Neves, que nunca se pretendeu socialista nem rebelde, mas que, eleito pelo voto indireto de colégio eleitoral ilegítimo do fim da ditadura, teve a ousadia de se apresentar ao conjunto de jornalistas - nacionais e estrangeiros - a partir da mesa do Congresso Nacional. Para, entre outras propostas, declarar que "não pagaria a dívida externa com o sangue do povo brasileiro". E criticar a ditadura de Pinochet.
Mas, se Lula se dobrou, mostrando que o medo se suplantara à esperança, essa não foi a opção de Chavez, Rafael Correa ou Evo Morales, chegados à Presidência pela mesma via institucional. Estes nunca se escafederam da responsabilidade que sua eleição contra a corrente lhes colocou sobre os ombros. Nunca se anunciaram presidentes de todos, porque sempre se afirmaram eleitos para mudar; e mudar em profundidade, em favor do povo trabalhador. Promovendo processos constitucionais em confronto com as então classes dominantes, e não se apequenando diante da direita troglodita.
Assim já havia sido com Allende, no Chile, cuja experiência, a ser vivida nos tempos de hoje, teria certamente se desenrolado sem o enlace trágico daquele período em que a guerra fria dava legalidade ilegítima ao aporte material e militar escandaloso da diplomacia Nixon-Kissinger aos golpistas da América Latina.
E assim já havia sido, guardadas as proporções, com João Goulart, no Brasil - personagem referencial de dois episódios que, levados às conseqüências mais concretas, teriam talvez traçado um outro enredo para a segunda metade do século XX na América Latina. Dois episódios em que o papel do líder foi essencial para o desdobramento dos fatos. Vamos a eles.
1961. Janio renuncia após oito meses de governo. Renúncia bizarra, inesperada, permitindo a interpretação de ter sido manobra para uma espécie de retorno triunfal com poderes autoritários reforçados. Não encontrou respaldo nem na direita que o elegera. Direita que passou a ter como objetivo prioritário a consolidação do veto à posse do vice-presidente eleito (o vice-presidente era, então, votado em cédula própria. Jango era vice na chapa de Lott, mas derrotou o vice de Janio). Contra ele, todas as cargas preconceituosas e reacionárias possíveis. Estava na China, onde encontrara Mao Tse Tung,  no exato momento da renúncia, e havia sido Ministro do Trabalho do governo reformista e nacionalista de Getulio Vargas. No clima de confronto ideológico reinante na época, acumulava as credenciais suficientes para, a despeito de ser um estancieiro gaucho, ser considerado como um aliado dos comunistas.
Os três ministros militares - Marinha, Exército e Aeronáutica - não hesitaram em vetá-lo. E tudo parecia marchar para o controle da junta que tinha ampla maioria na composição de comandos e postos-chave, quando um governador de Estado, sozinho, se rebelou, instalando a Cadeia da Legalidade. Com o controle sobre a Brigada Militar, o governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, se levanta e anuncia um foco de resistência armada contra o golpe em marcha. O suspense ficou por conta do que seria a reação do comandante do III Exército - o mais bem equipado, por conta da paranóia contra a limítrofe Argentina -, general Machado Lopes, certamente alguém da confiança do então ministro Odílio Denis. O suspense durou pouco. Em função da imediata adesão da grande maioria do povo gaúcho, para cuja mobilização o PCB desempenhou papel fundamental, as dissensões começaram a surgir. Comandos de unidades do interior começaram a se manifestar pela manutenção da legalidade e, muito rapidamente , o III Exército  em bloco estava ao lado do governador.
Jango voltou ao país, assumiu sob regime parlamentarista que, pouco depois, derrubava em plebiscito no qual, por larguíssima maioria, o povo restabelecia o regime presidencialista.
1964. A direita reacionária, corrupta e entreguista, que havia falhado no objetivo golpista de 61, não recolhera suas baterias. Pelo contrário. Através de "institutos" amplamente financiados pelo Departamento de Estado, e coordenados internamente pelo embaixador dos EUA Lincoln Gordon, mobilizava todos os meios para impedir as chamadas Reformas de Base que o governo Jango tentava implantar. Não podia aceitar a legislação que controlava fluxos de capital, taxava remessa de lucros das multinacionais e avançava na desapropriação de terras para que a implantação de uma reforma agrária se efetivasse. Com o tonitruante Carlos Lacerda, no governo do Rio, o banqueiro Magalhães Pinto, no governo de Minas Gerais e o  corrupto-mór Ademar de Barros, no governo de São Paulo, a direita orgânica, ademais, controlava os principais meios de comunicação e tinha o apoio da Igreja Católica para a mobilização em torno do "Deus, Pátria e Família".
Mas, quanto ao esquema militar, a direita não tinha postos de relevância nas áreas decisivas. Não tinha comandos nem influência política, a não ser nos Clubes onde se congregavam essencialmente oficiais da reserva.
No entanto, a partir de movimentação de uma coluna sem nenhum poder de fogo, partindo de Belo Horizonte, onde eram mínimos os efetivos do Exército, o governo Jango caiu em dois dias, praticamente sem esboçar resistência.
Como se explica isso? Por que, em setembro de 1961, com o controle total do aparelho de Estado, civil e militar, a direita não consegue se impor e, em abril de 64, menos de três anos depois, despojada de todo equipamento militar, consegue dar o golpe com tanta rapidez?
A resposta pode estar no parágrafo de abertura. Em 61, a opção decisiva de Brizola, com os meios que ativou, inclusive armando a população civil do Estado, comprovou o papel fundamental da liderança na criação de condições objetivas para a organização e mobilização dos movimentos sociais progressistas em torno do objetivo comum: defesa da legalidade, garantindo a posse de Jango.
Em 64, dá-se o oposto. As condições materiais objetivas eram inteiramente favoráveis. A CGT decreta greve geral tão logo a movimentação golpista, ridícula em potencial de combate, a partir de Minas Gerais, se confirma. Movimentação golpista que deixara perplexo os próprios chefes da conspiração, o general Castelo Branco à frente, surpreendidos pela iniciativa do general Mourão. Movimentação golpista ridícula, que seria facilmente barrada caso o presidente João Goulart não tivesse decidido pelo "não-derramamento de sangue". O presidente João Goulart, conscientemente, desmobilizou a resistência militar legal, principalmente a do III Exército, no Rio Grande do Sul, que ainda pretendia se movimentar mesmo depois do presidente do Congresso, Moura Andrade, haver decretado vaga a cadeira presidencial, a despeito da contestação da bancada de parlamentares reformistas, pois Jango ainda estava em território nacional.
Resumindo: em 61, a direita tinha muito mais condições para a concretização do golpe e não logrou implantá-lo. Em 64, a vitória caiu-lhe no colo quando as condições objetivas lhe eram muito mais desfavoráveis.
A diferença entre as duas realidades é clara. Em 61, Brizola assumiu resistir a qualquer preço. Colocou a subjetividade na organização das condições objetivas latentes em parte significativa da sociedade civil. Em 64, diante da necessidade de decisão que poderia levar a uma ruptura conflituosa, mas previsível, o presidente Goulart necessitava saltar uma barreira que lhe pareceu intransponível. A da possibilidade da guerra civil, em condições extremamente mais favoráveis das que, para seu mentor político Getúlio Vargas, haviam sido necessárias para liderar a Revolução de 30.
Houvesse Jango resistido, mesmo que a história não se faça por "se"s, e possivelmente não teríamos vivido a América Latina das ditaduras que se estabeleceram na sequência do golpe no Brasil. Mas, importante registrar. Jango não pode ser crucificado pelos que coincidam com a interpretação dos fatos como acima relatados. Para um estancieiro gaucho, ele já havia ido muito mais longe do que sua formação o permitiria. Se Vargas avançou em 30, sem hesitar, tratava-se ali de uma necessidade da burguesia urbana, ansiando pela industrialização do país. Se Jango avançasse, numa América Latina recém encantada com a Revolução Cubana, o desdobramento não se daria obrigatoriamente dentro dos mesmos limites. Em benefício de Jango, na comparação, é bom não esquecer a traição ideológica do líder sindicalista, operário metalúrgico que cresceu na política defendendo um programa socialista para um partido nascido "contra os patrões" e que chegou à presidência para se transformar no mais eficaz dos protetores dos interesses desses patrões.
Essa, sim, foi a tragédia maior. Porque quando o PT chega ao governo, isso resulta de uma trajetória de duas décadas de luta pelo socialismo. Quando Lula é eleito, o povo escolhera alguém que deveria romper com o modelo vigente, conforme estava gravado no documento final do último congresso que esse PT realizou antes de alcançar o Palácio.
E nos três casos - Brizola, de 61; Jango, de 64 e Lula, de 2002 - o, que se pode constatar é incontestável. Os rumos escolhidos pelos líderes em cada ocasião foram determinantes para o desdobramento histórico, independentemente do que lhes propiciava a realidade objetiva em que operavam.
Para avançar, para não arriscar e para trair.

*Milton Temer é jornalista