Caros Amigos -
[Fábio Konder Comparato] Em todas as religiões, o ingresso de neófitos
exige um período de instrução mais ou menos longa do candidato sobre os
dogmas da fé. No período da minha infância (e já lá se vão várias
dezenas de anos), toda criança católica, para receber a primeira
comunhão, devia saber de cor o catecismo.
Penso que hoje, analogamente, nenhum agente público, sobretudo do alto escalão estatal, deveria tomar posse do seu cargo, sem comprovar um mínimo conhecimento daquele conjunto de verdades que, embora não sobrenaturais, situam-se no mais elevado escalão ético: o sistema de direitos humanos.
Receio que o atual
ministro das comunicações, Paulo Bernardo, não tenha sido instruído nos
rudimentos dessa matéria, pois o seu conhecimento dos direitos humanos,
para dizer o mínimo, deixa muito a desejar.
Em
entrevista realizada ao vivo na TV Brasil, sua excelência reconheceu
que o setor de comunicação social acha-se muito concentrado no Brasil, e
que é preciso desconcentrá-lo. “Mas não vamos fazer isso por lei”,
advertiu. “Não dá para fazer uma lei que diga que vai desconcentrar, até
porque não haveria mecanismos para isso.”
O
recado foi assim dado. Ao que parece, o governo da presidente Dilma
Rousseff considera sem importância as ações de inconstitucionalidade por
omissão, já propostas no Supremo Tribunal Federal, para exigir que o
Congresso Nacional vote uma legislação regulamentadora de vários
dispositivos constitucionais sobre comunicação social, ações essas que
tenho a honra de patrocinar como advogado.
Vejo-me,
portanto, com grande constrangimento, obrigado a expor ao ministro e,
quiçá, à própria presidente que o escolheu, o b-a-ba dos direitos
humanos.
É preciso começar pela distinção básica entre direitos humanos, deveres humanos e garantias fundamentais.
Os
direitos humanos são inatos a todos os componentes da espécie humana,
porque dizem respeito à sua dignidade de pessoas; isto é, dos únicos
seres da biosfera dotados de razão e consciência, como enfatiza o artigo
primeiro da Declaração Universal de 1948. Por isso mesmo, tais direitos
não são criados pela autoridade estatal, mas por ela simplesmente
reconhecidos. Em doutrina, faz-se, em conseqüência, a distinção entre
direitos humanos e direitos fundamentais. Estes últimos são os direitos
humanos reconhecidos nas Constituições ou nos tratados internacionais.
Em
estrita correspondência com os direitos humanos, existem os deveres
humanos. Para ilustração, basta lembrar que todos têm direito à vida,
direito esse que, em conseqüência, deve ser por todos respeitado. Os
Estados, por não serem pessoas humanas, não possuem obviamente direitos
humanos. Não obstante, todos os Estados têm deveres humanos, quando mais
não seja o de criar os meios ou instrumentos legais de proteção dos
direitos, vale dizer, de estabelecer as garantias fundamentais.
Ao
contrário dos direitos e dos deveres humanos, as garantias somente
existem quando criadas e reguladas pela autoridade competente; ou seja,
os Estados, no plano nacional ou internacional, e as organizações
internacionais, como a ONU e a OEA. Daí porque tais garantias são ditas
fundamentais e não simplesmente humanas, como os direitos.
Pois
bem, ministro Paulo Bernardo, a Constituição Brasileira reconhece o
direito à comunicação como fundamental, no art. 5°, incisos IV, IX e
XIV, e no art. 220 caput, os quais me abstenho de transcrever, mas cuja
leitura me permito recomendar-lhe vivamente.
Mas o que significa, afinal, comunicação?
Atentemos
para a semântica. O sentido original e básico de comunicar é de pôr em
comum. A comunicação, por conseguinte, não é absolutamente aquilo que
fazem os nossos grandes veículos de imprensa, rádio e televisão; a
saber, a difusão em mão única de informações e comentários, por eles
arbitrariamente escolhidos, sem admitir réplica ou indagação por parte
do público a quem são dirigidos.
Tecnicamente,
o direito à comunicação compreende a liberdade de pôr em comum, vale
dizer, de dar a público a expressão de quaisquer opiniões, a liberdade
de criação artística ou científica, e a liberdade de informação nos dois
sentidos: o de informar e o de ser informado.
Para cumprimento do dever fundamental do Estado Brasileiro de respeitar o direito à comunicação, a Constituição Federal em vigor estabeleceu um certo número de garantias fundamentais; as quais, frise-se, só se tornam praticáveis, quando adequadamente reguladas em lei.
Exemplo:
“É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem” (Constituição, art.
5°, inciso V). Como pode ser exercida essa garantia de proteção à
identidade ou à honra individual? Somente em juízo, ou também fora dele?
Há ou não há limites de extensão ou duração da resposta? Recebido o
pedido extrajudicial, em quanto tempo deve o veículo de comunicação
social dar a público a resposta do ofendido? Esta deve ser publicada na
mesma seção do jornal e no mesmo programa de rádio ou televisão, em que
foi divulgada a ofensa, ou a informação incorreta? Tudo isso, senhor
ministro, somente a lei pode e deve estabelecer.
Outro
exemplo, para retomar o comentário do ministro Paulo Bernardo, acima
transcrito. A Constituição proíbe o monopólio e o oligopólio, diretos ou
indiretos, no setor de comunicação social (art. 220, § 5°). Quem deve
definir a existência de monopólio ou oligopólio, de forma direta ou
indireta, no mercado? O ministro das comunicações? A sua chefe, a
presidente da República? O deus onipotente dos tempos modernos, o
Mercado? Ou deveremos, talvez, deixar essa definição para os preclaros
ministros do Supremo Tribunal Federal que, por sinal, não tiveram
constrangimento algum em considerar revogada a lei de imprensa, que
regulamentava o direito de resposta?
Quem
sabe, o ministro Paulo Bernardo já ouviu a citação do art. 5°, inciso
II, da Constituição Federal: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Ora,
há mais de duas décadas, exatamente há 22 anos e três meses, aguardamos
todos que o Congresso Nacional cumpra o seu dever fundamental de
legislar, definindo as condições em que será reconhecida a existência de
monopólio ou oligopólio, no campo da comunicação social. Nesse tempo
todo, o espírito empresarial não ficou passivo, a esperar, apalermado,
que as autoridades da República se decidissem, enfim, a cumprir a
Constituição. Só no setor de televisão, a Globo passou a controlar 342
empresas; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; e a Record, 142.
Pois bem, senhor ministro Paulo Bernardo, ainda que mal lhe pergunte: – Para que serve, mesmo, uma Constituição?
Fábio Konder Comparato é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Para que serve, mesmo, uma constituição?
Venezuela tem a maior reserva de petróleo do mundo
O governo da Venezuela afirmou nesta quarta-feira ter ampliado suas reservas petrolíferas para 297 bilhões de barris, quantia que, se comprovada, pode transformar o país na maior reserva de petróleo do mundo, superando a Arábia Saudita. "No final de 2010, tínhamos um nível de reservas de 217 bilhões de barris e estamos, agora, no início do ano, em posição de certificar 297 bilhões de barris", afirmou a jornalistas o ministro de Energia e Petróleo Rafael Ramirez.
Essa quantia é baseada em informações da estatal venezuelana PDVSA e
das empresas transnacionais que operam no país. No entanto, os números
ainda necessitam da certificação da OPEP (Organização de Países
Exportadores de Petróleo).
Topo do ranking
Se a reserva for certificada, a Venezuela assume o primeiro lugar
no ranking de países com as maiores reservas do óleo no mundo, deixando
atrás países como a Arábia Saudita, que possui 266 bilhões de barris,
de acordo com a OPEP.
Do total de 297 bilhões de barris, 220 bilhões estão na faixa
petrolífera do Orinoco, cuja reserva estimada pode superar os 319
bilhões de barris e é considerada a maior jazida petrolífera do mundo.
"A Venezuela continua ampliando sua base de recursos, diferente de
muitos países que já esgotaram seus recursos", afirmou Ramirez.
De acordo com o governo, quando o presidente venezuelano Hugo
Chávez assumiu o poder, em 1999, a reserva petrolífera do país era de 75
bilhões de barris.
Desde então, o governo foi tomando paulatinamente o controle da
estatal PDVSA e em 2007 foi firmado o decreto de nacionalização dos
hidrocarbonetos, que determina a exploração do petróleo em regime de
empresas mistas com capital internacional.
Neste tipo de associação, o Estado venezuelano é o principal
acionista e quem determina o local de execução dos projetos de
exploração. "Com essas reservas e a esse ritmo de exploração, a
Venezuela tem petróleo para mais 200 anos", afirmou Chávez na semana
passada.
"Preço justo"
Com uma economia baseada fundamentalmente na exploração do óleo, a
queda dos preços do barril registradas durante a crise financeira
afetou os ingressos do país, o único dos países membros da OPEP que não
registrou crescimento econômico em 2010.
Para Ramirez, o "preço justo" do barril é de US$ 100. "Pensamos que
o preço deva chegar aí (a US$100) e não será preciso nenhuma reunião
extraordinária da OPEP para tratar deste assunto", afirmou.
O preço do petróleo nesta quarta-feira teve uma pequena queda e o barril foi cotado em US$90,86
Ramirez disse ainda que a Venezuela não pretende incrementar sua
produção petrolífera nesta ano. "Nossa cota é de 3,11 milhões (de barris
por dia), não vamos passar disso neste ano"; disse.
Cifras da OPEP, no entanto, indicam que o país extrai diariamente
2,3 milhões de barris diários, quinto maior exportador de petróleo do
mundo.
Com informações da BBC via Patria Latina |
Dilma mantem preferência pelo software livre
Por Augusto da Fonseca, no blog Festival de Besteiras da Imprensa
Para normatizar o uso de software público na Administração, a Secretaria de Logística de TI, do Ministério do Planejamento, publicou nesta quarta-feira, 19/01, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa nº 1 onde define uma série de diretrizes para a área.
Na verdade, esse trabalho vem sendo feito desde o início do governo Lula. Clique aqui e leia tudo o que o governo federal desenvolve na área de software livre.
Entre as determinações ganham destaque a proibição do uso de
componentes, ferramentas e códigos fontes e utilitários proprietários e
da dependência de um único fornecedor.
Também proíbe o uso apenas de plataformas proprietárias. Para fazer
valer a norma, foi criada uma Comissão de Coordenação, com a
participação de representantes da SLTI, da Sepin/MCT e do MDIC. As
regras deixam claro que o governo Dilma Rousseff manterá a linha de
preferência ao software livre – adotada na Gestão Lula – em detrimento
das chamadas plataformas proprietárias.
A Instrução Normativa estabelece ainda uma série de regras para o
desenvolvedor de software. Nessa área, por exemplo, fica a partir de
agora definido que:
O criador do software deverá, obrigatoriamente, especificar, no
cabeçalho de cada arquivo-fonte, que o software está licenciado pelo
modelo de licença Creative Commons General Public License – GPL
(“Licença Pública Geral”), versão 2.0, em português, ou algum outro
modelo de licença livre que venha a ser aprovado pelo Órgão Central do
SISP;
O desenvolvedor deverá ainda fornecer a documentação de desenvolvimento do software, que deve:
O desenvolvedor deverá ainda fornecer a documentação de desenvolvimento do software, que deve:
a) possibilitar que terceiros entendam a arquitetura/estrutura do software e possam contribuir para a sua evolução;
b) conter as informações sobre as tecnologias, frameworks e padrões
utilizados, além de descrever os principais componentes e entidades do
sistema, assim como as regras de negócio implementadas.
Para elaborar e implementar as políticas, diretrizes e normas
relativas ao Software Público Brasileiro, também foi criada uma comissão
de coordenação, com a participação de vários ministérios.
Caberá a essa comissão, garantir a estabilidade e a confiabilidade do
portal do Software Público Brasileiro, acompanhar e fiscalizar os
resultados do uso de software público nos órgãos e entidades da
administração pública federal, além de atuar como câmara de arbitragem
na resolução de eventuais conflitos entre os participantes do SPB.
A Comissão de Coordenação do Software Público Brasileiro (CCSPB) será composta por:
O símbolo do Linux
I – por um representante, titular e suplente, da Secretaria de
Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, que será o seu Presidente – SLTI/MP;
II – por um representante, titular e suplente, da Secretaria de
Política de Informática do Ministério da Ciência e Tecnologia – SEPIN/
MCT;
III – por um representante, titular e suplente, da Secretaria de
Inovação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
– SIN/MDIC;
IV – por um representante, titular e suplente, da Associação
Brasileira de Empresas Estaduais de Processamento de Dados – ABEP; e
V – por cada um dos coordenadores institucionais de comunidades
virtuais do Portal SPB, em decorrência da própria função desempenhada
por eles.
§ 1° Os membros elencados nos incisos I a IV do caput deste artigo
serão indicados voluntariamente pelo órgão ou entidade de origem e
nomeados pelo Secretário de Logística e Tecnologia da Informação.
§ 2° A Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação exercerá a função de Secretaria Executiva da Comissão.
§ 3° Os membros da Comissão não receberão qualquer tipo de
remuneração, sendo a sua participação na CCSPB considerada como serviço
público relevante.
O Convergência Digital divulga a íntegra da Instrução Normativa nº1, publicada nesta quarta-feira, 19/01, pela SLTI (PDF – 80 KB)
Clique aqui e acesse a página do Ubuntu, o sistema operacional baseado em Linux
'A saída do capital à crise é a privatização total da vida'
IHU Online -
“Os mercados são hoje o coração do capitalismo cognitivo porque são o
centro do processo de financiamento da atividade em inovação e da
produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, são elementos relevantes na
distribuição da renda, que se baseia na desigualdade.”
A opinião é de Andrea Fumagalli, professor de Economia Política da Università di Pavia, Itália, em entrevista a P. Elorduy, B. García e D. Grasso, publicada no jornal Diagonal, 17-01-2011. A tradução é de Anne Ledur.A entrevista está no sitio Diario Liberdade.
Eis a entrevista.
Bioeconomia
e capitalismo cognitivo estão escritos ao início do que conhecemos como
“a crise”. Você nesse tempo como se desenvolviam as teses que propunha
em sua obra?
A situação da crise que estamos vivendo é uma confirmação da tese principal do livro. Por exemplo, o que está passando na Europa, a partir da crise na Grécia até os protestos na França,
está demostrando que o problema da reforma das aposentadorias é capaz
de unificar uma frente de luta que não afeta só os sujeitos econômicos
mais interessados, nesse caso, os pensionistas, mas também os
estudantes, pessoas trabalhadores, etc. Isso se dá porque o que está em
jogo não é uma parte da vida, como pode ser o tema das pensões, mas o
interesse de todas as pessoas. Há uma centralidade do papel jogado por
mercados financeiros nesse momento na hierarquização social, na
distribuição da renda e no momento biopolítico.
Chegou o que se chama de “capitalismo cognitivo”?
Tem
dois elementos característicos do passo do paradigma industrial
fordista ao paradigma cognitivo imaterial, ou com uma tendência
prevalecente à produção imaterial. O primeiro é o aspecto da
financeirização. O segundo é a transformação do modelo produtivo que, de
um modo rígido e homogêneo, se transforma em uma estrutura em rede,
dinâmica, que cria novas modalidades de crescimento da produtividade que
são definidas pelo papel do conhecimento e a individualização da força
do trabalho. “Controlar o mecanismo da formação e do aprendizado é a
nova forma de controlar os trabalhadores”.
Por
parte da financeirização, os mercados são hoje o coração do capitalismo
cognitivo porque são o centro do processo de financiamento da atividade
em inovação e da produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, são
elementos relevantes na distribuição da renda, que se baseia na
desigualdade. Por exemplo, nos mercados, se joga com a possibilidade que
a seguridade social, que está em contato direto com a vida, seja
privatizada. Isso significa passar o controle da vida da propriedade
pública à propriedade privada.
Você fala da importância que a produtividade dos corpos adquiriu nessa fase do capitalismo. O que significa isso?
O
processo de valorização hoje está baseado em um terço de produção
imaterial, um terço sobre a cobertura de serviços ligados à mercadoria, e
uma terceira parte formada por esses serviços imateriais que são a
produção da linguagem, a produção de convenções sociais, de controle, de
serviços financeiros, de inovações, de símbolos, etc.
De
um ponto de vista qualitativo, o tipo de prestação de serviço se
caracteriza porque o trabalho “maquínico”, o repetitivo, está
interiorizado no corpo humano, especialmente na atividade cerebral e
cognitiva. Nesse sentido, o controle do corpo é o controle dos nervos e,
sobretudo, do cérebro, dos sentimentos, dos desejos. A precariedade é
um exemplo dessa mudança de estratégia. Também tem muita importância o
controle do processo de formação da força de trabalho. Esse é o motivo
por que é muito importante nos últimos anos o problema da reforma da
educação superior, o processo de Bolonha, etc. Porque controlar o mecanismo da formação e do aprendizado é a nova forma de controlar os trabalhadores.
De
um ponto de vista quantitativo, o problema é a dificuldade ou a
impossibilidade de calcular o valor que produz a utilização biopolítica
do corpo e o cérebro humanos. Já que se a produção é material, tem uma
medida (quilos, etc.). O problema é como dar uma medida da ideia, o
pensamento ou o imaterial.
Como se traslada o indivíduo?
Em
economia, “alienação”, tem que ver com a ideia de ser humano como força
de trabalho, essa é a típica ideia de alienação da cadeia de montagem.
Hoje, quando a máquina se interiorizou no cérebro, o tipo de alienação
evidente no trabalho de produção imaterial é resultado do processo de
prestação de serviço e não está separado, como na cadeia de montagem.
A
alienação mudou e se integrou na atividade cerebral. O cérebro se
divide em duas partes. Uma funciona como máquina em atividades
rotineiras; a outra é a que busca que sejamos criativos; é necessário
que sejamos para favorecer o processo de produção. Em um contexto em que
aparentemente se pode exprimir a liberdade, quando termina a partida,
tu és mais infeliz que no começo. Tem um aumento do número de suicídios
que estão ligados ao funcionamento da economia, para dar um exemplo. A
autodestruição do corpo e mente está estreitamente ligada à dinâmica do
mercado de trabalho.
O que fica por conquistar os mercados de nossa vida?
A
crise financeira, ou econômica (porque a economia e as finanças já não
se diferenciam), mostra que não é possível sair dessa crise em um
sentido tradicionalmente reformista. Essa proposta era capaz de manter
juntos os interesses contrapostos: os dos trabalhadores e os do capital.
Era uma sorte de pacto social ou New Deal. Por que não é possível
agora? Porque, do ponto de vista econômico, a saída da crise financeira
passa por uma melhora na distribuição de renda, que permita um
crescimento da demanda em nível internacional. Uma medida, nesse
sentido, é a proposta de renda básica.
A
segunda intervenção seria uma maior liberdade do campo de geração e
difusão das variáveis estratégicas (conhecimento e atividade em rede), o
que implica numa reproposição da estrutura de propriedade. O problema
está em como sair dessa “transição” e introduzir um modelo que
propriedade baseado no conceito de comum, que, por outro lado, uma
propriedade pública sobre serviços como educação, saúde, controle de
meio ambiente, etc., e está também uma forma de propriedade que é a
comum, que afeta bens imateriais não sujeitos a escassez.
Essa
pode ser a solução reformista (aparentemente reformista) para sair da
crise. Mas, se se aprofunda no conceito de renda básica, se observa que é
contrário à possibilidade de capital de controle da força de trabalho,
porque minimiza o princípio de necessidade, que faz com que o trabalho
esteja subordinado ao poder e a quem organiza o sistema político. Isso é
perigoso para os sistema capitalista. Por outro lado, o conceito de
propriedade comum nega um princípio fundamental do sistema capitalista,
que é a propriedade privada e o processo de privatização.
Por
isso, há duas vias: de um lado, está a tentativa de sair da crise ao
modo capitalista, quer dizer, acelerar o processo de privatização. Isso
implica uma privatização total da vida natural e possivelmente da vida
artificial (o que afeta o controle da biogenética). Creio que essa
tentativa está destinada a fracassar, porque essa é uma crise de
crescimento, não de saturação. Nessa crise se deu o começo de um novo
paradigma, que é o do capitalismo cognitivo.
A segunda possibilidade é uma forma de New Deal,
a renda básica, a produção ecocompatível, etc., mas não pode ser uma
solução institucional, tem que ser imposta pela capacidade de
mobilização dos grupos sociais, das sociedades civis. Ninguém sabem qual
dessas posições se imporá à outra.
Quatro conceitos-chave da nova sociedade do capitalismo cognitivo segundo Fumagalli
Controle:
“No Fordismo, a disciplina da fábrica era a disciplina da submissão do
corpo físico. Agora, o controle da força de trabalho passa pelo controle
da atividade cognitiva”.
Propriedade Intelectual:
“Quanto maior é a troca de conhecimento, mais conhecimento se gera. Por
isso se criou o direito de propriedade intelectual: para introduzir
artificialmente um princípio de escassez de conhecimento”.
Renda Básica:
“A ideia da renda básica ameaça o controle do sistema capitalista sobre
o processo formador, a possibilidade de controle social, e pode fazer
crescer ideias mais subversivas, além do reformismo”.
Bioeconomia:
“É um paradigma econômico que tem como objetos de troca acumulação e
valorização, as faculdades vitais dos seres humanos, em primeiro lugar a
linguagem e a capacidade de gerar conhecimento”.
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Lula e sua herança
Wanderley Guilherme dos Santos no Carta Capital
O balanço de Lula contraria os tradicionais compassos das transações
correntes, balança comercial, taxas de câmbio e rubricas aparentadas.
São números relevantes, sem dúvida, mas, tratados com interessada
subserviência, servem como disfarces da realidade – ora apresentando
como diferentes entidades semelhantes, ora pretendendo ser iguais a água
e a vinho. Uma variação anual positiva de 6% do PIB, por exemplo, não
quer dizer que o número total de pares de sapatos produzidos no ano foi
6% superior ao total produzido nos 12 meses anteriores, ou do total de
geladeiras, aspirinas, preservativos e tudo mais. Alguns números reais
corresponderiam a bem mais do que à porcentagem registrada, outros a bem
menos, e ainda outros a exatos 6%, sem mencionar os números
novidadeiros. Uns pelos outros é que desembocam nessa média. Trivial,
mas fácil de esquecer e dócil a interpretações marotas.
O economista Fernando Augusto Mansor de Mattos, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), calculou a taxa de variação do
produto interno bruto brasileiro dividido pela população (PIB/per
capita) nos últimos 60 anos, subdividindo o período por 14 mandatos
presidenciais, acabados ou interrompidos, ditatoriais ou eleitos – de
Getúlio Vargas/Café Filho a Lula I e II. Vista de longe,- parece que a
história econômica do País reprisa sequências de picos e vales de
crescimento, variando não mais do que o maior ou menor intervalo de
tempo entre uma escalada e uma queda. Uma rotina, quase. E nada melhor
que uma rotina para sugerir aos candidatos a cientistas da economia a
existência de uma “lei da natureza”. Daí a se imaginar que abundância e
escassez caem do céu e que todas as abundâncias se parecem não toma além
de dois passos.
Mais um passo e alcançamos a tese rústica de que o governo Lula
representou um prolongamento de governos anteriores, no que estes
apresentaram de positivo, acrescido de bonançosos ventos internacionais.
Virtude e acaso encarnados em sujeitos distintos, operando em tempos
sucessivos, a tese excitaria o falecido Maquiavel. Pace Niccolò, a
história não é bem essa.
O crescimento de 4,9%, em média, dos prometidos 50 anos em 5 do Plano
de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-1960), único presidente
progressista eleito a concluir mandato antes do golpe militar de 1964, e
o melhor a partir de então entre os de inspiração liberal, em nada se
parece aos 4,1% do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, de Ernesto
Geisel, cerca de 20 anos depois (1974-1978). Mais 30 anos passados, os
modestos 3,5 de Lula II, em novo governo progressista legitimamente
eleito, embora apontando ligeiro declive diante do pico JK,
representaram a mais espetacular ruptura das últimas oito décadas da
República. Mas a interpretação reduzida a números não ultrapassa o
registro de que houve 0,8 ponto porcentual de diferença entre o PIB per
capita de JK e o de Geisel, e que o de Lula ficou atrás de ambos (o
modus faciendi democrático desaparece nos números). Em outras palavras,
quem só vê porcentagens significantes não enxerga o conteúdo sendo
significado, ignorando que, na economia, importante é o que está dentro
dela, estúpido! – diriam os suecos.
Por exemplo: dentro da taxa média de crescimento do PIB/per capita de
Lula II faltam números satisfatórios de aeroportos, rodovias, ferrovias
e portos, justamente o que existe em abundância embutido nas taxas dos
anos JK. Os “50 anos” recuperados “em 5” de Juscelino chegaram por via
aérea ou recebidos em terminais rodoviários construídos às dezenas,
acompanhando o ritmo de conclusão das estradas interestaduais planejadas
pelos técnicos do então BNDE.- Nada a lembrar o irritante
congestionamento atual de aeroportos e estradas, invadidos por
passageiros de primeira ou segunda viagem e por motoristas calouros em
fins de semana fora da cidade onde moram. Sem esquecer o crescente tempo
de espera para desembarque das mercadorias importadas nos portos
nacionais. Muitas das quais enviadas da China, com a qual – ninguém
podia imaginar – praticamente não falávamos nos anos 50 do século XX.
Enfim, os itens em atraso na composição do PIB de Lula I e II fizeram a
glória do desfile do PIB estilo JK nos sorridentes anos dourados de
meados do século passado. É bem verdade que nem todos sorriam, faltavam
os dentes, mas isso fica para depois.
Segundo os conservadores, ou bem o Brasil crescia ou evitava a
inflação. Escolha difícil, à falta de terceira opção, e JK, apoiado pelo
País inteiro, escolheu crescer, enquanto outros, antes e depois dele,
preferiram a estagnação. Perfilhou, inclusive, o desafio de transferir a
capital da cidade do Rio de Janeiro para o Planalto Central. (Corre a
lenda de que o escritor carioca, católico e engenheiro por formação
Gustavo Corção – 1896-1978 –, autor do célebre romance Lições de Abismo,
apostou contra a viabilidade civilizatória de Brasília, -assegurando
que ela não teria condições de se comunicar nem telefonicamente com o
resto do Brasil. Perdeu a aposta, é claro, e provavelmente teria
apostado também contra a invenção do celular, jamais imaginando que tal
artefato, se existisse, viesse a estar ao alcance de mais da metade da
população brasileira em 2010 – cerca de 100 milhões de assinantes –
quatro vezes superior ao número de celulares em circulação em 2003. Esta
referência parentética destinou-se a ilustrar, com um item que de
conspícuo transformou-se em básico, a rápida evolução recente do consumo
em todas as rubricas típicas, como fogão, geladeira, televisão etc.,
consignadas pelos balanços usuais.)
Pois a tese da improbabilidade de crescimento econômico sem inflação
era outro dos dogmas do período JK, adotado por todos os governos
posteriores, o mesmo que se brandia à véspera do primeiro mandato de
Lula. A ver as experiências históricas.
As entranhas do PIB juscelinista deram ganho de causa aos
conservadores. As taxas de crescimento anual- da economia foram
exuberantes: 1956 = 3,2; 1957 = 8,1; 1958 = 7,7; 1959 = 5,6; 1960 = 9,7.
E não seria impróprio atribuir ao carry-over do período juscelinista
parte da saborosa taxa de 10,3, em 1961, já no mandato de Jânio Quadros
(Conjuntura Econômica, 1972, Separata: 25 Anos de Economia Brasileira,
Estatísticas Básicas – FGV). Em contraposição, o índice de preços saiu
de um patamar de aumento já elevado de 12,4%, em 1955, avançando a
24,4%, em 1956, e terminando o ano de 1959 com 39,5%, recorde desde o
restabelecimento da democracia em 1945. Como de costume, o decreto
39.604-A, de 14 de julho de 1956, concedeu adicional de salário somente
aos trabalhadores da indústria. Mais usual ainda, não houve reajuste
salarial em 1957 ou em 1958 (Ibre/FGV, Índice de Preços Selecionados –
Variações Anuais, 1946/1980).
A decomposição pelo avesso compromete um pouco o brilho do desempenho agregado dos indicadores econômicos de JK.
O oposto se dá com as taxas agregadas de aumento do PIB per capita de
Lula I e II. Se mais modestas, elas revelam, contudo, a falsificação da
tese hegemônica de que vigoroso crescimento econômico seria
incompatível com taxas inflacionárias cadentes. Manutenção do poder de
compra dos salários, então, segundo a ortodoxia republicana, nem pensar,
sendo ademais delirante a hipótese de que, no Brasil, a economia
suportaria aumentos reais na renda dos assalariados. Tentativas
anteriores teriam conduzido o País ao limite da anarquia política e à
desorganização das contas públicas (fortíssimos indícios, de acordo com
as mesmas fontes midiáticas conservadoras e seus conselheiros, de planos
sindicalistas revolucionários). Como se vê, não é tanto a história que
se repete quanto à natureza e origem dos obstáculos que dificultam a sua
progressão.
A avalanche de indicadores positivos durante o governo Lula soterrou o pessimismo.
A retomada do crescimento econômico veio acompanhada de inflação
cadente e sob controle, acrescida de inédito aumento na massa de
rendimento do trabalho. Em particular, o salário mínimo real dos
empregos formais aumentou em 54%, entre 2002 e 2010, estendendo-se o
número de trabalhadores com carteira assinada a mais de metade da
população economicamente ocupada (Dieese: Política de Valorização do
Salário Mínimo, in: Nota Técnica nº 86, São Paulo, 2010). Foram mais 15
milhões de brasileiros a obter empregos com direitos trabalhistas
reconhecidos (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Caged,
novembro 2010). Naturalmente, também cresceu o número de assistidos pelo
sistema da Previdência Social. A curva do desemprego, outro fantasma da
excessiva prudência conservadora, apresentou uma evolução favorável,
com taxas cadentes desde 2005 até o recorde favorável de 2010, quando a
taxa de desocupação foi reduzida a 5,9% da população economicamente
ativa.
Vale registrar que o desmonte das hipóteses econômicas sombrias se
processou com crescente e pacífica participação nos assuntos públicos
por parte de todos que o desejaram. Não houve qualquer repressão oficial
a movimentos populares, opiniões ou manifestações políticas. Nenhum
grupo social popular ou conservador teve cerceados ou amputados direitos
de expressão pública. Ao contrário, entre 2003 e 2009, foram promovidas
59 conferências nacionais sobre os mais variados temas, com o
envolvimento de mais de 4 milhões de pessoas, ademais da criação ou
reorganização de 18 conselhos para tratamento de problemas históricos da
população (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República, Caderno Destaques, novembro/dezembro de 2009, Brasília).
Ao contrário da anarquia prevista, a substituição de um sistema de
valores e de práticas de perfil tradicionalmente elitista por uma
orientação de governo comprometido com a promoção econômica, social e
cultural da vasta maioria de trabalhadores brasileiros, em particular de
suas camadas mais pobres, inaugurou um clima de temperatura política
tolerante e cooperativa. São os extremos de dogmático espectro
ideológico que, hoje, lastimam a redução na intensidade dos conflitos
que, preveniam, seriam atiçados pelo governo Lula da Silva. O absoluto
respeito por parte do Executivo às regras do jogo e às demais
instituições do País – judiciárias, legislativas, estaduais – é um dos
aspectos incluídos no reconhecimento que a população dispensou ao
governo, em porcentagens acima até mesmo do apoio eleitoral que lhe deu.
A comoção que acompanhou a transmissão da faixa presidencial à
presidenta eleita, Dilma Rousseff, bem como a despedida do presidente
Lula da Silva, testemunha a extensão de seu sucesso, excepcional
contradita às suspeitas que cercaram sua posse em janeiro de 2003.
Crescer economicamente, administrando a inflação com racionalidade,
promovendo a criação de empregos e a valorização real da renda dos
trabalhadores não é equação a ser resolvida em demonstrações
doutorandas, mas pelo compromisso axiomático do governo com a justiça
social e com o progresso material e soberano do País.
Para ser desigual alguém precisa existir. Parece óbvio, mas, em 2006,
de acordo com projeções do IBGE, 12,6% da população não existia
oficialmente. Em 2002, teriam sido 20,9%. Em Rondônia, o número de
nascidos e não registrados no primeiro ano de vida alcança 40%, recorde
nacional, e, no Amapá, 33% (Secretaria de Comunicação Social, Caderno
Destaques, nov/dez 2009). No total, são pessoas que não dispõem ou
dispunham de documento comprobatório de existência, nascimento, nome ou
residência. Consequentemente, desassistidas de qualquer tipo de política
pública ou direito civil. Para a maioria da população, o acesso a
registros tais como certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF e
carteira de trabalho aparece- -como -fatos tão naturais quanto o
nascer, crescer e trabalhar. Não obstante, foi necessário um governo
popular se interessar por essa multidão oficialmente invisível e passar a
despender recursos para trazê-la à luz do dia. Mutirões foram
realizados e outros 1.225 previstos para 2010, particularmente na
Amazônia Legal e no Nordeste, para execução do programa de Ampliação do
Acesso à Documentação Civil Básica. O alvo é o contingente de
brasileiros constituído de povos indígenas, quilombolas, ciganos,
ribeirinhos, trabalhadores rurais, moradores de rua, catadores de
recicláveis, crianças e idosos em abrigos, distribuídos em municípios de
elevados índices de sub-registro.
É duvidoso que um item dessa natureza seja facilmente encontrável na
decomposição de qualquer indicador agregado dos governos anteriores,
próximos ou remotos. Mas eles fazem parte do povo de Lula, tanto quanto a
vanguarda operária dos centros industriais das grandes cidades e a
classe média recém-engordada por passageiros vindos das classes D e E.
Na vasta maioria dos casos, o acesso à documentação representa o
ingresso em alguma ou várias formas reconhecidas de desigualdade. Nada
mais fácil para um brasileiro do que se incorporar a um desequilíbrio
social, de um lado ou de outro: gênero, cor, instrução, renda, idade,
geografia de nascimento e até estética são portais escancarados à
estratificação e discriminação. Entre outros, e crucial, é o portal da
Justiça.
A Justiça é dispendiosa para todas as pessoas e para os pobres em
particular, além de cara, amedronta mais do que apazigua. Ainda agora- o
IBGE- -publicou preciosa pesquisa sobre Características da Vitimização e
do Acesso à Justiça no Brasil (IBGE, 2009), com números sobre violência
contra pessoas e contra a propriedade, repetindo em certa medida
investigação semelhante que realizara em 1988, há 22 anos, portanto.
Entre as infaustas novidades encontram-se as que dizem respeito às
vítimas preferenciais da violência por classe de renda e idade, por
exemplo, e seus algozes. Com base em amostra nacional de 399.387 pessoas
e 153.837 unidades domiciliares distribuídas por todas as unidades da
Federação, os resultados revelam um quadro comparativo ainda
desalentador. Mesmo em casa, não mais do que 78,6% das pessoas se sentem
seguras, porcentagem que cai para alarmantes 52,8% da população quando
estão na cidade, longe da casa e do bairro.
Há substancial variação regional nesses números, aparecendo a Região
Norte como aquela em que a população se sente menos segura, seja em casa
(71,6%), no bairro (59,8%) ou na cidade (48,2%). Segundo a pesquisa, os
homens sentem-se mais seguros que as mulheres, sem diferença marcante
entre brancos e pardos, nesse item sobre subjetividade, em qualquer dos
locais investigados. Cerca de 8,7 milhões de pessoas, 5,4% da população
residente de 10 anos de idade ou mais, foram vítimas de roubo e/ou furto
no período de 27 de setembro de 2008 e 26 de setembro de 2009, com a
maior incidência ocorrendo com pessoas- de 16 a 34 anos de idade. A
violência física caminha na direção inversa à da renda, com a maioria
agredida situando-se na faixa de um quarto do salário mínimo. Os autores
da violência física foram desconhecidos, em 39% dos casos, pessoas
conhecidas em 36,2%, cônjuge ou ex-cônjuge, 12,2%, parentes em 8,1% das
agressões e 4,1% de autoria de policiais ou seguranças privadas. Entre
as mulheres, 25,9% delas foram agredidas por cônjuge ou ex-cônjuge.
Sujeitas a várias discriminações, as mulheres e a população não branca
atestam vários dos desequilíbrios sociais praticados pela sociedade, não
obstante a legislação penal existente.
Entre 1988 e 2009, a violência contra a população branca foi reduzida
de 64,6% para 52%, enquanto a população preta ou parda, vitimada,
aumentou de 34,9% para 47,1%. O mesmo fenômeno se deu na comparação por
gênero: a porcentagem de homens roubados ou furtados decresceu de 58,3%
para 53,1%, enquanto a das mulheres aumentou de 41,7% para 46,9%. As
porcentagens relativas à violência física seguem o mesmo padrão:
enquanto a população branca, em particular a masculina, obteve
acréscimos de segurança, nos últimos 20 anos, a probabilidade de sofrer
agressões corporais aumentou para a população feminina, preta e parda.
Embutido nesses números está o testemunho da extensão em que níveis
de pobreza, por certo, mas igualmente da aspereza da cultura cívica
somam-se para fabricar uma sociedade ainda predatória e discriminatória.
Sua superação exige largo intervalo de tempo.
Do outro lado da ponta da prevenção, que claudica, encontra-se a
oferta de proteção jurídica. A nova Lei Orgânica da Defensoria Pública,
de outubro de 2009, ampliou e tornou efetiva a possibilidade de que
cidadãos sem capacidade financeira para a contratação de advogados
obtenham condições de trazer pleitos junto aos tribunais. Entre 2003 e
2008, o número de defensores públicos passou de 3.250 para 4.525, e o
número de atendimentos jurídicos de 4,5 milhões para 9,6 milhões, um
acréscimo de 113% (Fonte: Ministério da Justiça).
O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte,
criado em 2003, embora não implantado ainda em todos os estados, já
atendeu 1.375 crianças e adolescentes e 2.255 familiares. Diante da
incessante fábrica de desigualdades, -discriminações e violência que é a
sociedade brasileira, programas como o (PPCAAM), entre outros, e
inovações institucionais como as Secretarias Especiais da Mulher e da
Promoção da Igualdade Racial, que atuam sobretudo na reparação de
transgressões, não deixarão de apresentar resultados mais substantivos
no longo prazo.
Se a violência estrutural é difusa e resistente, a redução das
carências iminentes da população pobre – atendimento à saúde e educação –
depende fortemente da disposição e ação governamentais. O número de
farmácias populares para atendimento ao povo de Lula cresceu 1.826%,
entre 2004 e 2008, vendendo mensalmente medicamentos a preço de custo a 1
milhão de pessoas. Outro milhão de pessoas adquire medicamentos, por
mês, com descontos de até 90%.
O programa Saúde da Família é conhecido, mas nem tanto o programa
Brasil Sorridente, para o povo malcuidado, tópico embaraçoso para
governos de elite. Em 2004, foram instalados cem Centros de
Especialidades Odontológicas, aumentados para 771, em 2009. Com 18.650
equipes, atenderam 87 milhões de brasileiros, em 2009 (Ministério da
Saúde, Boletim, novembro de 2009).
Programas para portadores de deficiência física, que alcançam 14% da
população do País, incluíram a adequação de 10.489 escolas, entre 2007 e
2009, para atendimento especializado (Seesp/MEC). O ProUni,
educacional, o Programa da Agricultura Familiar, produção de alimentos, e
o Minha Casa Minha Vida, habitacional, somam-se aos referidos para
orquestrar o que constitui o compasso essencial do balanço de Lula. O
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem papel destacado na
composição do PIB dos últimos anos, com certeza, assim como as
iniciativas nas áreas da grande agricultura e da exportação. A
visibilidade do programa Bolsa Família e suas dezenas de milhões de
famílias recuperadas à miséria a instala por gravidade no centro da
atenção midiática.
Mas o pernóstico debate sobre atribuído assistencialismo do programa
ofusca o princípio ordenador das prioridades do governo e o sentido
histórico dos dois mandatos do presidente Lula da Silva. Crescimento
econômico, inflação sob controle, expansão do emprego e redução das
desigualdades sociais são metas compatíveis, sim, entre si e com a
democracia, desde que o governante adote políticas em harmonia com a
agenda preferencial do povo – isto é, do povo de Lula.
Tratados como inimigos
Governo demarcou menos terras, não aplicou orçamento e ainda
tornou-se cúmplice da explosão de violências contra os povos indígenas
Roberto Antonio Liebgott no Brasil de Fato
Porto Alegre, Rio Grande do Sul
Nas
eleições de 2002, a candidatura de Lula expressava o anseio popular por
mudanças e sobre a qual recaiam a confiança e as esperanças dos pobres,
que acreditavam ser possível um governo desenvolver políticas de
geração de empregos, assistência digna, educação de qualidade,
segurança, reforma agrária, redistribuição de renda.
Os
povos indígenas confiaram que haveria um governo comprometido com suas
lutas e reivindicações e, por conseguinte, as suas terras seriam
demarcadas e que se estruturariam políticas tendo em vista assistência
diferenciada e digna, conforme determinações constitucionais.
Mas
suas expectativas e anseios não foram atendidos. As demarcações de
terras, dever do Estado, não se tornaram prioridade e muitos dos
procedimentos demarcatórios se encontram paralisados. Poucas foram as
terras regularizadas nos dois mandatos do presidente Lula: 88 terras
foram homologada, sendo que muitas delas tiveram os procedimentos
iniciados em governos anteriores.
Se comparado
com governos anteriores, os dados evidenciam que os procedimentos de
demarcações de terras foram sendo relegados ao esquecimento ou
protelados indefinidamente.
Para agravar a
situação, este governo inaugurou expedientes ilegítimos, tais como a
redução de áreas já demarcadas, e a suspensão de portarias que previam a
continuidade dos procedimentos demarcatórios.
Governo
|
Nº de Terras Homologadas
|
Terras em Hectares
|
Collor de Mello / Itamar Franco (Período: 1990-1994)
|
128
|
31913228
|
Fernando Henrique Cardoso (Período: 1994-2002)
|
147
|
36061504
|
Luiz Inácio Lula da Silva (Período: 2003-2010)
|
88
|
14339582
|
PAC “goela abaixo”
Ao
fazer uma retrospectiva da política indigenista, dos oito anos de
governo do presidente Lula, se constatou, de um lado, o interesse em
manter o bom discurso, alinhado com os anseios e expectativas dos povos
indígenas e de outro, as práticas cotidianas, que diferentemente da
retórica de que se garantiriam os seus direitos, se direcionaram para
estimular a ambição dos segmentos que historicamente se opõem a eles.
Para estes o governo criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
que, na essência, serviu e serve para financiar e apoiar empresas da
agroindústria, os banqueiros, as empreiteiras da construção civil, os
conglomerados que investem nas grandes barragens, em mineração, na
exploração madeireira e os grandes latifundiários que se dedicam ao
monocultivo ou a criação bovina.
Na concepção
desenvolvimentista do atual governo, focada apenas em aspectos
econômicos, estes segmentos são “produtivos” e viáveis. Já os povos
indígenas e comunidades tradicionais (como ribeirinhos, caiçaras e
quilombolas) foram rotulados como improdutivos e, desse modo, tratados
como sujeitos sem relevância para a economia e para o país. A sensação
que se tem é a de que aqueles que governam o Brasil analisam e concebem
que os pobres e as “minorias étnicas” devem receber, do poder público, a
sua “generosidade” ou “caridade” e não políticas estruturantes. E, além
disso, o presidente Lula, seguindo o exemplo dos governos militares,
considerou os povos indígenas obstáculos ou entraves ao desenvolvimento e
seus direitos constitucionais penduricalhos.
Explode a violência
Nos
últimos anos pode-se dizer que foi deflagrada uma intensa perseguição e
criminalização de lideranças indígenas que lutam pela terra. Isso
ocorreu especialmente na Bahia, Pernambuco, Maranhão, Mato Grosso do
Sul. Some-se a isso o alastramento de violências contra comunidades e
povos em diferentes regiões brasileiras. Além de terem seus territórios
invadidos, de padecerem com a falta de assistência em saúde, estes povos
sofreram com o assassinato de 437 pessoas.
A
omissão do governo Lula em relação ao intenso processo de violências
enfrentadas pelos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul, e que se pode
caracterizar como genocídio, é talvez o elemento mais significativo da
falta de interesse pelos povos indígenas. Os abusos contra este povo são
denunciados por organizações de defesa dos direitos humanos e indígenas
no Brasil e no exterior. A demarcação das terras poderia ter evitado a
morte de centenas de pessoas do povo Guarani Kaiowá. Além disso, uma
ação mais eficaz de proteção das comunidades e de punição daqueles que
praticam as violências poderia ter abrandado, em parte, o sofrimento que
lhes é imposto há décadas.
O estado de Mato
Grosso do Sul é recordista em violências contra os povos indígenas, e
ali as comunidades indígenas são obrigadas a viver em beira de estradas,
são expulsas de seus acampamentos e têm seus pertences queimados.
Vale
ressaltar que em diferentes estados do Brasil também foram praticados
assassinatos de indígenas, e nem todos esses números são divulgados.
Orçamento
Os
dados da execução do orçamento indigenista, ao longo dos últimos oito
anos, também demonstram o descaso com os 241 povos indígenas do país.
Mesmo quando há recursos aprovados, estes acabam não sendo executados
conforme o previsto. Chegamos ao final de 2010 com apenas 61% do
orçamento indigenista liquidado. Programas e ações fundamentais para a
sobrevivência física e cultural dos povos indígenas tiveram uma pífia
execução de seus recursos. Vejamos:
Ação
|
% Liquidado
|
Conservação e Recuperação da Biodiversidade em Terras Indígenas
|
0,00%
|
Saneamento Básico em Aldeias para Prevenção e Controle de Agravos
|
3,21%
|
Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento Indígena
|
9,94%
|
Demarcação e Regularização de Terras Indígenas
|
16,03%
|
Vigilância e Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Indígenas
|
51,00%
|
Promoção, Vigilância, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena
|
65,00%
|
Estes
números indicam que os recursos previstos no Orçamento Geral da União
para assistência em saúde, demarcação de terras e recuperação de áreas
degradadas não foram aproveitados como deveriam, e tal procedimento é
injustificável diante da grave situação vivida pelas comunidades e povos
indígenas. Não parece ser, portanto, por falta de recursos que o
governo Lula deixou de demarcar terras indígenas e ocupa o pior lugar em
termos de desempenho neste quesito, se comparado aos seus antecessores.
Reestruturação x Mega projetos
A
Funai, durante todo o mandato do governo Lula, manteve-se em estado de
letargia e subserviência frente às pressões desencadeadas contra as
demarcações de terras. Ao final de 2009, como que num passe de mágica, a
equipe do governo decidiu reestruturar o órgão indigenista, através de
decreto nº. 7056, expedido no dia 29 de dezembro daquele ano. A referida
reestruturação não agradou a muitos dos povos indígenas por apresentar
mudanças na estrutura do órgão sem que eles fossem consultados,
desrespeitando a Convenção 169 da OIT, ratificada e homologada pelo
governo brasileiro. Esse fato gerou um ambiente de extrema desconfiança
quanto às reais motivações que levaram o governo a impor as pretendidas
mudanças.
Depois de apresentada a proposta de
reestruturação do órgão indigenista apenas as coordenações que tratam
das questões administrativas, ambientais e aquelas destinadas a estudos
sobre os empreendimentos que incidem sobre terras indígenas tiveram
planejamentos e ações efetivamente desenvolvidas. Desse modo, pode-se
dizer que o órgão indigenista foi colocado, de certa forma, a serviço do
PAC, e sua função parece ser, neste caso, a de convencer as comunidades
indígenas de que devem dar suas anuências aos projetos a serem
executados.
Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)
No
que se refere às demandas para além das questões fundiárias, foram
sendo promovidas inúmeras ações nas áreas ambientais, de saúde, de meio
ambiente, agricultura, educação. No entanto, muitas delas foram
realizadas de maneira pulverizada e desarticulada entre si, sem
convergir para a questão central, que é a falta de uma política com
efetiva participação indígena.
Na expectativa de solucionar este
problema, os povos indígenas apresentaram proposta de criação do
Conselho Nacional de Política Indigenista. Ao invés disso, o Governo
Federal constituiu a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI),
em 2007. Não tendo o status de Conselho, a CNPI não tem poder de
deliberação. Os seus membros apresentam as demandas (temas e questões)
que afetam os povos indígenas e que devem ser debatidas, estudadas e
refletidas para posterior encaminhamento no âmbito do governo e da
política indigenista.
Em quase três anos de existência, a CNPI
acabou se tornando um ente de articulação de algumas lideranças, mas
parece ser desconsiderada no que se refere às ações e políticas a serem
implementadas a partir de suas recomendações, já que estas não são
assumidas pelo governo. Exemplo disso foi a edição do decreto de
reestruturação do órgão indigenista, sem que os integrantes da Comissão
tivessem conhecimento de seu conteúdo e muito menos que tenham sido
ouvidos a este respeito. Em síntese, as mudanças que deveriam ser
antecedidas pelo debate e anuência dos povos indígenas acabaram sendo
abruptamente anunciadas desrespeitando, inclusive, os fóruns
qualificados para o debate, como é o caso da CNPI.
Só em 2008,
após muita pressão dos movimentos indígena e indigenista, o Governo
Federal apresentou o Projeto de Lei nº. 3571 que prevê a criação do
Conselho Nacional de Política Indigenista. A sua tramitação segue a
passos lentos no Congresso Nacional, pois não lhe foi dada a importância
devida.
Também merecem uma avaliação as políticas de saúde e
educação. Na assistência à saúde indígena existiram graves e profundas
contradições, pois foi transformada em espaço de negociações com
partidos políticos, de modo especial com o PMDB. A política esteve
estruturada durante mais de uma década no modelo de assistência
terceirizada. Os convênios eram estabelecidos entre a Fundação Nacional
de Saúde (Funasa) com ONGs ou prefeituras. Esta relação perdurou até o
ano de 2008 quando, por pressão do movimento indígena, em função da
intervenção do Ministério Público do Trabalho e de decisão da Justiça, o
modelo de assistência (conforme está estabelecido na lei Arouca e pelas
deliberações das Conferências de Saúde Indígena) passou a ser tratado
no âmbito do Ministério da Saúde. Vale destacar que durante um longo
período a Funasa foi alvo de denúncias por malversação de recursos
públicos e por corrupção. Auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas
da União constataram graves distorções sobre o uso dos bens e recursos e
na prestação dos serviços.
Tardiamente e já quase no final de
seu governo, o presidente Lula determinou a criação da Secretaria
Especial de Atenção a Saúde Indígena. A proposta atende às
reivindicações dos povos indígenas, e esta Secretaria será o órgão
gestor do Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, sob a responsabilidade
do Ministério da Saúde. O novo modelo terá como referência os Distritos
Sanitários (DSEIs) enquanto unidades gestoras. A Secretaria foi criada
formalmente, mas ainda não foi estruturada.
A política de educação
escolar indígena tem sido igualmente contraditória. A responsabilidade é
do Ministério da Educação (MEC), que repassa os recursos e as
atribuições da educação escolar aos Estados que, por sua vez, podem
transferi-las aos municípios. Com o objetivo de buscar uma solução para
as distorções e contradições existentes na execução da política de
educação foram apresentadas propostas dos movimentos de professores
indígenas, de entidades de apoio e pesquisadores apontando para uma
perspectiva da federalização da política. No entanto, os técnicos do
Ministério da Educação optaram por um caminho diferente. Instituíram
através do Decreto nº. 6861, de 27 de maio de 2009, os chamados
Territórios Etnoeducacionais, antes mesmo da realização de todas as
conferências regionais previstas para avaliar e propor alternativas para
a educação escolar indígena. Esse processo de reflexão culminou na
Conferência Nacional de Educação que, ao invés de discutir as propostas
vindas das diferentes regiões, acabou por discutir o fato já consumado
do novo modelo. O modelo dos Territórios Etnoeducacionais não foi
debatido e sequer é compreendido pela maioria das comunidades e povos
indígenas e, porque não dizer, por muitos executores da política que, em
geral, são os estados e municípios.
Judicialização
Não
podemos deixar de observar também as crescentes demandas judiciais
contra procedimentos de demarcações de terras, em curso ou até em fase
de julgamento definitivo. Raras têm sido as decisões que acolhem de
maneira favorável os direitos e interesses indígenas. Normalmente as
decisões têm um caráter liminar que suspendem os procedimentos
demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias
superiores, no caso STJ ou STF. Em função destas manobras jurídicas, os
processos se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o
litígio imposto.
Neste sentido, merecem destaque
duas ações de grande repercussão e que chegaram ao STF: o caso do povo
Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia, ação que tramita há quase 30 anos e
que, embora com voto favorável do relator da ação ao povo indígena,
ainda não foi julgada; e Raposa Serra do Sol, que teve um desfecho
importante, em função de o julgamento ter sido pela manutenção da
demarcação em área contínua, mas complexo pelo estabelecimento de
condicionantes que afetam todas as demarcações de terras em curso e
aquelas que acontecerão no futuro.
Direitos ameaçados
As
opções políticas do governo do presidente Lula o conduziram para a
governabilidade a qualquer custo. Para isso, o governo estabeleceu
alianças políticas com segmentos retrógrados e possibilitou que certas
áreas estratégicas fossem incluídas no rol dos recursos a serem
explorados, a exemplo das áreas ambientais, minerais e de energia
hidráulica.
Os povos indígenas, no atual governo,
diferentemente de anteriores, se fizeram mais presentes nos espaços
públicos, reivindicando e exigindo que as autoridades cumprissem com
suas responsabilidades.
No entanto, apesar de uma
visibilidade maior e da criação de certos espaços de participação, as
artimanhas utilizadas por parte daqueles que governam engessaram as
ações indígenas em torno de discursos, pedidos de paciência e promessas a
serem cumpridas. Com isso, as lutas indígenas que mostraram maior
relevância foram aquelas que se organizaram em âmbito local ou regional.
As de caráter nacional foram como que dissipadas e muitas delas
esvaziadas pela relação que se estabeleceu com setores do governo
federal que eram, até muito recentemente, opositores aos governos
anteriores e inclusive militantes da causa indígena.
Já
os setores anti-indígenas estão cada vez mais articulados. No
parlamento brasileiro, diversos projetos de lei tentam impedir que
terras indígenas sejam demarcadas. Exemplo disso é a proposta de emenda
constitucional que determina que as demarcações de terras sejam
autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as dezenas de outros
Projetos de Lei apresentados por parlamentares para, de algum modo,
restringir os direitos indígenas.
Roberto Antonio Liebgott é Vice-Presidente do Conselho Indigenista Missinário
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
A América Latina e a questão palestina
A participação na posse da presidente
Dilma Rousseff permitiu ao presidente da Autoridade Nacional Palestina,
Mahmoud Abbas, agradecer a presidentes sulamericanos e somar Costa Rica,
Cuba, Nicarágua e Venezuela na relação dos países que reconheceram a
Palestina. Os primeiros foram Brasil, Argentina, Bolívia e Equador.
Depois, foi a vez do Uruguai. Abbas convidou outros países a seguirem
esse exemplo. Junto com as expressões contrárias a esses reconhecimentos
por parte do Departamento de Estado dos EUA, a chancelaria israelense
procurou, sem sucesso, contrapor as gestões palestinas. O artigo é de
Ignacio Klich.
Ignacio Klich – Revista Debate (Argentina) via Carta Maior
A visita ao Brasil de Mahmoud Abbas,
presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), em sua luta por
globalizar o reconhecimento do direito da Palestina por suas terras
ocupadas por Israel desde a guerra de 1967, confirmou a importância que a
América Latina dá a essa questão. Os reconhecimentos obtidos até aqui
são vistos por Abbas como um incentivo à reabertura da estancada
negociação com Israel, desde que o premier Benjamin Netanyahu concorde
em suspender a construção de novas edificações nestas áreas.
A participação na posse da presidente Dilma Rousseff permitiu ao titular da ANP agradecer a presidentes e outros representantes sulamericanos em Brasília e somar Costa Rica, Cuba, Nicarágua e Venezuela na relação dos países que reconheceram a Palestina. Cronologicamente, os primeiros foram Brasil, Argentina, Bolívia e Equador. Depois, foi a vez do Uruguai. Abbas convidou outros países a seguirem esse exemplo.
Além disso, a visita serviu para colocar a pedra fundamental da futura embaixada da Palestina em Brasília. Embora o Itamaraty tenha permitido em 1975 que a diplomacia palestina enviasse um representante ao Brasil, ainda sob o governo militar, e tenha precedido a Argentina no reconhecimento, a missão palestina em Buenos Aires tem sede própria há tempos. Ela foi concedida quando a Argentina tinha um alinhamento funcional com Washington durante o governo de Carlos Menem, e foi acompanhada pela rua Palestina, cruzando a avenida Estado de Israel, um símbolo portenho da convivência palestino-israelense. A delegação internacional logo obteve o estatuto de embaixada
Em 1947, a maioria da representação latino-americana na Assembleia Geral das Nações Unidas apoiou a divisão da Palestina, que, sob mandato britânico, existia há um quarto de século. A ONU acreditava que com o surgimento de Israel e de um Estado palestino se superaria a violenta contradição entre as aspirações nacionais judias e as dos árabes. Somente Cuba foi contra a proposta. Argentina, Chile, Colômbia, El Salvador, Honduras e México se abstiveram. Dado o apoio que Israel foi recolhendo na região a partir desse momento – maior que o obtido em outras regiões em desenvolvimento do mundo – não é estranho, então, que sua diplomacia esteja incomodada com os recentes êxitos palestinos na região.
Em uma tentativa de minimizar essas conquistas, porta vozes oficiais e alguns comentaristas procuram desqualificar esses reconhecimentos, equiparados automaticamente com uma desqualificação de Israel.
Segundo uma nota publicada em um jornal israelense, os países latino-americanos que reconheceram recentemente a Palestina teriam feito isso porque “lutam contra a hegemonia estadunidense, sem interesse algum em Israel”. Essa caracterização exclui aqueles governos mais ou menos sensíveis aos interesses de Washington, entre eles os do Cone Sul, com repetidas expressões favoráveis a Israel.
Em 1947, o plano de partição contou, entre outros apoios, com o voto positivo do outrora representante uruguaio na ONU, Enrique Rodríguez Fabregat, posterior integrante do grupo fundador da Frente Ampla. Antes de sua morte, em 1976, o diplomata revisou sua posição. Apesar de que, em 1956, a associação israelense com a guerra das potências coloniais (Inglaterra e França) contra o Egito começou a desencantá-lo, Rodríguez Fabregat, sem abdicar de seu apoio à criação de Israel, concluiu que a divisão não havia levado em conta os palestinos como deveria.
Apesar dos custos que teve ao assumir o nacionalismo palestino para concretizar suas postergadas aspirações, e apesar das terras perdidas e dos novos refugiados que surgiram após as guerras árabe-israelenses, está longe ser casual que o mundo árabe tenha sido refratário à solução dos dois estados, aprovada pela Organização de Libertação da Palestina em 1988, e pela Liga Árabe em 2002.
Resta saber os resultados de tal aceitação; entre eles, a delimitação dos dois estados. A ONU havia outorgado a Israel 55% da Palestina, fração que Israel ampliou de fato nas guerras de 1948-49 e em 1967. Por ser mais antigo, maior teria sido o provável desencanto de um Rodríguez Fabregat progressista, dada a crescente virada à direita de Israel desde 1977, ano em que o direitista Likud desbancou os trabalhistas como favoritos do eleitorado para formar o governo. A mais recente expulsão de cidadãos palestinos de Israel e a caça às bruxas movida contra ativistas de direitos humanos também compõem esse cenário.
Por outro lado, esse desencanto talvez permita explicar a aceitação do presidente uruguaio José Mujica, em setembro de 2010, de um prêmio da Organização Sionista e do município de Jerusalém, cujo titular é um dos principais promotores oficiais israelenses da questionada atividade de construção de casas em territórios em disputa. E, dois meses mais tarde, seu vice chanceler anunciaria o reconhecimento uruguaio da Palestina.
Novos apoios
Antes de voltar a Ramallah, Abbas tinha a esperança de que, no curto prazo, Chile e Paraguai poderiam se integrar à lista de mais de cem países que já reconheceram a Palestina. A quase uma semana de seu encontro com o presidente Sebastián Piñera, o Chile formalizou esse reconhecimento, deixando para outra ocasião a manifestação sobre as fronteiras entre Israel e Palestina. Identificar os limites do Estado palestino como os do período que antecedeu a guerra de 1967 – com efeito, parte das linhas de armistício de 1949 – significa reconhecer que a primeira expansão israelense é irreversível.
Junto com as expressões contrárias a esses reconhecimentos por parte do Departamento de Estado em Washington, a chancelaria israelense procurou, sem sucesso, contrapor as gestões palestinas. Nada ilustra melhor tal ineficácia do que o par de conversações telefônicas mantidas por Netanyahu com Piñera antes do reconhecimento chileno. Fontes chilenas também vaticinaram que Peru e El Salvador reconhecerão a Palestina em breve.
A chancelaria israelense teme que esse reconhecimento seja fomentado em Lima, em fevereiro, durante a III Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA), diálogo iniciado pelo Brasil em 2005, como parte de seu interesse em ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança ampliado das Nações Unidas.
A situação deixaria a Colômbia, cuja chanceler já manifestou sua resistência a fazer tal coisa sem um acordo de paz palestino-israelense, como o único membro da ASPA a persistir em sua negativa durante 2011, enquanto a diplomacia palestina gestiona apoios em El Salvador, Guatemala, Honduras e México.
Por seu turno, Abbas previu que ninguém poderá antecipar o resultado de uma larga paralisação das negociações de paz. Para um parceiro trabalhista de Netanyahu, o ministro da Indústria e Comércio, Benjamin Bem Eliezer, essa estagnação pode determinar que Washington reconheça a Palestina, mediante negociações que delimitem ambos Estados, definindo também a repartição de Jerusalém e o tema dos refugiados. Um documento da União Europeia recomendou em dezembro último tratar Jerusalém oriental como a capital palestina. Embora Bem Eliezer não tenha falado em datas, uma ocasião para Washington poderia ser setembro próximo, quando se completa um ano do início de negociações por um acordo de paz, suspensas pela decisão de israelense de seguir construindo em territórios ocupados. Com ou seu reeleição de Barack Obama, o reconhecimento estadunidense pode ser mais fácil de imaginar depois das próximas eleições presidenciais – em sua ante sala os apoios de Israel tentam maximizar sua influência –, acompanhados, logo em seguida, da retirada de suas tropas do Iraque e do Afeganistão.
(*) Ignacio Klich é historiador, organizador de “Árabes e judeus na América Latina”, Século XXI, Editora Iberoamericana, Buenos Aires, 2006.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
A participação na posse da presidente Dilma Rousseff permitiu ao titular da ANP agradecer a presidentes e outros representantes sulamericanos em Brasília e somar Costa Rica, Cuba, Nicarágua e Venezuela na relação dos países que reconheceram a Palestina. Cronologicamente, os primeiros foram Brasil, Argentina, Bolívia e Equador. Depois, foi a vez do Uruguai. Abbas convidou outros países a seguirem esse exemplo.
Além disso, a visita serviu para colocar a pedra fundamental da futura embaixada da Palestina em Brasília. Embora o Itamaraty tenha permitido em 1975 que a diplomacia palestina enviasse um representante ao Brasil, ainda sob o governo militar, e tenha precedido a Argentina no reconhecimento, a missão palestina em Buenos Aires tem sede própria há tempos. Ela foi concedida quando a Argentina tinha um alinhamento funcional com Washington durante o governo de Carlos Menem, e foi acompanhada pela rua Palestina, cruzando a avenida Estado de Israel, um símbolo portenho da convivência palestino-israelense. A delegação internacional logo obteve o estatuto de embaixada
Em 1947, a maioria da representação latino-americana na Assembleia Geral das Nações Unidas apoiou a divisão da Palestina, que, sob mandato britânico, existia há um quarto de século. A ONU acreditava que com o surgimento de Israel e de um Estado palestino se superaria a violenta contradição entre as aspirações nacionais judias e as dos árabes. Somente Cuba foi contra a proposta. Argentina, Chile, Colômbia, El Salvador, Honduras e México se abstiveram. Dado o apoio que Israel foi recolhendo na região a partir desse momento – maior que o obtido em outras regiões em desenvolvimento do mundo – não é estranho, então, que sua diplomacia esteja incomodada com os recentes êxitos palestinos na região.
Em uma tentativa de minimizar essas conquistas, porta vozes oficiais e alguns comentaristas procuram desqualificar esses reconhecimentos, equiparados automaticamente com uma desqualificação de Israel.
Segundo uma nota publicada em um jornal israelense, os países latino-americanos que reconheceram recentemente a Palestina teriam feito isso porque “lutam contra a hegemonia estadunidense, sem interesse algum em Israel”. Essa caracterização exclui aqueles governos mais ou menos sensíveis aos interesses de Washington, entre eles os do Cone Sul, com repetidas expressões favoráveis a Israel.
Em 1947, o plano de partição contou, entre outros apoios, com o voto positivo do outrora representante uruguaio na ONU, Enrique Rodríguez Fabregat, posterior integrante do grupo fundador da Frente Ampla. Antes de sua morte, em 1976, o diplomata revisou sua posição. Apesar de que, em 1956, a associação israelense com a guerra das potências coloniais (Inglaterra e França) contra o Egito começou a desencantá-lo, Rodríguez Fabregat, sem abdicar de seu apoio à criação de Israel, concluiu que a divisão não havia levado em conta os palestinos como deveria.
Apesar dos custos que teve ao assumir o nacionalismo palestino para concretizar suas postergadas aspirações, e apesar das terras perdidas e dos novos refugiados que surgiram após as guerras árabe-israelenses, está longe ser casual que o mundo árabe tenha sido refratário à solução dos dois estados, aprovada pela Organização de Libertação da Palestina em 1988, e pela Liga Árabe em 2002.
Resta saber os resultados de tal aceitação; entre eles, a delimitação dos dois estados. A ONU havia outorgado a Israel 55% da Palestina, fração que Israel ampliou de fato nas guerras de 1948-49 e em 1967. Por ser mais antigo, maior teria sido o provável desencanto de um Rodríguez Fabregat progressista, dada a crescente virada à direita de Israel desde 1977, ano em que o direitista Likud desbancou os trabalhistas como favoritos do eleitorado para formar o governo. A mais recente expulsão de cidadãos palestinos de Israel e a caça às bruxas movida contra ativistas de direitos humanos também compõem esse cenário.
Por outro lado, esse desencanto talvez permita explicar a aceitação do presidente uruguaio José Mujica, em setembro de 2010, de um prêmio da Organização Sionista e do município de Jerusalém, cujo titular é um dos principais promotores oficiais israelenses da questionada atividade de construção de casas em territórios em disputa. E, dois meses mais tarde, seu vice chanceler anunciaria o reconhecimento uruguaio da Palestina.
Novos apoios
Antes de voltar a Ramallah, Abbas tinha a esperança de que, no curto prazo, Chile e Paraguai poderiam se integrar à lista de mais de cem países que já reconheceram a Palestina. A quase uma semana de seu encontro com o presidente Sebastián Piñera, o Chile formalizou esse reconhecimento, deixando para outra ocasião a manifestação sobre as fronteiras entre Israel e Palestina. Identificar os limites do Estado palestino como os do período que antecedeu a guerra de 1967 – com efeito, parte das linhas de armistício de 1949 – significa reconhecer que a primeira expansão israelense é irreversível.
Junto com as expressões contrárias a esses reconhecimentos por parte do Departamento de Estado em Washington, a chancelaria israelense procurou, sem sucesso, contrapor as gestões palestinas. Nada ilustra melhor tal ineficácia do que o par de conversações telefônicas mantidas por Netanyahu com Piñera antes do reconhecimento chileno. Fontes chilenas também vaticinaram que Peru e El Salvador reconhecerão a Palestina em breve.
A chancelaria israelense teme que esse reconhecimento seja fomentado em Lima, em fevereiro, durante a III Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA), diálogo iniciado pelo Brasil em 2005, como parte de seu interesse em ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança ampliado das Nações Unidas.
A situação deixaria a Colômbia, cuja chanceler já manifestou sua resistência a fazer tal coisa sem um acordo de paz palestino-israelense, como o único membro da ASPA a persistir em sua negativa durante 2011, enquanto a diplomacia palestina gestiona apoios em El Salvador, Guatemala, Honduras e México.
Por seu turno, Abbas previu que ninguém poderá antecipar o resultado de uma larga paralisação das negociações de paz. Para um parceiro trabalhista de Netanyahu, o ministro da Indústria e Comércio, Benjamin Bem Eliezer, essa estagnação pode determinar que Washington reconheça a Palestina, mediante negociações que delimitem ambos Estados, definindo também a repartição de Jerusalém e o tema dos refugiados. Um documento da União Europeia recomendou em dezembro último tratar Jerusalém oriental como a capital palestina. Embora Bem Eliezer não tenha falado em datas, uma ocasião para Washington poderia ser setembro próximo, quando se completa um ano do início de negociações por um acordo de paz, suspensas pela decisão de israelense de seguir construindo em territórios ocupados. Com ou seu reeleição de Barack Obama, o reconhecimento estadunidense pode ser mais fácil de imaginar depois das próximas eleições presidenciais – em sua ante sala os apoios de Israel tentam maximizar sua influência –, acompanhados, logo em seguida, da retirada de suas tropas do Iraque e do Afeganistão.
(*) Ignacio Klich é historiador, organizador de “Árabes e judeus na América Latina”, Século XXI, Editora Iberoamericana, Buenos Aires, 2006.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Fotos: Antonio Cruz/ABr
O Hezbollah assumirá o governo do Líbano?
Do sitio Esquerda Net
Governo libanês cai face a renúncia de 1/3 mais
um dos seus membros. Israel está a ser acusado de tentar dividir a
sociedade libanesa, para beneficiar da crise do governo Hariri.Por
Franklin Lamb, Countercurrents.
Outdoors do Hezbollah. Foto de ninjawil.
Sul de Beirute: “Caso ninguém tenha percebido, o governo Obama acaba de
dar o Líbano de presente ao Irão. Washington ofereceu anteriormente o
Iraque, o Afeganistão, o Golfo e o Paquistão. Que prova faltaria de que o
trunfo estratégico do Irão é a subserviência dos EUA a Israel? Para o
Irão, o controle que Israel tem sobre o governo dos EUA é um presente
que sempre chega”. Com esse comentário, o meu vizinho, o embaixador de
Direitos Humanos do Líbano Ali Khalil declarou que a hegemonia dos EUA
na Região desce por um plano inclinado, e a manobra de ontem no Líbano
provavelmente acelerou a retirada dos norte-americanos.
Parece que os meus outros vizinhos no sul de Beirute foram para a cama
mais cedo na noite depois dos acontecimentos que marcaram o colapso do
governo libanês apoiado por EUA, pelos sauditas e por Israel. Alguns,
como o americano e o libanês com quem divido o quarto, planeiam uma
rápida evacuação, no caso dos nossos amigos do Hezbollah que cuidam da
segurança da rua baterem à porta, com o sinal combinado. Duas batidas
rápidas e o grito de “Yalla!” (Vamos, vamos!) e será hora de partir para
o norte, depressa, sem olhar para trás. O motivo disso é que, como
muitos aqui, eles temem que Israel aproveite essa mais recente crise do
governo libanês para novamente invadir o Líbano.
Na passada quinta-feira, a energia (e a Internet) fornecida pelo
“governo” foi cortada das 10 da manhã às 2 da tarde e outra vez das 6 da
tarde até meia-noite. Cortes diários de pelo menos dez horas são
normais no sul e no norte do bairro “chique” pró-EUA e sauditas de
Hamra, onde são experienciados cortes diários de três horas. Viver
muitas horas à luz de velas faz os rumores mais sem fundamento soarem
verosímeis. “As forças armadas do Líbano, do Hezbollah e aliados da
Turquia, da Síria, da Jordânia, de Israel e do Irão estão em prontidão.
Os americanos vão mandar batalhões que estão no Iraque!”, diz o rapaz
que trabalha numa loja próxima do meu apartamento. Não pude deixar de
observar que os adolescentes que andam sempre pelas calçadas parecem ter
desaparecido. Até o rapaz da loja onde carrego o meu telefone estava
impaciente: “por favor, depressa”, disse ele. “Tenho um compromisso e
preciso fechar a loja”.
O assassinato do primeiro-ministro Rafik Hariri
A actual crise começou em 14 de fevereiro de 2005, “Dia dos Namorados”,
quando foi assassinado o primeiro-ministro Rafik Hariri e outros 20. O
governo Bush declarou a Síria culpada pelo atentado e viu uma
oportunidade para forçar o regime de Assad a assumir uma posição difícil
em relação ao Irão, principal inimigo dos EUA na Região, empurrando-o
contra a Resistência Nacional Libanesa liderada pelo Hezbollah.
Um dos advogados a serviço do Departamento de Estado da secretária
Condoleezza Rice apareceu com a ideia de usar o Conselho de Segurança da
ONU, que criaria um Tribunal Especial para o Líbano [ing. Special Tribunal for Lebanon (STL)],
para investigar o caso, processar os assassinos e acusar a Síria de
trabalhar contra os projectos dos EUA e de Israel na Região.
Um detalhe que de início foi ignorado, mas adiante se tornou num
presente dos céus a favor dos interesses de Israel e do governo Bush,
foi o boato difundido pelo Tribunal Especial, segundo o qual havia
suspeitas de que membros do Hezbollah talvez estivessem envolvidos nos
assassinatos. Perante esse boato, Israel e os EUA mudaram abruptamente
de posição e começaram a usar o recém-constituído Tribunal Especial para
livrar-se do Hezbollah de uma vez por todas, além de usá-lo também
contra a Síria, certos de que a Síria também seria acusada.
A pressão contra o Hezbollah levou o Partido a condenar o que tem
chamado de falsas testemunhas e a exigir que o governo libanês
investigasse também os investigadores e suas testemunhas. Os inimigos do
Hezbollah passaram a defender o tribunal, mesmo apesar do risco que se
criava para a estabilidade do Líbano. Depois de cerca de 14 meses a
insistir para que o governo de Saad Hariri reconsiderasse seriamente as
suas posições em relação ao Tribunal Especial, a oposição liderada pelo
Hezbollah apresentou um ultimato à maioria: ou convocava-se reunião do
Gabinete para o dia 12 de Janeiro de 2011 para discutir o Tribunal
Especial e a sua actividade dentro da política libanesa, ou a oposição
renunciaria em bloco, o que levaria à queda do governo Hariri.
O Hezbollah e os seus aliados queriam que o primeiro-ministro Hariri
reunisse o Gabinete para votar a suspensão da subvenção de 49% que o
Líbano paga como parte dos custos de funcionamento do Tribunal Especial;
a retirada, do Tribunal Especial, dos juízes libaneses que lá
trabalham; o fim da cooperação entre o Líbano e o Tribunal Especial; e a
decisão de processar as “falsas testemunhas” ouvidas pelo Tribunal
Especial na investigação conduzida pela ONU sobre o assassinato de Rafik
Hariri.
Sob enorme pressão de Washington, Paris e Riade, Saad Hariri opôs-se ao
que a oposição pedia. A oposição, então, renunciou. Nos termos do art.
69º da Constituição do Líbano, a renúncia de 1/3 mais um dos membros do
Gabinete determina a queda do governo (30 membros). Foi a primeira vez,
na turbulenta história política do Líbano, que um governo cai por efeito
de renúncia de 1/3 mais um dos membros.
Para a renúncia de todo o gabinete, que derrubaria o governo pró-EUA de
Hariri, seria necessário que, além dos dez membros do Hezbollah, mais
um membro do Gabinete também renunciasse. O principal assessor-político
do secretário-geral do Hezbollah Hassan Nasrallah, Hussein Khalil,
procurou então o representante do Presidente Suleiman no Gabinete,
Sayyed Hussein. Khalil apresentou a Hussein as saudações de Nasrallah e a
sua esperança de que Hussein decidisse baseado em sua consciência.
Hussein apresentou imediatamente sua renúncia e, enquanto o
primeiro-ministro Hariri conversava na Casa Branca com o presidente
Obama, o seu governo, no Líbano, deixava de existir.
O que significa a queda do governo Hariri, no curto prazo
Os actores regionais reagiram mais ou menos conforme o previsto: os EUA
acusaram o Irão, a Síria e o Hezbollah de “chantagem”; os franceses
avisaram a Síria de que seria responsabilizada pela violência no Líbano,
caso acontecesse; e os britânicos alertaram para os riscos de longo
prazo. O ministro das Relações Externas da Grã-Bretanha William Hague
disse, em declaração: “É um desenvolvimento de extrema gravidade que
pode vir a ter graves implicações para o Líbano e para a estabilidade da
Região”. Outro diplomata britânico acrescentou ontem: “Terrível. Algum
dia conseguiremos resolver esse problema?”.
Funcionários do ministério de Negócios Estrangeiros de Israel disseram
que “acompanhamos atentamente os acontecimentos no Líbano depois das
renúncias” e que “Os libaneses entendem que houve uma tentativa, por um
grupo de extremistas, de perturbar a paz, e que essa tentativa pode vir a
revelar-se uma jogada muito perigosa” – segundo o Canal 10 da televisão
de Israel. Israel está a ser acusado hoje, no Líbano, de tentar dividir
a sociedade libanesa, para beneficiar da crise do governo Hariri.
Quarta-feira, depois de sequestrar Sharbel Khoury, pastor que vive
próximo de Rmeish (e que foi libertado 24 horas depois) a marinha de
Israel também invadiu águas do Líbano. Na passada quinta-feira, aviões
israelitas sobrevoaram Balbeque, Nabatiê e Marjun. Essas incursões
configuram a 7.269ª violação, por parte de Israel, da soberania
territorial do Líbano, desde agosto de 2006, quando o Conselho de
Segurança da ONU aprovou a Resolução n. 1.701.
Protestos da UNIFIL e da ONU não têm qualquer efeito sobre Israel, e
Washington permanece muda e não protesta contra as repetidas violações,
por Israel, da soberania territorial do Líbano.
Membros do Movimento Patriótico Livre [ing.Free Patriotic Movement (FPM)]
e um dos apoiantes do Hezbollah, Jebran Bassil, que foi Ministro da
Energia até renunciar ontem, culpou Washington pelo fracasso dos
esforços dos sírios e sauditas para impedir que o Gabinete renunciasse.
“O outro lado curvou-se às pressões externas, sobretudo às pressões
norte-americanas, ignorando os desejos e os conselhos de sauditas e
sírios”, disse Bassil.
Por sua vez, o líder do Partido Socialista Progressista [ing. Progressive Socialist Party (PSP)]
Walid Jumblatt pareceu concordar com o FPM e atribuiu às potências
ocidentais – que chamou de “forças do obscurantismo” – o fracasso da
mediação tentada pela Arábia Saudita e pela Síria: “Tudo leva a crer que
forças do obscurantismo envolveram-se no processo e boicotaram a
iniciativa de sírios e sauditas, que visava a bloquear a repercussão
negativa das acusações feitas pelo Tribunal Especial”.
O líder das Forças Libanesas Samir Geagea culpou os adversários do
Movimento 8 de Março por desejar o que chamou de “poderes stalinistas”,
acusando-os de “querer roubar direitos legais do presidente e do
primeiro-ministro”.
Qual o futuro do Hezbollah?
O Hezbollah liderava a oposição, resultado das últimas eleições, que
lhe deu maioria no Parlamento. Essa maioria autoriza o Partido da
Resistência a apresentar candidato próprio ao posto de primeiro-ministro
durante as consultas parlamentares cujo início o presidente deve
anunciar em breve com vistas à formação de novo governo. Na passad
quinta-feira, o líder do Hezbollah no Parlamento, o deputado Mohammed
Raad, anunciou que a oposição indicará “um nome com história na
resistência libanesa para chefiar o novo governo.”
Há quem preveja que o Hezbollah sugerirá o nome do veterano líder
sunita Omar Karami, personalidade discreta entre os moderados, que goza
de forte apoio popular, dos progressistas e dos sírios.
O que quer que decida fazer, o Hezbollah pode muito bem levar o seu
tempo para ponderar as grandes responsabilidades que envolvem o
movimento de resistência caso decida governar o Líbano. Alguns dos
apoiantes do Partido da Resistência têm insistido para que o Partido
assuma o gigantesco desafio e implemente o projecto exposto no Manifesto
de 2009 e a plataforma eleitoral já divulgada (combate à corrupção
‘mafiosa’ que mina algumas das lideranças políticas libanesas). Várias
organizações não-governamentais libanesas pedem que o Hezbollah aposte
mais na defesa do frágil meio ambiente do Líbano, que resolva de uma vez
os graves problemas de água, electricidade e infra-estrutura, e que
permita que os cidadãos libaneses decidam, pelo voto, e, pelo voto, dêem
o necessário aval político à causa da Resistência.
Outros continuam a defender que o Hezbollah assuma o governo para pôr
imediatamente um fim à vergonha do Líbano e de todos os árabes e
assegurar os direitos humanos básicos – habitação digna e trabalho digno
– aos refugiados palestinos, no Líbano e em toda a Região. Se o
Hezbollah assumir o governo político do Líbano, as perspectivas de os
palestinos alcançarem esses direitos elementares que hoje lhes são
negados melhorarão muito.
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Franklin Lamb é um pesquisador do Líbano e recebe e-mails em: fplamb@gmail.com
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Racismo: ninguém sente, ninguém vê, ninguém sabe o que é
Diante de tantos anos de negação e silêncio, é preciso começar a entender que os preconceitos, como o racismo, são produtos da cultura na qual estão inseridos, e como tais adaptam-se às condições de manifestação aceitáveis e estabelecidas pela sociedade, manifestando-se às claras ou de forma velada e simbólica.
Por Ana Maria Gonçalves na Revista Fórum
Diante da revelação feita por um famoso cantor
brasileiro, negro, de que sua filha de seis anos estava sendo
discriminada durante a aula em uma das escolas de balé mais tradicionais
de São Paulo, com as outras alunas se recusando a dar as mãos para ela,
ou do depoimento de uma menina, também de seis anos, aluna de escola
pública, no qual conta que as coleguinhas não querem brincar com ela
durante o recreio porque sentem nojo por ela ser negra, resta-nos parar e
perguntar: a quantas situações de humilhação essas e outras crianças
continuarão a ser submetidas pela vida afora, antes que a sociedade tome
para si a responsabilidade de discutir, entender e combater o racismo?
O racismo, como o percebemos hoje, é uma instituição relativamente recente na história na humanidade. Até por volta da Idade Média, os principais fatores de discriminação eram religiosos, políticos ou referentes à nacionalidade e à linguagem do indivíduo. No século XV, quando os europeus desembarcaram na África, e principalmente com o início do tráfico negreiro, usaram a ciência a favor do colonialismo e desenvolveram teorias de superioridade evolutiva, baseadas em diferenças biológicas, que justificavam seus interesses de expansão e poder. Estava criado o racismo etnocêntrico, fundamentado em doutrinas bíblicas, filosóficas e científicas que não resistiram à evolução dos tempos, mas que deixaram marcas indeléveis e profundas nas sociedades que as usaram para justificar a escravidão, como é o caso da sociedade brasileira. O conceito de "raça" – e termos derivados – hoje em dia é apenas político e social, e se justifica porque os traços físicos (cabelo, cor da pele, formato de nariz e boca etc) característicos da população negra ainda estão ligados à percepção negativa historicamente construída.
No final do século XIX, com a abolição da escravatura e ainda sob forte influência das teses de superioridade europeia, começa a ser colocado em prática um projeto de construção de uma nova nação brasileira, que deveria ser melhorada através do embranquecimento de seu povo. Acreditava-se que, com o passar dos anos, marginalizada, inferiorizada, difamada e abandonada à própria sorte, a população negra desapareceria. Até mesmo o acesso à educação e a possibilidade de conseguir trabalho lhe foram negados, com o governo dando total prioridade a políticas que subsidiaram a vinda de mais de 3 milhões de imigrantes europeus para o Brasil. Algumas décadas mais tarde, a teoria do embranquecimento deu lugar à da miscigenação, que acabou criando um dos mitos mais prejudiciais à luta contra o racismo: o mito da democracia racial. Foi ele que, durante décadas, impediu o Brasil de se tornar um país realmente democrático, com tratamento e oportunidade iguais para todos, ao negar reconhecimento a um problema que atinge mais da metade da nossa população.
Diante de tantos anos de negação e silêncio, é preciso começar a entender que os preconceitos, como o racismo, são produtos da cultura na qual estão inseridos, e como tais adaptam-se às condições de manifestação aceitáveis e estabelecidas pela sociedade, manifestando-se às claras ou de forma velada e simbólica. É por isso que apenas a razão, que nos levou a criar leis que criminalizam atitudes racistas e algumas ações afirmativas, não será suficiente para modificar o imaginário e as representações coletivas negativas que se tem do negro na nossa sociedade, como observa o antropólogo e professor Kabengele Munanga na apresentação do livro Superando o racismo na escola. Segundo ele, "considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo".
Se hoje já se admite que o Brasil é um país racista, é preciso admitir também que nossos pensamentos e atitudes são condicionados por essa cultura e essa ideologia racista, pois crescemos introjetando e reproduzindo o que já está estabelecido socialmente. Para mostrar como isso funciona, um interessante trabalho, desenvolvido no departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, analisa pesquisa realizada com crianças de 5 a 8 anos. Foi pedido a essas crianças que desenhassem uma criança branca e uma criança negra e as classificassem, em termos de preferência, em relação a cinco categorias: riqueza, beleza, inteligência, proximidade e contato. O resultado foi um alto índice de racismo, com a criança negra sendo fortemente rejeitada em todas as categorias. O que o estudo queria mostrar é que as crianças são abertamente preconceituosas, e que essa característica perde força a partir da maturação das estruturas cognitivas que permitem que ela deixe de julgar as pessoas com quem se relaciona apenas pela aparência e passe a levar em conta conceitos como bondade ou amizade. Acabou mostrando também que o racismo, longe de desaparecer com a idade e a necessidade de socialização, caso não haja nenhuma iniciativa nesse sentido por parte de pais e/ou educadores, é introjetado e velado pelo aprendizado das normas sociais vigentes, passando a se manifestar de forma indireta e, em muitos casos, inconsciente. O racismo volta então a habitar e alimentar o inconsciente coletivo, que trata de reproduzi-lo de uma geração para outra, tornando-o cada vez mais insidioso, difícil de provar e combater.
Por isso, cabe tão bem a pergunta da campanha Diálogos Contra o Racismo – Pela Igualdade Racial: onde você guarda seu racismo? Complemento com mais uma: o que você tem feito para não deixá-lo de herança para seus filhos?
O racismo, como o percebemos hoje, é uma instituição relativamente recente na história na humanidade. Até por volta da Idade Média, os principais fatores de discriminação eram religiosos, políticos ou referentes à nacionalidade e à linguagem do indivíduo. No século XV, quando os europeus desembarcaram na África, e principalmente com o início do tráfico negreiro, usaram a ciência a favor do colonialismo e desenvolveram teorias de superioridade evolutiva, baseadas em diferenças biológicas, que justificavam seus interesses de expansão e poder. Estava criado o racismo etnocêntrico, fundamentado em doutrinas bíblicas, filosóficas e científicas que não resistiram à evolução dos tempos, mas que deixaram marcas indeléveis e profundas nas sociedades que as usaram para justificar a escravidão, como é o caso da sociedade brasileira. O conceito de "raça" – e termos derivados – hoje em dia é apenas político e social, e se justifica porque os traços físicos (cabelo, cor da pele, formato de nariz e boca etc) característicos da população negra ainda estão ligados à percepção negativa historicamente construída.
No final do século XIX, com a abolição da escravatura e ainda sob forte influência das teses de superioridade europeia, começa a ser colocado em prática um projeto de construção de uma nova nação brasileira, que deveria ser melhorada através do embranquecimento de seu povo. Acreditava-se que, com o passar dos anos, marginalizada, inferiorizada, difamada e abandonada à própria sorte, a população negra desapareceria. Até mesmo o acesso à educação e a possibilidade de conseguir trabalho lhe foram negados, com o governo dando total prioridade a políticas que subsidiaram a vinda de mais de 3 milhões de imigrantes europeus para o Brasil. Algumas décadas mais tarde, a teoria do embranquecimento deu lugar à da miscigenação, que acabou criando um dos mitos mais prejudiciais à luta contra o racismo: o mito da democracia racial. Foi ele que, durante décadas, impediu o Brasil de se tornar um país realmente democrático, com tratamento e oportunidade iguais para todos, ao negar reconhecimento a um problema que atinge mais da metade da nossa população.
Diante de tantos anos de negação e silêncio, é preciso começar a entender que os preconceitos, como o racismo, são produtos da cultura na qual estão inseridos, e como tais adaptam-se às condições de manifestação aceitáveis e estabelecidas pela sociedade, manifestando-se às claras ou de forma velada e simbólica. É por isso que apenas a razão, que nos levou a criar leis que criminalizam atitudes racistas e algumas ações afirmativas, não será suficiente para modificar o imaginário e as representações coletivas negativas que se tem do negro na nossa sociedade, como observa o antropólogo e professor Kabengele Munanga na apresentação do livro Superando o racismo na escola. Segundo ele, "considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo".
Se hoje já se admite que o Brasil é um país racista, é preciso admitir também que nossos pensamentos e atitudes são condicionados por essa cultura e essa ideologia racista, pois crescemos introjetando e reproduzindo o que já está estabelecido socialmente. Para mostrar como isso funciona, um interessante trabalho, desenvolvido no departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, analisa pesquisa realizada com crianças de 5 a 8 anos. Foi pedido a essas crianças que desenhassem uma criança branca e uma criança negra e as classificassem, em termos de preferência, em relação a cinco categorias: riqueza, beleza, inteligência, proximidade e contato. O resultado foi um alto índice de racismo, com a criança negra sendo fortemente rejeitada em todas as categorias. O que o estudo queria mostrar é que as crianças são abertamente preconceituosas, e que essa característica perde força a partir da maturação das estruturas cognitivas que permitem que ela deixe de julgar as pessoas com quem se relaciona apenas pela aparência e passe a levar em conta conceitos como bondade ou amizade. Acabou mostrando também que o racismo, longe de desaparecer com a idade e a necessidade de socialização, caso não haja nenhuma iniciativa nesse sentido por parte de pais e/ou educadores, é introjetado e velado pelo aprendizado das normas sociais vigentes, passando a se manifestar de forma indireta e, em muitos casos, inconsciente. O racismo volta então a habitar e alimentar o inconsciente coletivo, que trata de reproduzi-lo de uma geração para outra, tornando-o cada vez mais insidioso, difícil de provar e combater.
Por isso, cabe tão bem a pergunta da campanha Diálogos Contra o Racismo – Pela Igualdade Racial: onde você guarda seu racismo? Complemento com mais uma: o que você tem feito para não deixá-lo de herança para seus filhos?
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