São poucos os franceses que conhecem o nome da máxima
autoridade da Igreja Católica no país, mas a imensa maioria sabe quem é
o Monsenhor Jacques Gaillot. Homem, de olhar sereno e voz pausada, que
fez de sua vocação religiosa uma opção pelos direitos humanos,
especialmente os direitos dos pobres e priosineiros da injustiça. Em
entrevista ao jornalista colombiano Hernando Calvo Ospina, Gaillot
denuncia o clima de injustiça reinante na França hoje, diz que a Igreja
Católica virou as costas para o povo pobre e caminha para virar uma
seita, A aponta a América Latina como a região que deve servir de
exemplo para os que lutam contra a injustiça.
por
Hernando Calvo Ospina, em
Carta Maior, via viomundo
São poucos os franceses que conhecem o nome da máxima autoridade da
Igreja Católica no país, mas a imensa maioria sabe quem é o Monsenhor
Jacques Gaillot. Homem extremamente humilde, de olhar sereno e voz
pausada, que sem usar frases grandiloquentes diz o que gostaríamos de
escutar de muitos políticos.
Nasceu em 11 de setembro de 1935 em Saint-Dizier, uma pequena cidade
da França. Aos 20 anos, deixou o seminário para realizar o serviço
militar. Foi para a Argélia, onde havia uma guerra de libertação contra
o colonialismo francês. Conta que foi uma sorte não ter sido obrigado a
usar armas, pois foi destacado para trabalhos sociais, a viver com a
comunidade.
O que significou para você ter vivido essa guerra?
Esta experiência começou a mudar a minha vida. Ali me encontrei com o
Islã, uma religião muito diferente da católica e sobre a qual nada
conhecia. Fiquei sabendo que os muçulmanos tinham fé em um Deus, que
oravam e que eram hospitaleiros. Eles foram como meus irmãos. Esta
interreligiosidade influiu em minha fé. Também vivi a violência da
guerra, razão pela qual fui me convertendo em um militante da não
violência. Realmente, a Argélia foi um seminário para mim.
Após 22 meses na Argélia, você foi enviado a Roma
e, em 1961, foi ordenado sacerdote. Até que, em 1982, foi nomeado bispo
da cidade de Evreux, na França. Mas em 13 de janeiro de 1995, o
Vaticano decidiu retirar-lhe essa missão pastoral. O que aconteceu?
Alguns dias antes dessa data fui chamado a comparecer diante das
autoridades do Vaticano sem saber por quê. Ante minha incredulidade, em
algumas horas fui declarado culpado e, em menos de um dia, foi
decretada minha expulsão da diocese. O cardeal Bernardin Gantin,
prefeito da Congregação dos Bispos, me propôs que eu assinasse minha
demissão e assim poderia manter o título honorífico de bispo emérito de
Evreux. Não assinei nada. Então me nomearam bispo de Partenia, uma
diocese que não existe desde o século V, situada na atual Argélia.
Com minhas poucas roupas deixei a diocese de Evreux. Como não tinha
onde ficar, me instalei durante um ano em um prédio recuperado por
famílias sem teto e estrangeiros sem documentos, em Paris. Depois fui
acolhido por uma comunidade de missionários.
O que levou o Vaticano a tomar uma decisão tão drástica?
Talvez suas posições políticas e compromissos sociais? Porque, vejamos:
em 1983, foi um dos bispos que não votou a favor de um texto episcopal
sobre a dissuasão nuclear. Em 1985, apoiou o levante palestino nos
territórios ocupados por Israel, além de se encontrar com Yasser Arafat
em Tunís. Em 1987, preferiu viajar até a África do Sul para visitar um
preso, militante contra a segregação racial, ao invés de ir à
peregrinação pela Virgem de Lourdes. Em 1988, defendeu na revista “Ele”
a ordenação de homens casados. No mesmo ano se declarou a favor de dar
a benção a homossexuais. No dia 2 de fevereiro de 1989, publicou na
revista “Gai Pied” um artigo intitulado “Ser homossexual e católico”.
Desde 1994, você se envolveu diretamente na fundação de associações de
apoio a marginalizados, passando a ser conhecido como “O bispo dos
sem”: sem documentos, sem teto…Não acredita que isso já seja o
suficiente para conseguir inimigos entre os círculos de poder
eclesiástico e civil?
Ainda que siga sem provas concretas até hoje, fontes confiáveis me
disseram que o governo francês, em particular o ministro do Interior da
época, Charles Pascua, tem a ver com a decisão do Vaticano. Não
esqueçamos que, na França, este ministério está encarregado dos Cultos.
Tenho certeza que um livro meu contra a lei de imigração foi a gota
d’água que entornou o copo.
O Vaticano e o governo francês quiseram me isolar. Mas em 1996, no
primeiro aniversário de minha partida de Evreux, alguns amigos criaram
na internet a Associação Partenia (1), fazendo de mim um “bispo
virtual”. Não imaginaram que eu iria acabar animando a única diocese em
expansão, com mais fiéis no mundo e em diferentes idiomas.
Imediatamente agradeci ao Vaticano e a Pascua, porque eles me
fizeram dar mais passos na direção da outra margem, onde encontrei
outra vida. Agora tenho toda a liberdade, vivo na ação com os excluídos
da sociedade. Posso viver com as pessoas, compartilhar suas alegrias e
suas angústias. Tem sido maravilhoso conhecer todas as pessoas que
conheci. Enquanto isso, Pascua está sendo processado por vários delitos
e a Igreja a cada dia perde mais cristãos.
Como, você avalia atualmente a Igreja Católica?
A Igreja nos ensinou que Deus quis trazer-nos as desgraças e assim nos
leva à resignação. Isso não é cristão. A Igreja procura fazer Deus
intervir para nos forçar a obedecer e a não pensar. Muitos discursos
sobre Deus falam dele, mas quando alguém fala bem do ser humano, isso me
diz muito de Deus. A Instituição segue impávida em seu pedestal, longe
do povo e de Deus. A seguir assim, se converterá em uma seita, porque
muitas pessoas estão partindo para outras religiões. A Igreja vive uma
hemorragia.
A Igreja deve mudar, modernizar-se, reconhecer que os casais têm
direito a se divorciar e a usar a camisinha, que as mulheres podem
abortar, que homens e mulheres podem ser homossexuais e se casar, que
as mulheres podem chegar ao sacerdócio e ter acesso às esferas de
decisão. Deve-se revisar a disciplina do celibato para que os sacerdotes
possam amar como qualquer outro ser humano, sem ter que viver relações
clandestinas, como delinquentes.
A situação atual é perversa e destruidora tanto para os indivíduos
como para a Igreja. O Vaticano é a última monarquia absoluta da Europa.
A Igreja deve aceitar a democracia em todos os níveis. E deve mudar de
modelo porque o atual não é evangélico.
O que você pensa da Teologia da Libertação, que teve um desenvolvimento importante na América Latina?
Eu me interessei por ela porque é uma teologia que fala dos pobres.
Não se fala da liturgia, nem do catecismo, nem da Igreja; fala-se do
povo pobre. Ensina que são os próprios pobres que devem tomar
consciência da necessidade de sua libertação.
Alguns de nós fomos muito tocados pelos ensinamentos de Dom Helder
Câmara, no Brasil, um grande teólogo (2); do Monsenhor Leónidas Proaño,
no Equador (3); de Oscar Romero, em El Salvador, e outros sacerdotes
latino-americanos, principalmente. Para mim foi um choque brutal quando
Romero foi assassinado celebrando a missa, em 24 de março de 1980. Ele
havia deixado a Igreja dos poderosos para estar com os pobres. Achei
admirável essa conversão.
Na América Latina, existiram alguns padres e freiras que pegaram em
armas (4). Eu respeito sua decisão, não os julgo, ainda que não esteja
de acordo com ela por ser um adepto da não-violência.
Evidentemente, a Teologia da Libertação é perigosa para os
poderosos. Quando os pobres são submissos aceitam seu triste destino,
então não há nada que temer, são pão abençoado para os poderosos. Os
detentores do poder podem dormir tranquilos. Mas se os pobres despertam
e adquirem consciência de sua condição, convertendo-se em atores da
mudança, então isso produz medo no poder.
Parece que é terrível quando os pobres tomam a palavra e questionam a
instituição eclesiástica. No mesmo instante, ela diz: “Atenção,
cuidado com esses comunistas”. Porque sempre prevaleceu a obsessão da
infiltração comunista. Por isso, regularmente, as ditaduras, os
governos repressivos e o Vaticano se unem em um combate comum.
Infelizmente não existem muitos rebeldes na Igreja, porque a instituição
sempre formou para a obediência e para a submissão.
Como você vê a situação social e econômica na França hoje?
Eu julgo uma sociedade em função do que ela faz pelos mais
desfavorecidos. E é claro que eu só posso fazer um juízo severo, porque
na França não se respeita a todos os seres humanos. Para mim o
problema número um é a injustiça que reina por toda parte. Os que estão
no poder não investem nos pobres. Temos um governo que só favorece os
ricos. Por isso temos três milhões de pobres.
Muitos de nossos cidadãos acreditam que os trabalhadores ilegais se
aproveitam do sistema, sem saber que eles recebem o formulário de
impostos em suas casas. Ou seja, eles são conhecidos pelo governo, mas
como não estão com os papéis em dia não podem se beneficiar de nenhuma
ajuda social. Isso é uma extorsão por parte do Estado!
E a Igreja o que faz? Tomemos como exemplo o que ocorreu em 23 de
agosto de 1996, quando quase mil policiais das forças especiais
forçaram a ponta de machado as portas da Igreja
Saint-Bernard-de-la-Chapelle em Paris, tirando a força 300 estrangeiros
em situação irregular. Eu estava escandalizado e desgostoso porque o
próprio bispo havia pedido sua expulsão. E quando alguém expulsa humanos
que se protegem em uma igreja, está dessacralizando essa igreja.
Desgraçadamente, isso continua acontecendo.
E o que se faz com os estrangeiros ilegais? São jogados em centros
de detenção, e recebem um tratamento próprio de campos de concentração.
Isso é o que ocorre hoje na França. Nas prisões, ocorre um suicídio a
cada três dias. É um número enorme. O único horizonte para muitos
desses presos é o suicídio, Nunca se viu algo igual. Na Europa, a
França tem o recorde de suicídios por enforcamento na prisão.
E o discurso sobre a crise econômica, onde se situa?
Nesta crise, não são os ricos que estão em crise, são os mais
pobres. Protestamos o ano passado contra as leis propostas pelo governo
porque elas penalizavam os pobres. Hoje, muitos franceses só vão ao
médico, ao dentista, ao oftalmologista quando é algo verdadeiramente de
urgência. E às vezes já é tarde. Os direitos sociais estão sendo
eliminados. E a crise atinge as famílias. Se alguém comprou uma casa,
perde o trabalho e não arruma outro, deve revendê-la. Isso traz muitos
problemas de droga e delinquência.
A moradia social não é uma prioridade política, porque aqueles que
estão no poder possuem boas mansões. Constrói-se pouco e as pessoas não
sabem aonde ir, restando-lhes as ruas ou algum sótão insalubre. E isso
não importa, ainda que existam muitos edifícios vazios em Paris.
Quando chega o inverno, o governo fala de “planos”. Então, abrem-se
ginásios ou algumas salas para abrigar os milhares que não tem onde
morar. Mas esses “planos” não são solução para o frio. A solução é
construir habitações dignas. É uma vergonha, é desumano e não é cristão
deixar que centenas de pessoas morram de frio nas calçadas e ruas da
França.
Como disse o escritor Victor Hugo: “Fazemos caridade quando não
conseguimos impor a justiça”. Porque não é de caridade que
necessitamos. A justiça vai às causas; a caridade, aos efeitos. Eu não
estou dizendo que não se deve ajudar com um prato de sopa ou um abrigo a
quem está nas ruas. Existem urgências. Eu faço isso, mas minha
consciência não fica tranquila, porque penso que devemos lutar contra
as causas estruturais que prendem essas pessoas na injustiça. O mais
triste é que as pessoas vão se acostumando com a injustiça. E eu digo:
Despertem! Tenham vergonha! Vamos nos indignar contra a injustiça!
Hoje, a injustiça está presente por toda a França. Existem oásis de
riqueza, de luxo exorbitante, e extensos guetos de miséria. Na França,
há uma violação flagrante dos Direitos Humanos. Por isso devemos
combater, para que os direitos das pessoas sejam respeitados.
No ano passado, ocorreram manifestações massivas de protesto
contra diferentes projetos do governo, que se fez de surdo para o
barulho das ruas.
Eu acredito que, quando não se respeita o povo que se expressa nas
ruas, não se tem em conta o futuro. Na França, ficou um sentimento de
raiva. Isso não pode seguir assim. Não se pode seguir metendo a polícia
por todas as partes para conter a inconformidade do povo. Isso está
nos levando na direção de um regime policial. A injustiça não traz paz.
É exatamente o contrário. Existe fogo sob uma panela que querem manter
fechada. Ela pode explodir.
As suas lutas pela justiça não se dão só na França. Sua
palavra e ação se manifestam em outros lugares também. Poderia dar
alguns exemplos?
Seguimos lutando pelos direitos do povo palestino. Israel é um
Estado colonialista que rouba terra palestina e exclui esse povo pela
força. Há mais de 60 anos que a Palestina vive sob a ocupação
israelense e a injustiça. E a chamada “comunidade internacional” faz
bem pouco ou nada. Por isso estamos nos mobilizando em todas as partes
para exercer uma pressão sobre o governo israelense. E uma das ações é
boicotar os produtos vindos de Israel, principalmente aqueles que são
produzidos nos territórios ocupados. Cerca de 50 produtos agrícolas são
produzidos na Palestina para benefício israelense. Enquanto os
palestinos viverem na injustiça, não haverá paz.
Cuba. Este é um país que tem futuro. Eu pude constatar que é um povo
digno, corajoso e solidário. Em Cuba pode haver pobreza, mas não
existe a miséria que se vê em qualquer país da América Latina, ou na
França, ou nos Estados Unidos. Apesar do bloqueio imposto pelos EUA,
todos têm saúde e educação gratuita, e ninguém dorme nas ruas. É
incrível!
Eu faço parte do Comitê Internacional pela Libertação dos Cinco
Cubanos presos nos EUA. Eles lutaram contra as ações terroristas que
estavam sendo preparadas em Miami. Resolvi participar do Comitê porque
me dei conta da injustiça cometida contra eles e que não pode ser
tolerada.
Qual a sua avaliação sobre a maneira pela qual a imprensa
francesa trata os processos sociais e políticos alternativos que se
desenrolam na América Latina? Por que essa imprensa tem a tendência a
ridicularizar presidentes como Evo Morales e Hugo Chávez?
Esse comportamento da imprensa deve-se ao fato de que, regularmente,
a França apóia a quem não deveria apoiar. É uma questão de interesses.
Estes presidentes não fazem o que os ricos querem, assim a França se
coloca ao lado dos ricos. É como faz na África também.
Agora, a participação das mulheres latino-americanas na política é
sensacional. Uma mulher na presidência do Brasil é algo extraordinário!
Na França, não fomos capazes nem de ter uma primeira ministra: somos
tão machos! Ah, sim, uma vez tivemos a senhora Edith Cresson, mas ela
não pode ficar por muito tempo já que tentaram massacrá-la em função de
sua condição de mulher. Somos machos e vulgares como não se pode
imaginar! Hoje, não é a velha Europa que dá o exemplo, é a América
Latina. Devemos olhar para lá.
Duas últimas perguntas: o que outros altos membros da Igreja
Católica pensam do senhor? E, como cidadão e ser humano, vê alguma
alternativa para a situação social da França?
Em geral, minhas relações com os outros bispos são cordiais, ainda
que alguns prefiram me ignorar. Não me enviam nenhum documento da
Conferência Episcopal, não me convidam para a assembleia anual em
Lourdes. Tampouco dizem o porquê, e eu também não perguntei, embora
outros sacerdotes tenham perguntado, sem receberem uma resposta até
hoje. Às vezes, isso não é confortável, mas o que me conforta é que
estou em paz com minha consciência, por dizer o que penso, por denunciar
a injustiça.
Quanto à segunda pergunta, tenho confiança e esperança nos homens e
mulheres. Vamos seguir avançando. Existem movimentos cidadãos que estão
criando um tecido associativo alternativo. Vejo muitas lutas que
nascem e se desenvolvem pouco a pouco. É formidável! Cada um deve
encontrar o caminho onde outros lutam. A unidade: é isso que pode
ajudar a salvar a democracia e os direitos das pessoas. Eu tenho
esperança.
Notas:
1) http://www.partenia.com
2) Foi arcebispo de Olinda e Recife. Morreu em 27 de agosto de 1999.
3) Chamado de « Bispo dos Índios », e também de « O bispo vermelho».
Exercia seu trabalho pastoral na cidade de Riobamba. Morreu em 31 de
agosto de 1988.
4) Vários sacerdotes e freiras somaram-se às guerrilhas. O precursor
foi Camilo Torres, na Colômbia, que morreu em combate em 15 de
fevereiro de 1966. Na Nicarágua, durante a guerra contra a ditadura de
Somoza, muitos seguiram seu exemplo, sendo Ernesto Cardenal o mais
famoso.
Hernando Calvo Ospina,
jornalista colombiano residente na Europa, autor de vários livros,
entre os quais: Salsa, Don Pablo Escobar, Perú: los senderos posibles y
Bacardí: la guerra oculta
Tradução: Katarina Peixoto