A Fifa controla o
dinheiro, marca os adversários e dribla a Justiça
Flavia
Tavares, de O Estado de S. PauloEnquanto o English Team
sofria para passar às oitavas contra a Eslovênia, o escocês Andrew
Jennings desfiava o sarcasmo adquirido ao longo da vida de repórter
investigativo na Inglaterra, na BBC e em grandes jornais. Com a pontaria
muito mais calibrada que a dos artilheiros desta Copa do Mundo, o
jornalista vai relatando casos de corrupção que apurou para produzir
seus três livros sobre o Comitê Olímpico Internacional (COI) e outro
sobre a Federação Internacional de Futebol (Fifa) – mesmo sendo o único
jornalista do mundo banido das coletivas da entidade desde 2003.
O
jornalista inglês Andrew Jennings relata em livro casos de corrupção
dentro da FIFA um dos escândalos relatados por ele em 2006, no livro
Foul! The Secret World of Fifa (não traduzido no Brasil), teve um
desfecho na sexta-feira. Altos dirigentes da organização máxima do
futebol receberam propina, admitiu a Justiça suíça. Mas eles não serão
punidos porque a lei do país, que é sede da Fifa, permitia o “bicho” na
época.
Os figurões pagarão apenas os custos legais e suas
identidades não serão reveladas. “É por isso que meu segundo livro sobre
o tema será uma comparação da Fifa com o crime organizado”, conta. Ele
optou por publicar a obra depois das eleições na entidade, em maio de
2011, embora duvide que alguém vá enfrentar o dono da bola, Joseph
Blatter. “Ninguém ousa desafiar a Fifa porque eles controlam o dinheiro.
E a imprensa cala”, dispara Jennings.
Em suas investigações
sobre a Fifa, o que o senhor descobriu?A Fifa é comandada
por um pequeno grupo de homens – não há mulheres em altos postos da
entidade e isso fala por si – que está lá há muitos anos. São homens em
quem não devemos confiar e contra quem temos provas contundentes. Eles
podem continuar no poder porque controlam o dinheiro. E tornam a vida
dos dirigentes das confederações nacionais muito boa e fácil. Fico
envergonhado porque ninguém se manifesta contra esse poder.
Como
os dirigentes se manifestariam?Zurique, sede da Fifa, é
uma Pyongyang do futebol. O líder fala e os outros agradecem. Numa
democracia é esperado que haja discordância, oposição. Na Fifa, não há.
Eles têm um congresso a que, ironicamente, chamam de parlamento. São
cerca de 600 delegados – acho que são 2 ou 3 por país representado, e
são 208 países. Se você chegasse de Marte acharia que o mundo é
perfeito, porque todos concordam. É vergonhoso. Nisso, a CBF é tão
culpada quanto todas as outras confederações.
Que
instrumentos a Fifa usa para manter esse poder?A Fifa dá
cerca de US$ 250 mil por ano para cada país investir em futebol. Na
Europa, não precisamos desse dinheiro. A indústria do futebol fatura o
suficiente para se alimentar. Mas é uma forma de a Fifa se manter. Esse
dinheiro nunca é auditado. Na Suíça, a propina comercial não era ilegal
até pouco tempo, apenas o suborno de oficiais do governo. O caso que eu
conto no meu livro é justamente sobre um esquema de propinas pagas pela
International Sport and Leisure (ISL), empresa que negociava os direitos
televisivos e de marketing da Fifa. A história é cheia de detalhes, mas
no final a ISL só foi responsabilizada pelo fato de gerenciar mal seus
negócios enquanto devia para outras empresas.
Não houve
punição?Como eu disse, o pagamento de propina não era
ilegal na Suíça. Portanto, não havia crime a ser punido. As acusações
contra a Fifa foram retiradas e a entidade foi multada em 5,5 milhões de
francos suíços (cerca de US$ 5 milhões) para custos legais.
Por
que os governos não se envolvem ou a Justiça não faz algo?Porque
a sede da Fifa é na Suíça e a lei lá é muito permissiva. Para outros
países, é inaceitável que esses homens se safem tão facilmente e que os
altos dirigentes riam da nossa cara desse jeito. O que me deixa enojado é
que os líderes dos países – o primeiro-ministro britânico, o presidente
Lula e todos os outros – façam negócio com essas pessoas. Eles deveriam
lhes negar vistos, deveriam dizer que não querem se relacionar com
dirigentes tão corruptos. E tenho certeza de que, se os governantes se
voltassem contra a corrupção da Fifa, teriam apoio maciço dos
torcedores/eleitores.
Por que todos são tão complacentes?Suponhamos
que você seja uma torcedora fanática pelo seu time. Você vai à Copa do
Mundo, mas como sempre há escassez de ingressos. Você então compra suas
entradas de cambistas, mesmo sabendo que parte desse ágio vai voltar
para o bolso da Fifa, já que ela é suspeita de liberar esses ingressos
para os ambulantes. Você não pode provar, claro, mas você sabe. As
pessoas não são estúpidas. Os governos menos ainda, eles podem
investigar o que quiserem. Mas não investigam a Fifa porque os políticos
simplesmente ignoram os torcedores. É o que já está acontecendo com a
Copa de 2014. Qualquer brasileiro com mais de 10 anos sabe que a
corrupção já está instalada. Por que ninguém faz nada?
Por
quê?É difícil saber. Se um país relevante enfrentasse a
Fifa ela recuaria. Ou você acha ela excluiria o Brasil de uma Copa? Eles
conseguem enganar países pequenos, esquecidos pelo mundo. Mas, se o
Brasil dissesse não à corrupção, provavelmente a América Latina se
uniria a vocês. E você acha que esses líderes latino-americanos nunca
discutiram a possibilidade de um levante, de fazer o que os europeus já
deveriam ter feito há tempos? Acho que lhes falta coragem.
O
Brasil tentou fazer uma investigação, por meio de uma CPI.Tentou
e foi ao mesmo tempo uma vitória para o país e uma grande decepção,
porque pararam de investigar no meio. O povo vai ter de pressionar os
políticos a fazer algo. É realmente uma pena que o Brasil tenha chegado
tão longe na investigação e tenha desistido no caminho. Havia provas
para seguir em frente, para tirar a CBF das mãos do Ricardo Teixeira e,
quem sabe, colocar auditores independentes lá dentro. A Justiça também
poderia ser mais ativa. Por mais que eles tenham comprado alguns juízes,
não compraram todos, certamente.
Sabendo de tudo isso o
senhor ainda consegue curtir o futebol, se divertir com ele?Sim,
porque a corrupção não está tão infiltrada nos jogos, embora chegue a
essa ponta também. Ela fica mais nos bastidores. Há exceções, como na
Copa de 2002, em que a Espanha e a Itália foram roubadas grotescamente.
Era importante para a Fifa que a Coreia do Sul passasse adiante. Não foi
culpa dos jogadores, mas as razões políticas e econômicas se impuseram.
Na Coreia, o beisebol é mais popular do que o futebol. Se eles fossem
desclassificados, os estádios se esvaziariam. Neste ano, todos ficaram
de olho nos jogos de times africanos. Blatter também precisa de um time
do continente nas oitavas. A questão é que, quando assistimos às
partidas, assistimos aos atletas, ao esporte, então, é possível confiar.
É fácil punir um árbitro corrupto e a maioria não é corrompida.
Então,
a corrupção não interfere tanto no esporte?Cada centavo
que os dirigentes tiram ilicitamente da Fifa ou das organizações
nacionais é dinheiro que eles tiram do esporte e de investimentos.
Portanto, estão desviando de nós, torcedores, e dos atletas que jogam no
chão batido em países subdesenvolvidos. Eles tiram dos pobres.
É
possível para os jogadores, técnicos e dirigentes se manterem distantes
da corrupção no futebol?Bom, o dinheiro normalmente é
tirado do orçamento do marketing, não afeta jogadores e técnicos dos
times nacionais. Uma coisa interessante é o comitê de auditoria interna
da Fifa. Um dos membros é José Carlos Salim, que foi investigado muitas
vezes no Brasil. Por que você acha que ele está lá? Para fingir que não
vê.
A corrupção no futebol começa nos clubes e se espalha ou
vem de cima para baixo?Sempre haverá um nível de
roubalheira em todas os escalões. Para isso temos leis e, às vezes,
conseguimos aplicá-las. Mas a pior corrupção está na liderança mundial.
Quase todos os países assinam tratados internacionais anticorrupção, mas
não fazem nada quanto aos desmandos da Fifa e do COI. E, quando algum
governante tenta ir atrás de dirigentes de futebol corruptos, a Fifa
ameaça suspender o país. Só que ela faz isso com os pequenos. Fizeram
isso com Antígua! Suspenderam o país minúsculo que ousou processar o
dirigente nacional. Ninguém falou nada. Eu escrevi sobre isso porque
tenho fãs lá que me avisaram do caso.
O senhor se sente uma
voz solitária na imprensa?Não confio na cobertura esportiva
das agências internacionais. Em outras áreas elas são ótimas. Não no
esporte. É uma piada. Apresento documentários com denúncias graves sobre
a Fifa na BBC, num programa de jornalismo investigativo chamado
Panorama, e dias depois a BBC Sport faz um programa inteiro em que
Joseph Blatter apresenta alegremente a nova sede da Fifa em Zurique.
O
senhor acompanhou a briga do técnico Dunga com a imprensa brasileira?Não
vou comentar o episódio porque não acompanhei de perto. Posso dizer que
a imprensa inglesa e a da maioria dos países é puxa-saco. E sem razão
para isso. A desculpa é que os editores têm medo de perder o acesso às
seleções e à Fifa. Bobagem. Ora, eu fui banido das coletivas da Fifa
sete anos atrás e ainda consegui escrever um livro e fazer várias
reportagens. A imprensa deve atribuir as responsabilidades às
autoridades. Se não fizer isso, é relações públicas. Tenho milhares de
documentos internos da Fifa que fontes me mandam e não param de chegar.
Por que só eu faço isso?
A cobertura se concentra mais no
evento esportivo em si e nas negociações de jogadores?Exato,
também porque a chefia das redações tende a se concentrar nos assuntos
de política nacional, internacional e na economia e deixar o esporte em
segundo plano.
O que o senhor espera da Copa no Brasil, em
2014?Há algumas semanas, o secretário-geral da Fifa, Jérôme
Valcke, deu um piti público cobrando o governo brasileiro para que
acelerasse as construções para a Copa. Estranhei muito, porque não
imagino que o governo brasileiro se recusaria a financiar uma Copa.
Vocês são loucos por futebol, estão desenvolvendo sua economia, têm
recursos e podem achar dinheiro para isso. Uma fonte havia me dito que
Valcke e Ricardo Teixeira tinham tirado férias juntos, estavam de bem.
Então, o que está por trás dessa gritaria? É pressão para o governo
brasileiro colocar mais dinheiro público nas mãos da CBF. Mundialmente,
as empreiteiras têm envolvimento com corrupção. Dá para sentir o cheiro
daqui.
Três de seus livros são sobre as Olimpíadas. As
falcatruas acontecem em qualquer esporte ou são predominantes no
futebol?Sou cuidadoso ao falar disso. Sei que a liderança
da Fifa é muito corrupta – e venho publicando isso há mais de dez anos
sem que eles tenham me processado nem uma vez sequer, o que diz muito. O
COI era muito pior sob o comando de Juan Antonio Samaranch (morto em
abril deste ano), que presidiu a entidade de 1980 a 2001. Ele era um
fascista e o fascismo é, além de tudo, uma pirâmide de corrupção.
Samaranch trabalhou ao lado do generalíssimo Franco. Essa cultura
franquista e fascista se transformou em uma cultura gângster.
A
corrupção no COI diminuiu com a saída de Samaranch?Vou
ilustrar com uma história. No meu site publiquei uma foto de Blatter
cumprimentando um mafioso russo, em 2006, em um encontro com dirigentes
do país. O russo foi quem fez o esquema em Salt Lake, na Olimpíada de
Inverno de 2002, para que os conterrâneos ganhassem o ouro em patinação
artística. Pois bem, Blatter, Havelange e muitos outros da Fifa são
parte do comitê do COI. Essa é a dica de como a Rússia está agindo para
sediar a Copa de 2018.
Foi assim que o Brasil conseguiu a
Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016?Na votação em
Copenhague, que deu a sede olímpica para o Rio de Janeiro, o nível de
investigação jornalística foi ridículo, só víamos a praia de Copacabana
com o povo feliz. Há um grupo no COI que já foi denunciado por receber
propina no escândalo da ISL – e quem acompanha a entidade sabe quem eles
são. Os dirigentes dos países só precisam pagar umas seis ou sete
pessoas para conseguir o voto. Existe, com certeza, uma sobreposição
entre os métodos da Fifa e do COI. Mas a cultura das duas entidades não é
tão estrita quanto à de uma máfia, é mais como se fossem máfias
associadas, apoiadas umas nas outras. Coca-Cola, redes de fast-food,
Adidas, você acha que essas companhias não sabem o que está acontecendo?
Eles não são estúpidos. A cara de pau é tamanha que Jacques Rogue,
presidente do COI, disse em Turim, em 2006, que o COI e o McDonald’s
compartilham os mesmos ideais. Será que ele não sabe quanto a obesidade
infantil é um problema gravíssimo em vários países? Ou faz parte do jogo
ceder a esses interesses?