Participaram: Bárbara Mengardo, Hamilton Octavio de Souza e
Tatiana
Merlino. Fotos: Jesus
Carlos.
O professor Moacir Gadotti é um dos mais
respeitados educadores brasileiros. Lecionou nos vários
níveis do ensino e nas principais universidades do país. Aposentou-se
pela USP, depois de 46 anos de magistério. Autor de muitos livros,
inclusive em parceria com Paulo Freire – com quem estudou nos anos 70,
na Suíça. Foi assessor de Freire na Secretaria de Educação de São Paulo,
durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992).
Atualmente é diretor do Instituto Paulo Freire, que desenvolve inúmeros
projetos de educação popular. Nesta entrevista exclusiva para Caros
Amigos, Gadotti analisa a situação da educação no Brasil, aponta por
que o país não conseguiu erradicar o analfabetismo, indica os pontos de
avanço e de atraso no sistema educacional.
Caros
Amigos - Fale sobre a sua trajetória, como se tornou educador, quando
passou a trabalhar com Paulo Freire.
Moacir
Gadotti - É muita responsabilidade falar de si mesmo, não é muito fácil.
Mas eu acho que eu sou um professor, simplesmente. Tenho 46 anos de
magistério. Trabalhei desde a pré-escola até a pós-graduação, hoje ainda
continuo na USP.
Está
na USP ou na Unicamp?
Na USP.
Aposentado no ano passado, mas continuo dando aula e orientação na
pós-graduação.
Como
começou na área da educação?
Eu comecei
como professor de Matemática, quando eu estava fazendo o curso de
Pedagogia. Terminei em 67. Iniciei também um curso de Filosofia, mas
demorei dez anos para terminar, porque estava trabalhando e estudava,
foi difícil. Então eu comecei dando aula de Matemática, porque o curso
de Pedagogia daquela época dava uma licença para ensinar Matemática nas
séries iniciais, não era Matemática avançada. Trabalhei em creches, em
pré-escolas, dei aula de Filosofia depois do curso de Pedagogia.
Em São
Paulo?
Em São Paulo. Eu cheguei a dar
aula em oito escolas ao mesmo tempo.
No
ensino público?
Ensino público e privado.
Havia uma aula minha de Filosofia que, depois de 69, o meu programa foi
substituído por Educação Moral e Cívica, foi proibida a Filosofia. Eu me
lembro muito bem, nesse dia eu estava lecionando no Colégio Sagrado
Coração de Jesus e a diretora me falou assim: “Olha, a partir de hoje
você não é mais professor de Filosofia, você é professor de Moral e
Cívica, e aqui está o programa”. Ai eu disse: “Bom, então eu vou passar a
ser professor de Educação Moral e Cívica, mas não vou mudar o
programa”, o programa já estava em andamento. Uma história daquele
período difícil. Depois eu terminei meu curso de Filosofia. Comecei a
dar aula de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira, na Avenida
Paulista, enquanto concluía na PUC o mestrado. O mestrado conclui em 73,
e no mesmo ano fui para Genebra fazer o doutorado a convite de uma
associação de Filosofia de lá. Participei de um concurso em 73, havia
uma só vaga de bolsista e consegui ganhar essa única vaga. Eu também
queria muito ir à Genebra porque o Paulo Freire, em 70, tinha mudado
para lá, e eu tinha trabalhado em 67 com o primeiro livro que saiu do
Paulo Freire, que era “Educação como prática da liberdade”, foi no
trabalho de conclusão de curso de Pedagogia.
Ele
estava exilado nessa época?
Ele foi
pra Genebra em 70, o exílio começou em 64. Ele foi primeiro para a
Bolívia, depois para o Chile, fez uma rápida passagem nos Estados
Unidos, em 69, em 70 ele foi pra Genebra e de lá voltou ao Brasil em
1980. Então eu peguei esse período até 77 com ele, voltei ao Brasil a
convite da Unicamp, em 77. O Paulo conseguiu voltar, definitivamente em
80, como professor da Unicamp e da PUC. Eu lecionei na PUC São Paulo, na
PUCCamp e também na USP, mas eu comecei na Unicamp. Então isso é um
pouco a minha trajetória. E nesse período também me envolvi na fundação
do PT, fui um dos dirigentes da Fundação Wilson Pinheiro, que era a
fundação do Partido dos Trabalhadores na época, um grupo extraordinário,
foi uma grande escola para mim. Tinha a Marilena Chauí, o Paul Singer, o
Florestan Fernandes, o Perseu Abramo. Então para mim foi uma vivência
muito bonita, de participar da executiva do partido como membro da
fundação. Foi lá que eu escrevi o livro “Pra quê PT”, sobre a origem do
PT. Foi lançado na campanha presidencial de 89.
Você
participou também da gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo?
Na época
da fundação do PT o pessoal estava muito envolvido com educação. Então a
gente tinha um pé na escola, um pé na militância. E para mim o Paulo
Freire também foi uma grande escola, uma escola de formação mesmo como
ser humano, como educador. Então, em 89, fui ser assessor de gabinete na
prefeitura. Acho que o Paulo deu para a educação brasileira uma
contribuição enorme, por várias razões: primeira, a fundação do Mova,
movimento de alfabetização, para mostrar que a superação do
analfabetismo brasileiro precisa que a sociedade se envolva. O Estado
não dá conta sozinho, a luta
contra o
analfabetismo exige a mobilização da sociedade. Nós tivemos 97 convênios
de uma vez só e não é só para alfabetizar, ele queria fazer uma
alteração social. Eu lembro que algumas entidades não tinham condição
alguma de fazer convênio com a prefeitura mais burocrática do planeta.
Então o que ele fazia? Tinha um departamento jurídico para ajudar as
entidades a se estruturarem, terem um estatuto, gerarem uma diretoria,
terem uma sede, e assim fazerem o convênio. A ideia era a de que a
educação não era só ensinar o be a bá, era ensinar a população a ser
soberana. E para ser soberana precisa ter organização
social. A educação tem esse papel, não tem que ficar só na questão do
letramento, precisa conscientizar. O Paulo nunca abandonou a ideia da
emancipação, da luta pela libertação, a educação como caminho para a
libertação do ser humano como um direito. A emancipação é um direito. É
um direito de quem vai à escola. A emancipação humana tem a formação da
consciência. Então, o Mova foi algo extraordinário que devia ter sido
assumido como política pública no governo Lula, que
nós,
movimento social, propomos como um avanço da sociedade brasileira nesse
sentido.
Por que
o Brasil não conseguiu até hoje erradicar o analfabetismo?
Bom,
primeiro existe um atraso secular de décadas, um atraso crônico na
educação brasileira, que vem desde os jesuítas, a colônia, o império, a
república. Nós despertamos para a educação no século XX, na década de
30, já que na década de 20 tivemos as primeiras formações de educadores.
Então, esse atraso é crônico, o esforço é muito maior do que o esforço
de dois governos. Nós tivemos um dado muito negativo que saiu no dia 19
de setembro de 2009, do Pnad. Eu me lembro dessa data porque dia 19 é o
dia do nascimento de Paulo Freire, ele completaria 88 anos nesse dia. O
dado é que aumentou o número oficial de analfabetos no Brasil de 2007
para 2008, foram dados do IBGE de 2009. Aumentou o número. Nós temos
hoje o mesmo número de analfabetos que tinha quando Paulo Freire deixou o
Brasil para ir para o exílio: 15 milhões. Continua e aumentou. Quer
dizer, essa pergunta procede. Aumentou em número absoluto e diminuiu a
taxa de analfabetismo, de 9,9% para 9,8%, a taxa caiu 0,1%.
Mas
aumentou a população.
Aumentou a
população. O Estado de São Paulo deu uma grande contribuição para isso.
No Estado de São Paulo nós temos mais de 600 mil analfabetos, só na
região da Grande São Paulo, em torno de 600 mil.
Na
Grande São Paulo?
Na Grande São Paulo. Então, o
analfabetismo é a negação de um direito. O analfabetismo tem a ver com
um conjunto do bem viver das pessoas. Imagina agora:
chegamos a ter mais de 300 classes de catadores de produtos recicláveis
de lixo. Imagina que a pessoa está na rua das 5 horas da manhã até as 7
horas da noite, catando lixo, e às 7 horas da noite vai para uma sala de
aula. É muito difícil essa pessoa ter condições, depois de um dia
passando fome, de se alfabetizar. Então, as condições sociais são
determinantes. Condições sociais de moradia, de trabalho, de emprego, de
saúde, fora a educação. A educação não está desligada, não é um
problema setorial, é um problema estrutural com os outros
condicionantes. Então, a qualidade da educação tem a ver com esses
outros fatores, está ligada. Não estou dizendo que precisa primeiro
resolver o problema da moradia, do emprego, do transporte, para depois
resolver a educação. Isso vai ser junto. O nosso analfabetismo é muito
maior do que de outros países da América Latina. O do Mercosul, por
exemplo, é 2,5%, 3%, o nosso é 9,8%, são 15 milhões de pessoas. Vou dar
dois pontos onde o atraso continua, em que nós paramos, simplesmente
estacionamos: educação de adultos, nós praticamente estacionamos nos
analfabetos. E a outra é na creche, de 0 a 4 anos, onde 34% das vagas
são pagas e apenas 14 em cada 100 crianças de 0 a 4 têm acesso à creche.
O que
isso representa?
Bom, claro que não vamos
considerar que nasceu e já vamos colocar em uma creche, mas quando eu
vejo, principalmente em São Paulo, que uma mãe trabalhadora, empregada
doméstica, sai lá da zona leste para trabalhar nos Jardins e amarra,
acorrenta uma criança de quatro anos e ela é
responsabilizada criminalmente por isso, quem deve ser responsabilizado é
o Estado. A prefeitura aqui tem 84 mil pedidos de vagas em creche que
não são atendidos. É um crime que se faz com essa criança e com essa
mãe. Como é que está uma mãe que vai trabalhar em uma casa, é de chorar
isso aí, é de chorar, é de arrepiar. Eu me coloco na pele dessa mãe que
deixa uma criança em casa, que não tem onde deixar, ou que deixa com
uma outra de sete anos. Essa criança teria que estar na escola, caramba!
Não pode. E é isso que nós sustentamos ainda. Não podemos ficar com 84
mil crianças esperando em São Paulo para ter uma vaga em creche. Está
certo que tem muitos problemas, mas eu acho que começa na base. E
quando se
fala em ensino fundamental, por que a Unesco coloca a gente lá em 88º
lugar? É porque há muita evasão. A gente matricula as crianças, mas a
média de evasão de primeira a oitava série está em torno de 20%.
É uma
quebra de 20%?
É uma quebra de 20%, e se
mantém. E há 40% de defasagem em torno da questão idade-série. Então, a
criança está fora da série que deveria estar. Isso causa, primeiro, um
custo muito elevado, porque você paga duas, três vezes a mesma
matrícula. Então, a evasão custa caro para o Brasil. Eu
sei que o governo federal avançou muito, não só nas últimas décadas, eu
diria até, fazendo jus ao que o FHC fez há oito anos, ele deixou uma boa
legislação. Deixou um plano nacional de educação, que bem ou mal faz um
diagnóstico; deixou uma lei de atividades, bem ou mal, se fossem
cumpridas, dão uma boa base; deixou o sistema nacional de avaliação de
educação básica; do ponto de vista legal, deixou o Fundeb; deixou os
parâmetros curriculares nacionais. E Lula avançou mais ainda. Os três
ministros de Lula avançaram. Mas que há um avanço é reconhecido, há
avanço. Mas aqueles dois pontos, para mim, acho que nós ainda precisamos
avançar muito.
Vamos
retomar um pouco o ponto do analfabetismo. Você não concluiu a resposta
do analfabetismo.
Então, a resposta do
analfabetismo é que, no caso, é muito mais difícil você zerar no ensino
básico, o analfabetismo zero, tem que ter cuidado com esse slogan, eu vi
isso em outros países, na Venezuela, nos Estados Unidos. Cuidado,
porque não é só saber ler, só saber assinar o nome, é muito mais que
isso. Mas haverá, sempre haverá, mesmo nos países
mais avançados, sempre tem lá 0,1%, 0,5% ou 1%. Não é zerar. Mas
digamos, o índice de analfabetismo razoável de 2%, 2,5% têm muitos
municípios que conseguem. Eu mesmo nasci em um município que, na minha
época, não havia nenhum analfabeto, município pobre de Santa Catarina.