"Quando o mal é mais audacioso, o bem precisa ser mais corajoso." (Pierre Chesnelong, 1820-1894, político francês
Agosto, mês de cachorro louco, marcou o décimo ano da mais longa e
infame ação na Justiça brasileira contra a liberdade de expressão.
É movida pela família do ex-governador Germano Rigotto, 60 anos,
agora candidato ao Senado pelo PMDB do Rio Grande do Sul e supostamente
alheio ao processo aberto em 2001 por sua mãe, dona Julieta, hoje com 89
anos. A família atacou em duas frentes, indignada com uma reportagem de
quatro páginas, publicada em maio daquele ano em um pequeno mensário
(tiragem de 5 mil exemplares) de Porto Alegre, o JÁ, que jogava
luzes sobre a maior fraude da história gaúcha e repercutia o
envolvimento de Lindomar Rigotto, filho de Julieta e irmão de Germano.
Uma ação, cível, cobrava indenização da editora por dano moral. A outra, por injúria, calúnia e difamação, punia o editor do JÁ
e autor da reportagem, Elmar Bones da Costa, hoje com 66 anos. O
jornalista foi absolvido em todas as instâncias, apesar dos recursos da
família Rigotto, e o processo pelo Código Penal foi arquivado. Mas, em
2003, Bones acabou sendo condenado na área cível ao pagamento de uma
indenização de R$ 17 mil. Em agosto de 2005 a Justiça determinou a
penhora dos bens da empresa. O JÁ ofereceu o seu acervo de
livros, cerca de 15 mil exemplares, mas o juiz não aceitou. Em agosto de
2009, sempre agosto, quando a pena ascendera a quase R$ 55 mil, a
Justiça nomeou um perito para bloquear 20% da receita bruta de um jornal
comunitário quase moribundo, sem anúncios e reduzido a uma redação
virtual que um dia teve 22 jornalistas e hoje se resume a dois – Bones e
Patrícia Marini, sua companheira. Cinco meses depois, o perito foi
embora com os bolsos vazios, penalizado diante da flagrante indigência
financeira da editora.
Até que, na semana passada, no maldito agosto de 2010, a família de
Germano Rigotto saboreou mais um giro no inacreditável garrote judicial
que asfixia o jornal e seu editor desde o início do Século 21: o juiz
Roberto Carvalho Fraga, da 15ª Vara Cível de Porto Alegre, autorizou o
bloqueio online das contas bancárias pessoais de Elmar Bones e seu sócio
minoritário, o também jornalista Kenny Braga. Assim, depois do cerco
judicial que está matando a editora, a família Rigotto assume o risco
deliberado de submeter dois dos jornalistas mais conhecidos do Rio
Grande ao vexame da inanição, privados dos recursos essenciais à
subsistência de qualquer ser humano.
O personagem de Scorsese
Afinal, qual o odioso crime praticado pelo JÁ e por Elmar
Bones que possa justificar tanta ira, tanta vindita, ao longo de tanto
tempo, pelo bilioso clã Rigotto? O pecado do jornal e seu editor só pode
ter sido o jornalismo de primeira qualidade, ousado e corajoso, que lhe
conferiu em 2001 os prêmios Esso Regional e ARI (Associação
Riograndense de Imprensa), os principais da categoria no sul do país,
pela reportagem "Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes
não esclarecidas".
A primeira morte era a de uma garota de programa, Andréa Viviane
Catarina, 24 anos, que despencou nua do 14º andar de um prédio na Rua
Duque de Caxias, no centro da capital gaúcha, no fim da tarde de 29 de
setembro de 1998. O dono do apartamento, Lindomar Rigotto, estava lá na
hora da queda. Ele contou à polícia que a garota tinha bebido uísque e
ingerido cocaína. Nenhum vestígio de álcool ou droga foi confirmado nos
exames de sangue coletados pela criminalística. O laudo da necropsia diz
que a vítima mostrava três lesões – duas nas costas, uma no rosto – que
não tinham relação com a queda. Ela estava ferida antes de cair, o que
indicava que houve luta no apartamento. Um teste do Instituto de
Criminalística indicou que o corpo de Andréa recebeu um impulso no
início da queda.
No relatório que fez após ouvir Rigotto, o delegado Cláudio Barbedo,
um dos mais experientes da polícia gaúcha, achou relevante anotar:
"[Lindomar] depôs sorrindo, senhor de si, falando como se estivesse
proferindo uma conferência". Os repórteres que o viram chegar para
depor, no dia 12 de novembro, disseram que ele parecia "um personagem de
Martin Scorsese", famoso pelos filmes sobre a Máfia: Lindomar usava
óculos escuros, terno azul marinho, calça com bainha italiana, camisa
azul, gravata colorida e gel nos cabelos compridos. O figurino não
impressionou o delegado, que incluiu na denúncia o depoimento de uma
testemunha informando que Lindomar era conhecido como "usuário e
traficante de cocaína" na noite que ele frequentava – por prazer e
ofício – como dono do Ibiza Club, uma rede de quatro casas noturnas que
agitavam as madrugadas no litoral do Rio Grande e Santa Catarina. Em
dezembro, o delegado Barbedo concluiu o inquérito, denunciando Lindomar
Rigotto por homicídio culposo e omissão de socorro.
Lindomar só não sentou no banco dos réus porque teve também uma morte
violenta, 142 dias após a de Andréa. Na manhã de 17 de fevereiro, ele
fechava o balanço da última noite do Carnaval de 1999, que levou sete
mil foliões ao salão do Ibiza da praia de Atlântida, a casa mais
badalada do litoral gaúcho. Cinco homens armados irromperam no local e
roubaram a féria da noitada. Lindomar saiu em perseguição ao carro dos
assaltantes. Emparelhou com eles na praia vizinha, Xangrilá, a três
quilômetros do Ibiza. Um assaltante botou a arma para fora e disparou
uma única vez. Lindomar morreu a caminho do hospital, com um tiro acima
do olho direito. Tinha 47 anos.
O choque de Dilma
A trepidante carreira de Lindomar Rigotto sofrera um forte solavanco
dez anos antes, com seu envolvimento na maior fraude da história gaúcha:
a licitação manipulada de 11 subestações da Companhia Estadual de
Energia Elétrica (CEEE), uma tungada em valores corrigidos de
aproximadamente R$ 840 milhões – 21 vezes maiores do que o escândalo do
Detran que submeteu a governadora Yeda Crusius a um pedido de
impeachment, quase três vezes mais do que os desvios atribuídos ao clã
Maluf em São Paulo, quinze vezes maior do que o total contabilizado pelo
Supremo Tribunal Federal para denunciar a "quadrilha dos 40" do
mensalão do governo Lula.
Afundada em dívidas, a estatal gaúcha de energia tinha dificuldades
para captar os US$ 141 milhões necessários para as subestações que
gerariam 500 mil quilowatts para 51 pequenas e médias cidades do Rio
Grande. Preocupado com a situação pré-falimentar da empresa, o então
governador Pedro Simon (PMDB) tinha exigido austeridade total.
Até que, em março de 1987, inventou-se o cargo de "assistente da
diretoria financeira" para acomodar Lindomar, irmão do líder do Governo
Simon na Assembléia, o deputado caxiense Germano Rigotto. "Era um pleito
político da base do PMDB em Caxias do Sul", confessaria depois o
secretário de Minas e Energia, Alcides Saldanha. Mais explícito, um
assessor de Saldanha reforçou a paternidade ao JÁ: "Houve resistência ao seu nome [Lindomar], mas o irmão [Germano] exigiu".
Com a chegada de Lindomar, as negociações com os dois consórcios das
obras, que se arrastavam há meses, foram agilizadas em apenas oito dias.
Logo após a assinatura dos contratos, os pagamentos foram antecipados,
contrariando as normas estritas baixadas por Simon para evitar
curtos-circuitos contábeis na CEEE. Três meses depois, a empresa foi
obrigada a um empréstimo de US$ 50 milhões do Banco do Brasil, captado
pela agência de Nassau, no paraíso fiscal das Bahamas. Uma apuração da
área técnica da CEEE detectou graves problemas: documentos adulterados,
folhas numeradas a lápis, licitação sem laudo comprovando a necessidade
da obra. A sindicância da estatal propôs a revisão dos contratos, mas
nada foi feito. A recomendação chegou ao governo seguinte, o de Alceu
Collares (PDT), e à sucessora de Saldanha na pasta das Minas e Energia,
uma economista chamada Dilma Rousseff. "Eu nunca tinha visto nada
igual", diria ela, chocada com o que leu.
Dilma só não botou o dedo na tomada porque o PDT de Collares
precisava dos votos do PMDB de Rigotto para ter maioria na Assembléia.
Para evitar o risco de queimaduras, Dilma, às vésperas de deixar a
secretaria, em dezembro de 1994, teve o cuidado de mandar aquela
papelada de alta voltagem para a Contadoria e Auditoria Geral do Estado
(CAGE), que começou a rastrear a CEEE com auditores do Tribunal de
Contas do Estado (TCE) e do Ministério Público. Dependendo do câmbio, o
tamanho da fraude constatada era sempre eletrizante: US$ 65 milhões,
segundo o CAGE, ou R$ 78,9 milhões, de acordo com o Ministério Público.
A denúncia energizou a criação de uma CPI na Assembléia, proposta
pelo deputado Vieira da Cunha, líder da bancada do PDT em 2008 na Câmara
Federal. Vinte e cinco auditores quebraram sigilos bancários e fiscais.
Lindomar Rigotto foi apontado em 13 depoimentos como figura central do
esquema, acusação reforçada pelo chefe dele na CEEE, o
diretor-financeiro Silvino Marcon. A CPI constatou que os vencedores da
licitação, gerenciados por Rigotto, apresentavam propostas "em
combinação e, talvez, até ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas". O
relatório final lembrava: "É forçoso concluir pela existência de conluio
entre as empresas interessadas que, se organizando através de
consórcios, acertaram a divisão das obras entre si, fraudando dessa
forma a licitação". O JÁ foi mais didático: "Apurados os
vencedores, constatou-se que o consórcio Sulino venceu todas as
subestações do grupo B2 e nenhuma do B1. Em compensação, o Conesul
venceu todas as obras do B1 e nenhuma do B1. A diferença entre as
propostas dos dois consórcios é de apenas 1,4%".
O aval de Dulce
A quebra do sigilo bancário de Lindomar revelou um crédito em sua
conta de R$ 1,17 milhão, de fonte não esclarecida. O relatório final da
CPI caiu na mão de um parlamentar do PT, o também caxiense Pepe Vargas,
primo de Lindomar e Germano Vargas Rigotto. Apesar do parentesco, o
primo Pepe, hoje deputado federal, foi inclemente na sua acusação final:
"De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção
passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto". Além
dele, a CPI indiciou outras 12 pessoas e 11 empresas, botando no mesmo
balaio nomes vistosos como Camargo Corrêa, Alstom, Brown Boveri, Coemsa,
Sultepa e Lorenzetti. No final de 1996, a Assembléia remeteu as 260
caixas de papelão da CPI ao Ministério Público, de onde nasceu o
processo n° 011960058232 da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública em Porto
Alegre. Os autos somam 30 volumes e 80 anexos e mofam ainda na primeira
instância do Judiciário, protegidos por um inacreditável "segredo de
justiça". Em fevereiro próximo, o Rio Grande do Sul poderá comemorar os
15 anos de completo sigilo sobre a maior fraude de sua história.
Esta incrível saga de resistência e agonia do JÁ e de Bones provocada pela família Rigotto foi contada, em primeira mão, neste Observatório, em 24 de novembro de 2009 ("O jornal que ousou contar a verdade"). No dia seguinte, uma quarta-feira, Rigotto telefonou de Porto Alegre para reclamar ao autor que assina aquele e este texto.
– Isso ficou muito ruim pra mim, Luiz Cláudio, pois o Observatório é
um formador de opinião, muito lido e respeitado. Ficou parecendo que eu
estou querendo fechar um jornal. Eu não tenho nada a ver com isso. O
processo é coisa da minha mãe. Foi a minha irmã, Dulce, que me disse que
a reportagem era muito pesada, irresponsável. Eu nem conheço este
jornal, este jornalista...
– Rigotto, a dona Julieta não é candidata a nada. O candidato és tu. A reportagem do JÁ
tem implicações políticas que batem em ti, não na tua mãe. E acho muito
estranho que, passados oito anos, tu ainda não tiveste a curiosidade de
ler a reportagem que tanta aflição provoca na dona Julieta. Se tu estás
te baseando na avaliação da Dulce, devo te alertar que ela não entende
xongas de jornalismo, Rigotto! Esta matéria do Bones é precisa, calcada
em fatos, relatórios, documentos e conclusões da CPI e do Ministério
Público que incriminam o teu irmão. Não tem opinião, só informação. O
teu processo...
– Não é meu, não é meu... É da minha mãe...
– Isso é o que diz também o Sarney, Rigotto, quando perguntam a ele sobre a censura que cala O Estado de S.Paulo. "Isso é coisa do meu filho, o Fernando"...
– Eu fico muito ofendido com esta comparação! Eu não sou o Sarney, não sou!...
– Lamento, mas estás usando a mesma desculpa do Sarney, Rigotto.
– Luiz Cláudio, como resolver isso tudo com o Bones? A gente pode parcelar a dívida e aí...
– Rigotto, tu não estás entendendo nada. O Bones não quer parcelar,
não quer pagar um único centavo. Isso seria uma confissão de culpa, e
ele não fez nada errado. Pelo contrário. Produziu uma reportagem
impecável, que ganhou os maiores prêmios. Eu assinaria essa matéria, com
o maior orgulho. Sai dessa, Rigotto!
Coincidência ou não, um dia depois do telefonema, na quinta-feira,
26, Rigotto convocou uma inesperada coletiva de imprensa em Porto Alegre
para anunciar sua retirada como possível candidato ao Palácio Piratini,
deixando o espaço livre para o prefeito José Fogaça.
O modelo de Roosevelt
Naquela mesma quarta-feira, 25 de novembro, a emenda ficou pior que o
soneto. O advogado dos Rigotto, Elói José Thomas Filho, botou no papel
aquela mesma proposta indecente que ouvi do próprio Germano Rigotto,
confirmando por escrito ao editor a idéia de parcelar a indenização
devida de R$ 55 mil em 100 (cem) módicas prestações. Diante da altiva
recusa de Bones, o advogado pareceu incorporar a doutrina do big stick de Theodore Ted
Roosevelt (1901-1909), popularmente conhecida como "lei do tacape" e
inspirada pela frase favorita do belicoso presidente estadunidense:
"Fale com suavidade e tenha na mão um grande porrete". O suave advogado
Thomas Filho escreveu então para Bones: "... em nova demonstração de
boa-fé, formalizamos nossa intenção em compor amigavelmente o litígio
acima, bem como a possibilidade [sic] de nos abstermos de ajuizar novas demandas judiciais...".
Certamente para tranquilizar o filho candidato, o advogado reafirmava
na carta a Bones que a ação contra o jornal era movida "unicamente" por
dona Julieta, que buscava na justiça o ressarcimento pelo "abalo moral"
provocado pela reportagem do JÁ, que misturava
"irresponsavelmente três fatos diversos que envolveram a figura do
falecido". Ou seja, dona Julieta Rigotto, que entende de jornalismo
tanto quanto os filhos Dulce e Germano, não consegue perceber a
obviedade linear de uma pauta irresistível para qualquer repórter
inteligente: o objetivo relato jornalístico sobre um homem público –
Lindomar – morto num assalto pouco antes de ser julgado pelo homicídio
culposo de uma prostituta e pouco depois de ser denunciado no relatório
de uma CPI, redigido pelo primo deputado, pela prática comprovada de
"corrupção passiva e enriquecimento ilícito" na maior fraude já cometida
contra os cofres públicos do Rio Grande do Sul. Mas, na lógica
simplória da mãe dos Rigotto, uma coisa não tem nada a ver com a
outra...
Para garantir o tom "amigável" entre as partes, o advogado de dona
Julieta propôs a Bones os termos de uma retratação pública, suave como
um porrete, enfatizando três pontos:
1. "Dona Julieta nunca teve a intenção de fechar o jornal";
2. "a ação não é promovida pela família Rigotto, mas apenas por dona Julieta";
3. "retirar o jornal de circulação, para estancar a propagação do dano".
Tudo isso, incluindo o ameno confisco de um jornal das bancas em
pleno regime democrático, segundo o tortuoso raciocínio do advogado,
serviria para "tutelar a honra e a imagem de seu falecido filho". Neste
longo, patético episódio, que intercala demonstrações de coragem e
altivez com cenas de pura violência, fina hipocrisia ou corrupção
explícita, ficou pelo caminho o contraste de atitudes que elevam ou
rebaixam. Diante da primeira ação criminal de dona Julieta na Justiça, o
promotor Ubaldo Alexandre Licks Flores ensinou, em novembro de 2002:
"[não houve] qualquer intenção de ofensa à honra do falecido Lindomar Rigotto. Por outro lado, é indiscutível que os três temas [a CEEE e as duas mortes] estavam e ainda estão impregnados de interesse público".
O orgulho de Enedina
Apesar da lucidez do promotor, o caso tonitruante da CEEE não ecoa
nos ouvidos surdos da imprensa gaúcha, conhecida no país pela acuidade
de profissionais talentosos, criativos, corajosos. Nenhum grande jornal
do sul – Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio, O Sul –, nenhum
colunista de peso, nenhum editorialista, nenhum blog de prestígio
perdeu tempo ou tinta com esse tema, que nem de longe parece um assunto
velho, batido ou nostálgico. O que lhe dá notória atualidade não é o
ancestral confronto entre a liberdade de expressão e a prepotência
envergonhada dos eventuais poderosos de plantão, mas a reaparição de
seus principais personagens no turbilhão da corrida eleitoral de 2010.
Germano Rigotto, o líder governista que emplacou o filho de dona
Julieta na máquina estatal, é hoje o candidato do maior partido gaúcho
ao Senado Federal. A ex-secretária Dilma Rousseff, que ficou estarrecida
com o que leu sobre as fraudes de Lindomar Rigotto na CEEE, é apontada
pelas pesquisas como a futura presidente do Brasil, numa vitória
classificada pelo renomado jornal inglês Financial Times como
"retumbante". Tarso Genro, o ex-comandante supremo da Polícia Federal,
que executou as maiores operações contra corruptos da máquina pública,
lidera a corrida ao governo gaúcho e, certamente, tem os instrumentos
para saber hoje o que Dilma sabe desde 1990. O primo Pepe Vargas, que
mostrou isenção e coragem no relatório da CPI sobre a maior fraude da
história do Rio Grande, é candidato à reeleição, assim como o deputado
federal que inventou a CPI, Vieira da Cunha.
É a lógica perversa do interesse eleitoral que explica o desinteresse
até dos principais adversários de Rigotto na disputa pelo Senado. O
candidato do PMDB está emparedado entre a líder na pesquisa da
Datafolha, a jornalista Ana Amélia Lemos (PP) – que subiu de 33% em
julho para 44% na semana passada – e o candidato à reeleição pelo PT,
senador Paulo Paim – que cresceu de 35% no início do mês para 38% agora.
Rigotto caiu de 43% para 42% no espaço de três semanas. Na Região
Metropolitana de Porto Alegre, Ana Amélia bate Rigotto por 47% a 39%.
Seus oponentes desprezam o potencial explosivo do "Caso CEEE" porque
todos sonham em ganhar o segundo voto dos outros candidatos, o que
justifica a calculada misericórdia e o piedoso silêncio que modera a
estratégia de adversários historicamente tão diferentes e hostis como
são, no Rio Grande do Sul, o PT, o PMDB e o PP.
O que é recato na política se transforma em omissão nas entidades
que, ao longo do tempo, marcaram suas vidas na luta pela democracia e
pela liberdade de expressão e no repúdio veemente à ditadura e à
censura. Siglas notáveis como OAB, ABI, SIP, Fenaj e Abraji brilham pelo
silêncio, pela omissão, pelo desinteresse ou pelo trato burocrático do
caso JÁ vs. Rigotto, que resume uma questão crucial na vida de
todas elas e de todos nós: a livre opinião e o combate à prepotência dos
grandes sobre os pequenos, apanágio de toda democracia que se respeita.
A OAB e seus advogados, no Rio Grande ou no Brasil, que impulsionaram
a queda de um presidente envolvido em denúncias de corrupção, não se
sensibilizam pela sorte de um pequeno jornal e seu bravo editor, punidos
por seu desassombrado jornalismo e mortalmente asfixiados pelo cerco
econômico surpreendentemente avalizado pela Justiça, que deveria
proteger os fracos contra os fortes – e não o contrário.
A inerte Associação Brasileira de Imprensa jamais se pronunciou sobre
as agruras de Bones e seu jornal. Só em setembro de 2009, um mês após a
denúncia sobre o bloqueio judicial das receitas do JÁ, é que a
Fenaj e o Sindicato dos Jornalistas do RS trataram de fazer alguma
coisa: uma nota gelada, descartável, manifestando solidariedade à vítima
e lamentando a decisão "equivocada" da Justiça. A Associação
Riograndense de Imprensa, que em 2001 conferiu à reportagem contestada
do JÁ o seu maior prêmio jornalístico, só quebrou o seu constrangedor silêncio ao ser cobrada publicamente por este Observatório,
em novembro passado. Todos os membros da brava Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo têm a obrigação de conhecer a biografia de
Elmar Bones, que nos anos de chumbo pilotou o CooJornal, um
mensário da extinta Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre
(1976-1983) que virou referência da imprensa nanica que resistia à
ditadura.
Bones chegou a ser preso, em 1980, pela publicação de um relatório
secreto em que o Exército fazia uma autocrítica sobre as bobagens
cometidas na repressão à guerrilha do Araguaia. Algo mais perigoso, na
época, do que falar na roubalheira operada pelo filho de dona Julieta na
CEEE... No site da Abraji, a entidade emite sua opinião em quatro
notas, nos últimos dois anos. Critica o sigilo eterno de documentos
públicos, defende o seguro de vida para repórteres em zona de risco,
repudia um tapa na cara que uma repórter de TV do Centro-Oeste levou de
um vereador e, enfim, faz uma vigorosa, firme, veemente manifestação a
favor da liberdade de expressão... no México. Ao pobre JÁ e seu editor, lá no sul do Brasil, nenhuma linha, nada.
A poderosa Sociedade Interamericana de Imprensa, que reúne os maiores
veículos das três Américas, patrocina uma influente Comissão de
Liberdade de Imprensa e Informação, hoje sob a presidência de um jornal
do Texas, o San Antonio Express News. Entre os 26 vice-presidentes regionais, existem dois brasileiros: Sidnei Basile, do Grupo Abril, e Maria Judith de Brito, da Folha de S.Paulo.
Envolvidos com os graves problemas da Paulicéia, eles provavelmente não
podem atentar para o drama vivido por um pequeno jornal de Porto
Alegre. Mas, existem outros 17 membros na Comissão de Liberdade da SIP, e
dois deles bem próximos do drama de Bones: os gaúchos Mário Gusmão e
Gustavo Ick, do jornal NH, de Novo Hamburgo, cidade a 40 km da capital gaúcha. Nem essa proximidade livra as aflições do JÁ e seu editor do completo desdém da SIP.
Este monumental cone de silêncio e omissão, que atravessa fronteiras e
biografias, continua desafiando a sensibilidade e a competência de
jornais e jornalistas, que deveriam se perguntar o que existe por trás
do amaldiçoado caso da CEEE, que afugenta em vez de atrair a imprensa. A
maior fraude da história do Rio Grande, mais do que uma bomba, é uma
pauta em aberto, origem talvez da irritação dos Rigotto contra o editor e
o jornal que ousaram jogar luz nessa história mal contada. Os volumes
empoeirados deste megaescândalo continuam intocados nas estantes da
Justiça em Porto Alegre, protegido por um sigilo inexplicável que só
pode ser útil a quem mente e a quem rouba, não a quem luta pela verdade e
a quem é ético na política, como fazem os bons repórteres e como devem
ser os bons políticos.
O bom jornalismo não é aquele que produz boas respostas, mas aquele
que faz as boas perguntas – e as perguntas são ainda melhores quando
incomodam, quando importunam, quando constrangem, quando afligem os
consolados e quando consolam os aflitos.
A emoção é a última fronteira de quem perde os limites da razão.
Elmar Bones tinha ganhado todas as instâncias do processo criminal,
quando um juiz do Tribunal de Justiça, na falta de melhores argumentos,
preferiu se assentar nos autos impalpáveis do sentimento para decidir em
favor da mãe de Germano Rigotto:
"Não há como afastar a responsabilidade da ré pelas matérias
veiculadas, que atingiram negativamente a memória do falecido, o que
certamente causou tristeza, angústia e sofrimento à mãe do mesmo (...)".
Dona Julieta Rigotto, viva e forte aos 89 anos, ainda sofre com a honra e a imagem maculadas de seu falecido filho, Lindomar.
Dona Enedina Bones da Costa tinha 79 anos quando morreu, em 2001,
poupada assim da tristeza, angústia e sofrimento que sentiria ao ver o
drama vivido agora por seu filho, Elmar. Mas ela teria, com certeza, um
enorme, um insuperável orgulho pelo filho honrado e corajoso que trouxe
ao mundo e ao jornalismo.
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