Já começam a
aparecer na imprensa russa os primeiros sinais de suspeita quanto ao
pedigree da revolução no Quirguistão. Moscovo parece estar-se afastando
do governo de transição de Roza Otunbayeva, ex-embaixatriz do
Quirguistão em Londres e em Washington.
Os comentários já deixam transparecer sinais de suspeita de que os EUA
estejam por trás do levante de Bishkek. Fala-se de uma máfia da droga,
que teria incitado ao recente derrube do regime de Bishkek com apoio dos
EUA – “os interesses geoestratégicos dos EUA e da narcomáfia
internacional misturaram-se facilmente, para alegria dos dois lados. (…)
Há lógica evidente em valer-se dos serviços dos barões da droga, para
derrubar [o ex-presidente Kurmanbek] de Bakiyev, ele que, dia após dia,
exigia pagamentos cada vez mais altos pela sua lealdade aos EUA”.
Comentarista russo disse à rádio Ekho de Moscovo, que “A revolução
no Quirguistão foi organizada pelo business das drogas.” O Quirguistão é
centro de tráfico de drogas. O cultivo da papoila no Quirguistão
cresceu exponencialmente e é hoje comparável ao que se vê no
Afeganistão.
Têm aparecido matérias na imprensa russa e na imprensa chinesa que
associam a base dos EUA em Manas e os barões da droga. A inteligência do
Irã capturou Abdulmalik Rigi, líder terrorista Jundallah, exatamente
quando viajava ao Quirguistão, para o que se suspeita que fosse uma
reunião na base dos EUA em Manas.
Os comentários que se vêem na imprensa russa contam, em certa
medida, com o beneplácito oficial. Todos têm a ver com a natureza da
revolta em Bishkek e questionam aspectos circunstanciais. Ao mesmo
tempo, Stratfor – o influente think-tank – já começou a divulgar
contra-interpretações, segundo as quais o golpe teria sido apoiado pelos
russos. Entre ditos e contraditos, Moscovo parece estar investindo na
avaliação segundo a qual Washington beneficiou com a consolidação
política de Otunbayeva em Bishkek.
Nas palavras de um comentarista russo, “Há várias indicações de que
Moscovo tem-se mostrado cautelosa nas manifestações relativas ao novo
governo no Quirguistão (…). A verdade é que os políticos que compõem o
novo governo no Quirguistão não são 100% pró-russos (…) e bem poucos são
claramente associados ao ocidente”.
Mas, de facto, Otunbayeva disse ao Washington Post e à revista
Newsweek que o aluguer da base aérea de Manas aos EUA seria prorrogado
“automaticamente” e que “manteremos as mesmas relações de longo prazo
com os EUA”.
Robert Blake, assistente da secretária de Estado dos EUA para a Ásia
Central, disse em Bishkek, depois de dois dias de reuniões com
Otunbayeva, que a liderança dela seria “oportunidade histórica rara para
criar uma democracia que poderá servir como modelo para a Ásia Central e
toda uma vasta região”.
Blake elogiou a mudança de regime em Bishkek como uma “transição
democrática” – e prometeu ajuda dos EUA para “encontrarmos vias rápidas
para melhorar a situação económica e social”.
Os ataques esporádicos contra os russos étnicos no Quirguistão
(estimados em 700 mil pessoas) também fizeram soar sinais de alarme em
Moscovo. O presidente Dmitry Medvedev ordenou que os militares tomassem
as medidas necessárias. Um porta-voz do Kremlin disse que se inclui,
entre essas medidas, aumentar a segurança em torno dos “interesses
russos” no Quirguistão.
Moscovo dá sinais de não estar convencida de que os ataques aos
russos tenham sido incidentes isolados. Sente-se no ar o risco de que a
situação degenere em anarquia, com gangs armadas tomando a lei nas
próprias mãos e os clãs do sul do Quirguistão trabalhando para
reinstalar Bakiyev no poder. Seja como for, Medvedev claramente mudou de
tática na 3ª.-feira [20de Abril], depois de visitar o presidente Islam
Karimov do Uzbequistão. Muito visivelmente, manifestou-se na direcção de
afastar a Rússia de qualquer identificação com o governo de transição
de Otunbayeva. Disse Medvedev:
“Essencialmente, temos de revitalizar o Estado. Hoje, não há Estado.
O Estado foi deposto. Esperamos que esse governo de transição tome as
medidas necessárias para essa revitalização. A anarquia terá efeito
negativo para os interesses do povo do Quirguistão e seus vizinhos. É
extremamente importante legitimar as autoridades, o que significa que é
preciso organizar eleições, não apenas um simulacro de nomeações para
vários cargos dos três poderes. Só depois disso será possível
desenvolver alguma cooperação económica com a Rússia.
A Rússia estendeu a ajuda humanitária ao Quirguistão, mas plena
cooperação económica só será possível depois que forem criadas
instituições de poder adequadas. O presidente do Uzbequistão partilha o
mesmo ponto de vista.”
A união entre russos e uzbeques desafiou o governo de transição a
não se sentir governo legalmente constituído – por mais robusto que seja
o apoio que obtenha dos EUA.
Claramente, Moscovo e Tashkent estão trabalhando para que Otunbayeva
não tome decisões políticas importantes (por exemplo, sobre o destino
da base dos EUA em Manas). Ela deve, em vez disso, organizar novas
eleições e formar novo governo eleito.
Otunbayeva já se manifestou a favor de reformas constitucionais de
longo alcance, principalmente para transformar o Quirguistão em
democracia parlamentar, bem diferente do actual sistema presidencial de
governo. Moscovo vê aí, oculta, a intenção, no governo de transição, de
adiar as eleições, contando, para isso, com o poder dos EUA.
Enquanto isso, Bakiyev saiu do Cazaquistão a semana passada,
mudando-se para Belarus. Não se sabe o quanto, nesse movimento, teria
sido iniciativa de Minsk, que teria oferecido asilo a Bakiyev. Logo
depois de chegar a Minsk, Bakiyev anunciou que ainda não renunciara ao
seu posto. “Nenhum poder me obrigará a renunciar à presidência. O
Quirguistão não será colónia de ninguém” – disse ele. E conclamou os
líderes mundiais a não reconhecer o governo de Otunbayeva.
O movimento de Bakiyev cria dificuldades para Washington. Os EUA
davam-se muito bem com Bakiyev e continuam a dar-se muito bem hoje,
também, com Otunbayeva. Mas não há meio de persuadir Bakiyev a aceitar
uma transição legal, ordeira, do poder, para Otunbayeva.
Mas Washington também não pode subscrever o governo de Otunbayeva,
enquanto sua legitimidade for contestada na região (inclusive dentro do
próprio Quirguistão). Além disso, Otunbayeva não se pode considerar
estável, se deixa o país deslizar na direção da luta entre clãs, da
fragmentação e da anarquia.
Na visita de dois dias a Moscovo, Karimov deixou bem claro que
Tashkent prevê desenvolvimentos sombrios na troca de governo em Bishkek.
Em linguagem forte, Karimov disse que “há grave perigo de que o que
está a acontecer no Quirguistão se torne mudança permanente. Já está
criada a ilusão de que seria muito fácil derrubar um governo legalmente
eleito” – e alertou para o risco de a instabilidade no Quirguistão
“infectar” outros Estados na Ásia Central.
Rússia e Uzbequistão consideraram oportuno dar as mãos. Medvedev
destacou que suas conversas com Karimov em Moscovo aconteceram em clima
de “confiança e compromisso em todos os aspectos de nossas relações
bilaterais e nossos negócios regionais e internacionais”. Karimov
respondeu no mesmo diapasão: “O Uzbequistão vê a Rússia como parceira
confiável e firme, o que comprova que a Rússia desempenha papel crítico
no trabalho de preservar a paz e a estabilidade no mundo e,
especificamente, na Ásia Central.”
“Os nossos pontos de vista coincidem completamente”, disse o
presidente do Uzbequistão, e concluiu: “O que se passa hoje no
Quirguistão não beneficia ninguém. Não beneficia, sobretudo, os países
limítrofes do Quirguistão.”
O primeiro-ministro russo Vladimir Putin também falou de alinhamento
regional: “o Uzbequistão é o país-chave na Ásia Central. Temos relações
muito especiais com o Uzbequistão”, disse ele.
É muito provável que, agora, Rússia e Uzbequistão contem com que os
desenvolvimentos no Quirguistão sejam introduzidos na agenda do encontro
da Organização de Cooperação de Xangai [ing. Shanghai Cooperation
Organization (SCO)], marcada para a capital Tashkent, em Junho.
Segundo comentário russo semioficial, “A reunião [da SCO] poderá
ajudar a criar e implantar mecanismos que garantam a segurança no país e
em toda a Região.” O secretário-geral da Organização de Cooperação de
Xangai (com sede em Pequim) visitou Bishkek semana passada e reuniu-se
com Otunbayeva.
Washington tem pela frente uma potencial dor de cabeça diplomática.
Precisa garantir que a próxima reunião da SCO não se converta em replay
da reunião de 2005 – que questionou a própria razão de ser da presença
militar dos EUA na Ásia Central.
Se Washington forçar o passo do grande jogo, pode sofrer o coice do
chicote – que pode virar bola de neve e levar, até, à retirada dos EUA
da base de Manas, opinião que já se ouve, como reivindicação, em algumas
secções influentes da opinião no Quirguistão.
Se a coisa chegar a esse ponto, a grande questão será se Otunbayeva
saberá tirar as castanhas do lume pelos EUA. Original da cidade sulista
de Osh, mas tendo vivido toda a vida adulta na capital, dominada por
clãs do norte, ela não tem base social ou política e está em posição de
desvantagem.
A realidade geopolítica é que o Quirguistão tem de estar em harmonia
com os interesses das potências regionais – sobretudo Rússia e
Uzbequistão –, como também os EUA deveriam procurar estar, em nome do
superior interesse da estabilidade em toda a região. Por mais que se
deva buscar essa harmonia, o facto é que a influência dos russos e
uzbeques (além da dos kazaques) ainda é preponderante na sociedade e na
política do Quirguistão.
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O Kremlin não se deixará cair duas vezes na mesma armadilha. Na Geórgia,
sob circunstâncias em geral similares, os EUA receberam generoso apoio
da Rússia no tormentoso inverno de 2003 para limpar os restos da
revolução “Cor-de-rosa” e estabilizar a situação; até que, de repente,
os EUA deram posse a Mikheil Saakashvili, o qual, desde então, é como
espinho espetado na carne viva de Moscovo.
* O embaixador M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira nos Serviços
Estrangeiros da Índia e é hoje analista político em Ásia Times.
Tradução de Caia Fittipaldi