quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A múmia do Egito e Cuba

Marcus Petrônio

Quando pensamos no Egito, nossos olhos voltam à antiguidade e a formação das primeiras civilizações. Às margens do Nilo, uma sociedade que dominou técnicas agrículas, uma matemática sofisticada e uma medicina um pouco menos mística, despontava como uma sociedade a frente de sua época.

O Egito é, para minha surpresa, mais um dos quintais do Império Americano. Tio Sam sustenta uma ditadura que tem 30 anos de implacável combate a qualquer insurgente ou descontente como regime. Interessante é que o atual governo, que tenta, cambaleante, sobreviver feito uma múmia-zumbi,diante de uma poplação que só quer uma coisa: democracia. Esse governo sobrevive às custas dos gvernos americanos. Os Senhores da Guerra enviam em torno de um bilhão de doláres para manter o governo antidemocrático no Egito.

Enquanto isso, na esquina dos USA, Cuba vive um bloqueio econômico imposto pela democracia americana, que, ao longo de décadas, têm levado a Ilha de Fidel à categoria de país dependente de nãções que deixaram de acreditar na frase: " o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, Venezuela, Argentina blá-blá-blá.

Em Cuba houve uma revolução popupar, que tinha o intuito de derrubar Fulgêncio Baptista, amigo e serviçal do governo americano. O povo queria uma nova forma de governança, e mesmo com toda sabotagem americana, Cuba continua em processo revolcionário, sem receber dimdim dos vizinhos que só aceitam ouvir yes.
Cuba e o Egito são países bem distintos. Para os americanos é bom que Cuba seja um balneáro ou um prostíbulo como acontecia ante de Fidel, Che e companhia derrubassem um governo tirano capitaneado pelos Estados Unidos; já o Egito tem uma posição estratégica: de um lado Israel, do outro os povos islâmicos e chegamos a matemática do mal: zero grana para "ditadura" cubana. 1 Bi de grana pra ditadura egípicia. Americano é tão bonzinho.

Viva a revolução no Egito!

A farra com o dinheiro do povo ou a podridão das instituições brasileiras

  Waldemar Rossi no Correio da Cidadania   
 
Os acontecimentos políticos do início deste ano de 2011 não poderiam ser mais reveladores do que vem ocorrendo no Brasil durante todos esses anos de vida republicana: um país marcado pela corrupção e podridão das suas instituições e descompromisso dos governantes com a vida do povo.
 
A começar pelo aumento acintoso, descabido e criminoso dos salários de deputados, senadores, ministros, presidente, governadores, vereadores. Um assalto aos cofres públicos! Assalto amparado pelo Poder Judiciário porque seus ministros se locupletam com tal medida, ajudando a afanar o povo. Ante tal disparate, impossível ser mais contundente do que a atitude de um bispo (cujo teor publicamos a seguir), embora tal notícia já tenha percorrido o país.
 
É bom lembrar:
 
"Bispo recusa comenda e impõe constrangimento ao Senado Federal"
 
"Num plenário esvaziado, o bispo cearense de Limoeiro do Norte, Dom Manuel Edmilson Cruz, impôs ontem um espetacular constrangimento ao Senado Federal.
 
Dom Manuel chegou a receber a placa de referência da Comenda dos Direitos Humanos Dom Hélder Câmara das mãos do senador Inácio Arruda (PCdoB/CE). Mas, ao discursar, ele recusou a homenagem em protesto ao reajuste de 61,8% concedido pelos próprios deputados e senadores aos seus salários.                                   
 
"A comenda hoje outorgada não representa a pessoa do cearense maior que foi Dom Hélder Câmara. Desfigura-a, porém. De seguro, sem ressentimentos e agindo por amor e com respeito a todos os senhores e senhoras, pelos quais oro todos os dias, só me resta uma atitude: recusá-la’." (*)
 
É preciso dizer mais?
 
Agora nos chega outra notícia reveladora do compromisso prioritário do governo com os interesses do capital predador da natureza: o projeto para construção de dezenas de usinas nucelares no país. Outra vez me utilizo de um artigo - do Roberto Malvezzi - como ilustrador:
 
As Nucleares no São Francisco
Roberto Malvezzi (Gogó)
 
O governo Lula, agora Dilma, realmente decidiu arrancar dos porões da ditadura militar suas principais obras. Além da transposição do São Francisco, barragens e outras grandes obras de infra-estrutura, agora ressuscita o desenvolvimento da energia nuclear no Brasil.
 
Combatida no mundo inteiro, recuou nos países da Europa, sobretudo depois do acidente de Chernobyl, onde a nuvem radioativa, além de causar uma tragédia na região, ameaçou pairar sobre a Europa.
 
No Brasil tivemos a dimensão do que pode ser com o simples fato de uma família de recicladores se encantar com um objeto luminoso em Goiânia, contaminando a si mesma e a região ao seu redor.
 
Temos ainda a experiência desastrosa das duas usinas atômicas de Angra dos Reis. Com muito custo, pouca utilização e ameaças constantes pela instabilidade da própria obra de engenharia, as usinas já serão desmontadas por esgotarem o prazo de validade de aproximadamente 40 anos.
 
Os rejeitos, fruto do "descomissionamento" – desligamento, desmontagem e armazenamento -, continuarão radiativos por aproximadamente mil anos.
 
As águas subterrâneas de Caetité, Bahia, onde estão nossas jazidas de urânio, estão contaminadas por radioatividade.
 
Agora o governo fala em construir pelo menos 50 usinas atômicas no Brasil, claro, começando pelo rio São Francisco. Certamente, nosso Velho Chico é mesmo a lixeira do Brasil.
 
O lugar ideal seria Belém do São Francisco, divisa do Sub-médio São Francisco com o Baixo, próximo às antigas cachoeiras de Paulo Afonso. O argumento é que ali vivem poucas pessoas (sic!), que já existe uma rede de distribuição de energia instalada e, claro, tem as águas do São Francisco. Além do mais, está próximo do Raso da Catarina, uma região pouco habitada, onde só Lampião sabia viver, considerada ideal como depósito de rejeitos.
 
Particularmente sou favorável a construção de nucleares, desde que a primeira seja feita na Praça da Sé, São Paulo. A segunda na praia de Ipanema, Rio de Janeiro. E a terceira, evidentemente, na Praça dos Três Poderes, Brasília. Se ali for seguro, então é seguro para o resto do Brasil.
 
Um final de artigo um tanto quanto irônico, mas contundente.
 
É doloroso ver essa cambada vir a público fazendo de conta que defende os interesses dos trabalhadores, como no caso do bate-boca em torno de alguns pingados reais a serem acrescidos ao mísero salário mínimo. Salário mínimo que deveria garantir a sobrevivência de milhões de brasileiros. Brasileiros que trabalharam 35, 40 e até 50 anos construindo as riquezas deste país.
 
Aos que produzem riquezas e constroem o país, migalhas. Aos sanguessugas da nação, milhões de reais que são retirados do orçamento para engordar seus salários astronômicos ou para garantir muita grana para empreiteiras ávidas de lucro fácil e, por cima, colocando em risco a vida do povo.
 
Se considerarmos as iniciativas do Legislativo, o apoio do Judiciário e os planos do Executivo podemos afirmar que realmente as instituições estão apodrecidas.
 
Diante dessa situação de degradação ficam algumas reflexões: será que o movimento social vai majoritariamente permanecer na expectativa dos rumos do governo Dilma com seus braços cruzados, como se nada disso tivesse a ver com a vida do povo? Será que iremos conviver mais oito anos na passividade, na cumplicidade das centrais sindicais e de outros movimentos, como aconteceu durante todo o governo Lula?
 
A saída está nas mãos do povo. Mas para isto é necessário que cada cidadão e cidadã consciente bote a boca no trombone, denuncie, explique, convoque à participação ao lado dos setores do movimento social que permanecem fiéis às lutas pelos direitos do povo.
 
(*) Grifo meu
 
Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

A insurreição no Egito e suas implicações para a Palestina




Se o regime de Mubarak cair, Israel e os Estados Unidos perderão um grande aliado na questão da palestina, e a Autoridade Palestina de Abbas perderá um de seus principais aliados contra o Hamas. Já desacreditada pela amplitude de sua colaboração e capitulação exibidas nos Palestine Papers, a Autoridade Palestina sairá ainda mais enfraquecida. Sem qualquer “processo de paz” com credibilidade para justificar sua “coordenação de segurança” ininterrupta com Israel, ou mesmo a sua própria existência, a implosão da AP pode começar. Derrubada de regimes na Tunísia e no Egito podem estimular palestinos a organizar protestos populares massivos. O artigo é de Ali Abunimah encontra-se no CARTA MAIOR.

O mundo árabe está em pleno tremor de terra político e o solo ainda não parou de tremer. Fazer previsões quando os acontecimentos são tão voláteis é arriscado, mas não há dúvida alguma de que o levante no Egito –mesmo se terminar – terá um espetacular impacto na região e na Palestina. Se o regime Mubarak cai, e se é substituído por um governo com ligações menos estreitas com Israel e com os Estados Unidos, Israel será o grande perdedor. Como comentou Aluf Benn no jornal israelense Há’aretz, “o declínio do poder do governo do presidente egípcio Hosni Mubarak deixa Israel num estado de isolamento estratégico. Sem Mubarak, Israel não tem praticamente mais amigos no Oriente Médio; no ano passado, Israel viu sua relação com a Turquia afundar”[1]. Com efeito, observa Benn, “Restam a Israel dois aliados estratégicos, na região: a Jordânia e a Autoridade Palestina”. Mas o que Benn não diz é que esses dois “aliados” tampouco serão preservados.

Eu estava em Doha nessas últimas semanas para examinar os Palestine Papers divulgados pela Al Jazeera. Eles sublinham até que ponto a divisão entre a Autoridade Palestina de Ramallah, sustentada pelos Estados Unidos, e sua facção Fatah, de um lado e o Hamas na Faixa de Gaza, por outro, foram uma decisão política das potências regionais: os Estados Unidos, o Egito e Israel [2]. Uma política que implicasse a imposição de um estado de sítio estrito à Faixa de Gaza pelo Egito.

Se o regime de Mubarak cai, os Estados Unidos perdem um grande aliado na questão da palestina, e a Autoridade Palestina de Abbas perderá um de seus principais aliados contra o Hamas.

Já desacreditada pela amplitude de sua colaboração e capitulação exibidas nos Palestine Papers, a AP será ainda mais enfraquecida. Sem qualquer “processo de paz” com credibilidade para justificar sua “coordenação de segurança” ininterrupta com Israel, ou mesmo a sua própria existência, a implosão da AP bem que poderia começar. Inclusive a sustentação dos Estados Unidos e da União Europeia para a polícia de estado em gestação da AP poderia não ser mais sustentável politicamente.

O Hamas poderá ser o beneficiário imediato, mas não necessariamente no longo prazo. Pela primeira vez em muitos anos vemos importantes movimentos de massa que, se incluem muçulmanos, não são necessariamente dominados ou controlados por eles.

Há também com efeito um espelho para os palestinos: a permanência dos regimes tunisiano e egípcio estava fundada na percepção de que eram fortes, assim como o seria a sua capacidade de aterrorizar uma parte de seu povo e de cooptar outra. A facilidade relativa com a qual os tunisianos expulsaram seu ditador e a rapidez com que o Egito e talvez o Iêmen parecem seguir o mesmo caminho, poderão bem enviar aos Palestinos a mensagem de que as forças de segurança de Israel ou da AP não são assim tão invencíveis como parecem.

Com efeito, a “dissuasão” de Israel já sofreu um golpe importante na sequência de seu fracasso em vencer o Hezbollah no Líbano, em 2006 e o Hamas em Gaza, durante os ataques do inverno 2008-2009.

Quanto à AP de Abbas, jamais o dinheiro dos doadores internacionais foi gasto pelas forças de segurança com resultados tão ruins. O segredo de polichinelo é que, sem a ocupação da Cisjordânia e de Gaza sitiada pelo exército israelense (com a ajuda do regime de Mubarak), Abbas e sua guarda pretoriana teriam caído há muito tempo. Erguido por um processo de paz abusivo, os EUA, a União Europeia e Israel, com a sustentação de regimes árabes em decrepitude, agora ameaçados pelo seu próprio povo, construíram um castelo de cartas palestinas que não deve resistir por muito tempo.

Desta vez a mensagem é talvez que a resposta não é mais uma resistência militar, mas antes a concessão do poder ao povo e uma ênfase maior nos protestos populares.

Hoje, os palestinos formam ao menos metade da população na Palestina histórica – Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza. Se eles se sublevarem coletivamente para exigir direitos iguais, o que Israel poderá fazer para detê-los? A violência brutal e a força de Israel não interditaram as manifestações regulares na cidades de Bil’in e Beit Ommar, da Cisjordânia.

Israel deve acreditar que se responder brutalmente a todo levante de amplitude seus apoios internacionais já precários poderiam começar a evaporar tão rápido como os de Mubarak, cujo regime, parece, sofreu uma rápida “deslegitimação”. Os dirigentes israelenses tem indicado claramente que uma implosão dessa sustentação internacional lhes ameaça mais que uma ameaça militar externa. Com um poder retomado pelos povos, os governos árabes poderiam não permanecer mais silenciosos e cúmplices como estiveram durante os anos de opressão israelense sobre os palestinos.

Quanto à Jordânia, a mudança já está em curso. Eu fui testemunha de uma manifestação de milhares de pessoas no centro da cidade de Amã, ontem (29/01/2011). Esses protestos bem organizados e pacíficos, chamados por uma coalizão de partidos de oposição islâmicos e de esquerda ganharam agora, depois de semanas, todas as cidades do país. Os manifestantes exigem a demissão do primeiro ministro Salir al-Rifai, a dissolução do parlamento eleito (numa eleição considerada largamente como viciada, em novembro), novas eleições, baseadas em leis democráticas, justiça econômica, o fim da corrupção e a anulação do tratado de paz com Israel. E houve manifestações fortes em solidariedade à população egípcia.

Nenhum dos partidos organizadores da manifestação disse que as revoluções do tipo das que ocorreram na Tunísia e está em curso no Egito não ocorrem na Jordânia, e não há razão para crer que esses desenvolvimento sejam iminentes. Mas os slogans escutados durante os protestos são sem precedentes na sua audácia e no seu desafio direito à autoridade. Todo governo reativo às vozes de seu povo deverá rever suas relações com Israel e com os Estados Unidos.

Uma só coisa é certa, hoje: o que quer que ocorra na região, a voz do povo não poderá mais ser ignorada.

(*) Ali Abunimah é co-fundador da Intifada Eletrônica, autor de “Um País: uma proposta audaciosa para terminar o impasse israelo-palestino” e contribuiu com o “Informe Goldstone: o legado do marco na investigação do conflito de Gaza” (Nation Books)

[1] "Without Egypt, Israel will be left with no friends in Mideast," Ha'aretz, 29 janvier 2011 (en anglais) [Sem o Egito, Israel seria deixada sem amigos no Oriente Médio]

[2] "The Palestine Papers and the "Gaza coup"," par Ali Abunimah, The Electronic Intifada, 27 janvier 2011 (en anglais) [Os Documentos Palestinos e o golpe em Gaza]

Tradução: Katarina Peixoto

Outro Oriente Médio é possível?



O Fórum Social Mundial 2011 começa dia 6 de fevereiro em Dakar, Senegal. O encontro ganhou uma nova agenda com a onda de protestos populares que já atingiu a Tunísia, o Egito, o Iêmen e a Jordânia. O mais significativo de todos, sem dúvida, é o Egito, em função do que o país representa em termos geopolíticos no Oriente Médio. Egito e Arábia Saudita são dois pilares centrais da aliança EUA-Israel na região. Uma mudança de regime político em um desses dois países pode significar um terremoto político. Washington, Tel Aviv e alguns outros governos árabes sabem disso, obviamente, e estão com as barbas de molho. Na noite desta terça, o presidente dos EUA, Barack Obama, cobrava de seu até aqui aliado egípcio, Hosni Mubarack, o “início imediato da transição” política no país. Vão-se os anéis para assegurar a permanência dos dedos. A velha história. E os EUA temem o pior. Olham para o Egito, a Árabia Saudita, a Jordânia e a Palestina com indisfarçável pânico.
Quem ouve a voz dos milhões de egípcios que perderam o medo da repressão e foram para as ruas sabe que o pior é a manutenção do atual regime, financiado e armado pelos Estados Unidos há décadas. Enérgico na denúncia e na cobrança por democracia quando se trata de países como o Irã – ou na “implantação da democracia” a ferro e fogo, no caso do Iraque -, os EUA silenciam quando se trata das suas ditaduras amigas no Oriente Médio, especialmente no caso do Egito e da Arábia Saudita. Ou silenciavam, ao menos, já que agora foram obrigados a se manifestar.
Desta vez, os malabarismos linguísticos e semânticos não conseguem esconder a natureza do problema. E a natureza do problema no Egito não reside no fundamentalismo islâmico ou nas aspirações sociais e políticas da Irmandade Muçulmana. O problema reside em um regime autoritário e corrupto, apoiado e sustentado pelos EUA, que governa para um pequeno grupo, deixando milhões de pessoas vivendo na pobreza (cerca de 20% da população vive abaixo da linha da pobreza).
A aplicação da consigna do FSM aos problemas dessa região coloca a seguinte questão: “Outro Oriente Médio é possível?”. O que está acontecendo no Egito mostra que o castelo das autocracias apoiadas e sustentadas pelos EUA é menos sólido do que parecia. Milhões de jovens, homens e mulheres, estão nas ruas dizendo que é possível, sim. E necessário. Basta que os líderes ocidentais supostamente defensores da democracia deixem de financiar aqueles que não querem que os povos destes países escolham o seu destino. Deixem a democracia entrar no Oriente Médio. Não é essa a promessa universal do Ocidente? E seja o que Deus quiser. Ou o que Alá quiser!
O povo egípcio não está rua por questões religiosas. Está na rua porque, entre outras coisas, decidiu cobrar as promessas civilizatórias do Ocidente: democracia, liberdade, prosperidade, justiça social. As consequências desses protestos são incertas. Neste exato momento, a turma dos anéis está em campo para tentar salvar os dedos do modelo atual. Mas uma coisa parece definitiva: o povo egípcio perdeu o medo e decidiu mudar os rumos do país. Essa é uma força muito difícil de ser detida e costuma ter um impacto profundo na vida das nações.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O que está em jogo no FSM de 2011


 
O Fórum Social Mundial de Dakar está organizado em três grandes temas: a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum Social Mundial. A ideia é debater o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase de descolonização; o alcance político das mobilizações sociais; e a expressão política dos movimentos sociais e de sua relação com os governos.
Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano *

A situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista. As quatro dimensões da crise (social, geopolítica, ambiental e ideológica) serão abordadas em Dakar. A crise social será enfrentada em particular sob os pontos de vista da desigualdade, da pobreza e da discriminação, enquanto a crise geopolítica será discutida em particular da perspectiva da guerra e do conflito, do acesso às matérias primas e da emergência de novas potências. A crise ambiental será debatida, em particular, sob a perspectiva da mudança climática, enquanto a crise ideológica será discutida da perspectiva de ideologias seguras, da questão das liberdades e da democracia e da cultura, presentes desde o Fórum Social de Belém, que serão analisadas em profundidade.
A evolução da crise lança luz sobre uma situação contraditória. Análises do movimento altermundista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20. E mesmo assim ainda não foram traduzidos em políticas viáveis. Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.
A validação das agendas resulta na transformação das palavras de ordem dos movimentos em lugares comuns. É preciso refinar as perspectivas e conceder mais relevância ao debate estratégico, à articulação entre a resistência de curto prazo e a de médio prazo e à mudança em curso sob a superfície dos acontecimentos. A situação lança uma luz sobre a natureza dual da crise, tensionada entre a crise do neoliberalismo, que é a fase da globalização capitalista e a crise da própria globalização capitalista; uma crise do sistema que pode ser analisada como uma crise de civilização, a crise da civilização ocidental, estabelecida desde princípios do século XV.
Nesse contexto, alianças estratégicas devem obedecer a duas exigências. A primeira está vinculada à luta contra a pobreza, a miséria e a desigualdade, o uso do trabalho precário e a violação das liberdades no mundo, para melhorar as condições de vida e a expressão da classe trabalhadora diretamente afetada pela economia dominante e pelas políticas públicas. A segunda exigência prioriza o fato de que outro mundo é possível; um mundo necessário envolve um rompimento definitivo com os modos de produção e consumo da economia e da sociedade, bem como a redistribuição ambiental, com o equilíbrio geopolítico do poder estabelecido nas décadas recentes nos modelos democráticos proeminentes do ocidente.
Três propostas emergem como respostas à crise: o neoconservadorismo, que propõe a continuação do atual padrão dominante e dos privilégios que os acompanham às custas das liberdades, da continuidade das desigualdades e da extensão dos conflitos e das guerras; uma reestruturação profunda do capitalismo defendido pelos militantes do “New Deal Verde”, que propõe regulação global, redistribuição relativa e uma promoção voluntarista das “economias verdes”; e uma alternativa ambiental e social radical, que corresponde a uma superação do atual sistema dominante. O Fórum Social Mundial reúne todos os que rejeitam a opção neoconservadora e a continuação do neoliberalismo, constituindo um fórum pela mudança vigorosa da discussão entre os movimentos que fazem parte de uma perspectiva de avanço de um “New Deal Verde” e os que defendem a necessidade de alternativas radicais.
A REFERÊNCIA AO CONTEXTO AFRICANO
O Fórum Social Mundial de Dakar vai enfatizar questões essenciais que aparecem com mais nitidez com as referências ao contexto africano. A ênfase estará no lugar da África no mundo e na crise. A África é objeto privilegiado de análise, ao tempo em que exemplifica a situação global. Não é pobre; é empobrecida. A África não é marginalizada; é explorada. Com suas matérias primas e recursos humanos cobiçados pelos países do Norte e pelas potências emergentes, e com a cumplicidade ativa dos líderes de alguns estados africanos, a África é indispensável para a economia global e para o equilíbrio ambiental do planeta.
A ênfase também estará na descolonização como um processo histórico incompleto. A crise do neoliberalismo e a crise de hegemonia dos Estados Unidos são indicativos da possibilidade de uma nova fase de descolonização, e do enfraquecimento das potências coloniais europeias. A representação Norte-Sul está mudando, uma situação que não elimina a realidade geopolítica e as contradições entre o Norte e o Sul.
O Fórum priorizará as diásporas e as migrações como uma das questões centrais da globalização. A questão será enfrentada com base na situação atual dos imigrantes e seus direitos, numa análise de longo termo, com o comércio de escravos posto sob a perspectiva do crescimento do papel das diásporas culturais e econômicas.
O Fórum debaterá as mudanças no sistema internacional, nas instituições multilaterais e nas negociações internacionais. Em particular, vai focar nas questões que tornam clara a necessidade de regulação global: equilíbrio ambiental, migração e diásporas, conflitos e guerras.
A SITUAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E COMUNITÁRIOS
A convergência dos movimentos de que o Fórum Social Mundial se constitui está comprometida com a resistência ambiental e democrática. Com as lutas sociais presentes nos combates cívicos pelas liberdades e contra a discriminação. A resistência é inseparável das práticas emancipatórias específicas levadas a cabo pelos movimentos.
A direção estratégica dos movimentos está voltada para a acessibilidade universal ao direito, pela igualdade de direitos e pelo imperativo democrático. Os movimentos trazem consigo um movimento histórico de emancipação que são extensão e renovação de movimentos anteriores. Será em torno da definição, da implementação e da garantia de direitos que um novo período de emancipação possível será definido. Essa definição exige que essas concepções de diferentes gerações de direitos sejam revisitadas: direitos políticos e civis formalizados pelas revoluções do século XVIII, reafirmados pela Declaração Universal de Direitos Humanos, complementadas pelos desafios do totalitarismo dos anos 60; os direitos dos povos que o movimento de descolonização promoveu, com base no direito da autodeterminação, o controle dos recursos naturais, o direito ao desenvolvimento e à democracia; direitos sociais, econômicos e culturais especificados pela Declaração Universal e estipulados pelo Protocolo Adicional adotado pelas Nações Unidas na Assembleia Geral em 2000.
Uma nova geração de direitos está em gestação. Direitos que correspondem à expressão da dimensão global e dos direitos definidos com vistas a um mundo diferente da globalização dominante. A partir desse ponto de vista, duas questões serão as mais proeminentes em Dakar: direitos ambientais para a preservação do planeta e os direitos dos migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo. O Fórum Social Mundial de Belém enfatizou os benefícios para os movimentos de abarcarem a agenda ambiental em todas as suas dimensões, do clima à destruição dos recursos naturais e da biodiversidade, e da preservação da água, da terra e das suas matérias primas. O FSM de Dakar priorizará um novo tratamento da questão da migração, com a ligação entre migrações e diásporas e a Carta Mundial dos Migrantes.
O FSM Dakar também será o momento para o debate sobre o caráter incompleto da descolonização e devir de uma nova fase descolonização. É nesse contexto que a relação entre o Norte e o Sul está mudando. Considerando que a representação Norte/Sul está mudando na perspectiva da estrutura social, há um Norte no Sul e um Sul no Norte. A emergência do poder de grandes estados está mudando a economia global e o equilíbrio de forças geopolíticas, e é reforçado pelo crescimento de mais de trinta estados que podem ser chamados de economias emergentes. Para tudo isso, contudo, as formas de dominação continuam a ser cruciais na ordem global. O conceito de Sul continua a ser altamente relevante. O Fórum Social Mundial enfatiza uma nova questão: o papel histórico e estratégico dos movimentos sociais nos países emergentes como um todo em relação ao seu Estado e o papel futuro desses estados no mundo. Essa questão, que já marcou os fóruns com o debate sobre o papel jogado pelos movimentos no Brasil e na Índia assume uma importância particular estratégica com a mudança geopolítica associada à crise.
O Fórum Social Mundial é o ponto de encontro para movimentos de vários tipos e de diferentes partes do mundo. Esses movimentos já começaram a se encontrar em redes que reúnem diferentes movimentos nacionais. O processo dos fóruns revela duas mudanças. A primeira delas é as conexões entre movimentos de acordo com suas regiões, características e contextos específicos unificam os movimentos da América Latina, América do Norte e Sul da Ásia (e em particular, a Índia), o sudoeste da Ásia, Japão, Europa e Rússia. O Fórum Social Mundial de Dakar terá dois impactos maiores. O ano de 2010 e os preparativos para Dakar foram marcados pela nova importância conquistada pelos movimentos da região do Magreb-Machrek.
O vigor dos movimentos sociais africanos será visível em Dakar, na forma de movimentos de campesinos, sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc. Esses movimentos são visíveis, com sua convergência diversidade em sub-regiões da África: no Norte da África e em particular no Magreb, no Oeste e na África Central, na África do Leste e na do Sul.
No Fórum Social Mundial de Dakar uma questão fundamental será a do seu alcance político nas mobilizações sociais e da cidadania. Isso conduz ao problema da expressão política dos movimentos e das extensões dos movimentos em relação às instituições, ao cenário político e aos governos dos estados. Com respeito aos movimentos como um todo, a análise avança sobre a importância da especificidade, via invenção de uma nova cultura política, da relação entre poder e política. O processo do FSM pôs em cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos sociais, atividades autogestionadas, etc.) mas ainda deve inovar mais em muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante. Além disso, a tradução política dos avanços e das mobilizações dependem das instituições e das representações: num nível local, com a possibilidade de influenciar as decisões das autoridades locais; em nível nacional e internacional, com os governos dos estados, os regimes políticos e as instituições multilaterais; em nível regional e global, com alianças geoeconômicas e geoculturais e com a construção de uma opinião pública global e uma consciência universal.
O PROCESSO DOS FÓRUNS SOCIAIS MUNDIAIS
Depois de o Fórum Social Mundial de Belém ter tomado o ano de 2010 como o ano da ação global, mais de quarenta eventos demonstraram o vigor do seu processo. Isso incluiu as atividades dos 10 anos do FSM em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial dos Estados Unidos, o Fórum Social Mundial do México e o Fórum das Américas, vários fóruns na Ásia, o Fórum Mundial de Educação na Palestina, mais de oito fóruns do Magreb e Machrek, etc. Cada evento associado foi iniciativa do comitê local. Esse comitê se refere na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, que adota uma metodologia privilegiando as atividades autogestionadas e declara sua iniciativa no Conselho Internacional do FSM. Essa multiplicação de eventos abre espaço para projeções relativos à extensão do processo dos fóruns. Ele assumiu uma nova forma, “um fórum estendido”, que consiste no uso da Internet para ligar iniciativas locais em diferentes países, com um Fórum em cada. Assim, enquanto ocorria o Fórum Mundial da Educação na Palestina, mais de 40 iniciativas estavam em curso em Ramallah. As iniciativas associadas com “Dakar estendida” inovarão o processo dos fóruns.
A preparação para o FSM Dakar baseou-se nos eventos do ano da ação global, 2010, bem como numa série de iniciativas que asseguraram a convergência de ações e permitiram novos caminhos a serem explorados em termos de organização e metodologia dos fóruns. Assim, já se pode usar as caravanas convergindo para Dakar, dos fóruns de mulheres em Kaolack, das migrações e diásporas, dos encontros para convergência de ações, dos fóruns associados (Assembleia Mundial dos Povos, fóruns pela ciência e pela democracia, sindicatos, autoridades locais e da periferia, parlamentares, teologia e libertação, etc.).
Depois de Dakar, um novo ciclo no processo dos fóruns irá começar. O fortalecimento do processo dos fóruns sociais mundiais poderia ocorrer com a reunião com grandes eventos, como o Rio+20, G8, G20, cúpulas e outras poderiam acordar com sua perspectiva. Seriam reconhecidos como eventos associados ao processo do fórum, estabelecendo assim uma proximidade com os acontecimentos de Seattle, em 1999, que contribuíram para a criação do FSM.

* Gustave Massiah e Nathalie Péré-Marzano SÃO representantes da Research and Information Centre for Development (CRID – France) no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. A tradução é de Katarina Peixoto. Artigo publicado pela Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br).

Pepe Escobar: Fúria, fúria, contra a contrarrevolução



 Pepe Escobar, Asia Times Online

Fúria, fúria, contra a morte da luz (Dylan Thomas)

Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o jihadismo – jamais passou de truque barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito.
O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em think-tanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif.
E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em voos rasantes as multidões na Praça Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas – conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar.
Diga alô ao meu suave torturador…
A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram do que estava a caminho.
Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano – bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante, caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos “tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida, contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa.
Faraó 2011 parece remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed ElBaradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado na terra-mãe.
O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor. Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de sua Guantánamo árabe. Em Washington, o establishment gostou muito.
Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da Universidade al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos esses, os dias de Mubarak de Revolução dos Bichos estão contados.
Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram ElBaradei a negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito mais em “comitês populares” que em ElBaradei.
É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge.
O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa Tiananmen – repressão linha duríssima. Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida.
O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhão de dólares anuais a título de “ajuda” – voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro das casas, implorando por “segurança”.
Issander El Amrani, do blog The Arabist (http://www.arabist.net/), destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas, todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush, dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve Mubarak.
A classe média egípcia, empobrecida mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman, torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi incendiada pelos manifestantes.
O passo do dissidente egípcio
No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque – convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que “afoga mendigos no Nilo”.
Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de Mubarak, aplicado  regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime – também em crise, com os jovem obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados).
Não surpreende pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia, estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado.
O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos “terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários.
Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do Kefaya (“Basta!”) – movimento popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era La lil-tamdid, La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”) [mais, sobre o movimento, em http://en.wikipedia.org/wiki/Kefaya].
O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários experientes da internet.
Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de Mubarak dia 16 de abril –, e que inspirou a criação do movimento online de mesmo nome (Facebook. Sobre o movimento, ver http://www.wired.com/techbiz/startups/magazine/16-11/ff_facebookegypt ).
O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens influenciados pelo movimento Kefaya  preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não querem que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de Revolução dos Bichos precisa dolorosamente de alguma catarse.
Rebelo-me, logo, existo
Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político orgânico, de base.
Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento, furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo (mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet).
Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”.
É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede al-Jazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a internet.
É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casa para abrigar manifestantes e organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas dos postos de polícia de Mubarak.
Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (…) enfrentam uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda a história.”
A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão?
O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial.
Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma “estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches. Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova ordem política para o Oriente Médio.
A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.

Por quanto tempo Mubarak aguentará?

A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do 3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse ela. “E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado dessa sabedoria.

A senhora, idosa, de véu vermelho, estava parada a polegadas de um tanque M1 fabricado nos EUA, do 3º Exército Egípcio, bem à margem da Praça Tahrir. Os soldados eram paramilitares, alguns com barretes vermelhos, outros com capacetes, barreiras de fuzis apontadas para a praça, metralhadoras pesadas armadas nos tabiques. “Se atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado” – disse ela. “E se não atirarem contra o povo egípcio, Mubarak está acabado”. O povo no Egito está tomado dessa sabedoria.

Pouco antes de amanhecer, quatro F-16 Falcons – outra vez, é claro, fabricados no país do presidente Obama – apareceram ganindo sobre a praça, os ecos reverberando nas paredes cinzentas do gigantesco prédio nasserista, seguidos por dezenas de milhares de olhos que se erguiam da praça para o céu. “Estão conosco”, muitos gritaram. Acho que não, pensei. Nem os tanques, novos na praça, ao todo 14 que apareceram sem slogans grafitados, os soldados, assustados, não saíram das cabines – e que os manifestantes também acreditavam que ali estivessem para protegê-los.

Mas então, quando me aproximei de um oficial num dos tanques, vi que abria um sorriso. “Jamais atiraremos contra nosso povo, ainda que venham ordens para atirar” – ele gritou, para fazer-se ouvir acima do barulho do motor. Tampouco me convenceu completamente. O presidente Hosni Mubarak – ou talvez se deva escrever ‘presidente’, entre aspas, estava no quartel-general, depois de nomear a nova junta de ex-militares e agentes de inteligência. Os boatos zuniam pela praça: o velho lobo lutaria até o fim. Para outros, não faria diferença. “Poderá matar 80 milhões de egípcios?”

Começaram a crescer sentimentos de antiamericanismo, depois de o presidente Obama ter mantido o apoio de sempre, embora morno, ao governo de Mubarak. “Não Obama, Não Mubarak” – lia-se em vários cartazes. Mubarak, com uma estrela de Davi pintada sobre o rosto. Muita gente apanhava do chá caixas vazias de balas de festim usadas semana passada, todas com o selo “Made in the USA”. Vi que o tanque que vinha à frente tinha letras semiapagadas na lateral, que começavam com “MFR” – mas foi quando um soldado com rifle e baioneta receber ordem para me prender; corri para dentro da multidão e ele desistiu –, mas será que “MFR” é a sigla correspondente a US Mobile Force Reserve [Força Móvel de Reserva dos EUA], que mantém tanques em território egípcio? Essa coluna de tanques teria sido emprestada pelos EUA? Fácil ver o uso que os egípcios deram aos tanques.

Assisti a cenas extraordinárias antes, durante o dia, misturado à multidão entre os manifestantes e os soldados que conduziam outra unidade de tanques (naquele caso, máquinas velhas, Pattons M-60, do tempo do Vietnã), que parecia estar ali para dar cobertura aos canhões de água mandados para dispersar a multidão. Centenas de jovens cercaram um dos tanques e quando um tenente de óculos escuros atirou para o ar, foi empurrado contra o próprio tanque e obrigado a escalá-lo para fugir dos rapazes. Mas a multidão logo mudou de humor; os rapazes posaram para fotografias sobre o tanque e ofereceram frutas e água aos soldados.

Quando uma longa coluna de soldados formou-se na largura da rua, um homem muito velho e corcunda, pediu e obteve licença para aproximar-se. Segui-o e vi abraçar e beijar o tenente nos dois lados do rosto. Ele disse: “Vocês são nossos filhos. Vocês são nosso povo”. Em seguida andou ao longo da coluna, beijando e abraçando cada soldado, como se fosse seu filho. É preciso ter coração de pedra para não se emocionar com essas cenas de que ontem o dia foi cheio.

Às tantas, um grupo de manifestantes trouxe um homem que disseram ter apanhado roubando – no momento, o Cairo parece estar cheio de ladrões – e empurraram na direção dos soldados. “Vocês estão aí para nos proteger” – cantavam. Um dos soldados bateu no homem, no rosto, e o oficial esbofeteou o soldado. O soldado sentou na calçada, balançando a cabeça, desentendido. Durante todo o dia, um helicóptero egípcio Mi-25 – esse, relíquia da era soviética – sobrevoou a multidão, armado com seis foguetes, mas nada fez. Depois foi um Gazelle, de fabricação francesa, da Força Aérea do Egito, que voou sobre a multidão, e as pessoas acenaram na direção de onde se via o piloto, que também acenava em resposta.

Os egípcios, sem cessar, procuravam fazer contato com quem lhes parecesse estrangeiro – e um inglês de cabelos grisalhos como eu pareci-lhes suficientemente estrangeiro –, insistindo em que, depois que um povo perde o medo, não há como voltar a acovardar-se.

“Nunca mais teremos medo”, gritava uma jovem na minha direção, no momento em que os jatos gritavam também. E um ex-policial, que se apresentava como atual homem de ligação entre os manifestantes e o exército disse que “o exército estará conosco, porque eles sabem que Mubarak tem de sair”. Outra vez, não estou muito convencido.

E os saques e incêndios continuam. O ex-policial – que disso parecia entender – disse-me que muitos dos saqueadores são de um grupo que fez parte do Partido Democrático Nacional de Mubarak, cuja função fora a de convencer os egípcios a comparecer às urnas e votar em seu amado líder. Nesse caso, por que, todos nos perguntamos, esses homens estariam dedicados a assaltos e saques, exatamente os mesmos crimes de que os acusam todos os que exigem que Mubarak deixe o país? Essa exigência, aliás, inclui também Omar Suleiman, cuja expulsão a multidão deseja, o ex-espião chefe, que acaba de ser nomeado para a vice-presidência.

Por todo o Egito, em praticamente todas as ruas do Cairo, há hoje vigilantes – cidadãos comuns, não homens de Mubarak, cansados das gangues semioficiais que hoje assaltam o próprio povo na calada da noite. Para voltar ao hotel ontem à noite, tive de passar por oito postos de controle controlados por civis, jovens e velhos – um deles manteve-se perfilado, com uma bengala numa mão e um velho rifle britânico Lee Enfield .303 na outra – que agora prendem os ladrões e saqueadores e os entregam ao exército. Não é o “Exército de Papai”[1].

Nas primeiras horas da manhã de ontem, um grupo de homens armados invadiu o Children's Cancer Hospital, próximo do velho aqueduto romano. Queriam levar equipamento médico, mas foram expulsos por manifestantes que os ameaçaram com facas e os expulsaram. O Dr. Khaled el-Noury, cirurgião chefe do hospital contou-me que os assaltantes armados pareciam desorganizados e pareciam assustados.

Não à toa. O encarregado da recepção no hospital mostrou-me o facão de cozinha que guarda na gaveta para proteger-se. E vi outros sinais do lado de fora do portão, onde havia homens armados com bastões e porretes. Um menino – oito anos, talvez – apareceu portando um facão de açougueiro, de 50cm, quase metade da altura do menino. Outro homem apareceu cumprimentar o jornalista estrangeiro, com um facão do mesmo tamanho.

Não há terceira força. E eles creem no exército. Os soldados atacarão a praça? E que diferença, fará, afinal, que ataquem ou não, para a partida de Mubarak?

[1] Orig. Dad's Army. É título de um seriado da televisão britânica sobre a Guarda Nacional, durante a II Guerra Mundial, levado ao ar com grande sucesso entre 1968 e 1977. A Guarda Nacional foi formada de voluntários incapazes para o serviço militar ativo (mais, em http://en.wikipedia.org/wiki/Dad's_Army).

Original - The Independent

Tradução: Vila Vudu

"Por que e como se limita a propriedade cruzada"

João Brant - para o Observatório do Direito à Comunicação
Na última semana, o jornal O Estado de S.Paulo publicou uma matéria na qual dizia que o governo havia desistido de estabelecer limites à propriedade cruzada. Para quem não sabe, propriedade cruzada é quando o mesmo grupo controla diferentes mídias, como TV, rádios e jornais. Na maior parte das democracias consolidadas, há limites a essa prática por se considerar que ela afeta a diversidade informativa. No Brasil, não existem limites, e justamente por isso esse é um dos temas em pauta no debate sobre uma nova lei para os serviços de comunicação audiovisual.

Aparentemente não foi bem isso que o ministro Paulo Bernardo afirmou, o que significa que o jornal resolveu dizer o não dito por conta própria. Curioso é que o mesmo jornal afirma regularmente ser a favor de medidas anticoncentração da mídia. Seria então um alerta às forças democráticas? Durante o último processo eleitoral, o Estadão declarou em editorial estar “de pleno acordo” com a necessidade de se discutir os limites à propriedade cruzada. E ainda: “não é de hoje que o Estado critica a concentração da propriedade na mídia e as facilidades para que um punhado de grupos econômicos controle, numa mesma praça, emissoras e publicações”.

Em 2003, o jornal fez mais de um editorial criticando a “cartelização da mídia” nos EUA, que iria surgir como resultado de medidas propostas pela FCC (Federal Communications Commission), órgão regulador das comunicações por lá. Aquele processo (e a revisão seguinte, de 2007) resultou num certo afrouxamento das regras norte-americanas, embora as mudanças mais liberalizantes propostas pela FCC tenham sido barradas pelo Poder Judiciário e pelo Congresso – com votos contrários inclusive dos republicanos –, após uma grande mobilização popular. Mas, afinal, por que esses limites são tão importantes a ponto de milhões de pessoas, em um país então governado por George W. Bush, terem se mobilizado para defendê-los?

Por quê

Historicamente, são duas as razões para se limitar a concentração de propriedade nas comunicações. A primeira é econômica, e pode ser entendida como tendo a mesma base das leis antitruste. A concentração em qualquer setor é considerada prejudicial ao consumidor porque gera um controle dos preços e da qualidade da oferta por poucos agentes econômicos, além de desestimular a inovação. Em alguns mercados entendidos como monopólios naturais (como a de transmissão de energia, de água ou telecomunicações), a concentração é tolerada, mas para combater seus efeitos são adotadas diversas medidas que evitam o exercício do 'poder de mercado significativo' que tem aquela empresa.

O segundo motivo tem mais a ver com questões sociais, políticas e culturais. Os meios de comunicação são os principais espaços de circulação de ideias, valores e pontos de vista, e portanto são as principais fontes dos cidadãos no processo diário de troca de informação e cultura. Se este espaço não reflete a diversidade e a pluralidade de determinada sociedade, uma parte das visões ou valores não circula, o que é uma ameaça à democracia. Assim, é preciso garantir pluralidade e diversidade nas comunicações para garantir a efetividade da democracia.

Uma das maneiras mais efetivas de se conseguir pluralidade e diversidade de conteúdos é garantindo que os meios de comunicação estejam em mãos de diferentes grupos, com diferentes interesses, que representem as visões de diferentes segmentos da sociedade. Ainda que a pluralidade na posse dos meios de comunicação não reflita necessariamente a pluralidade do conteúdo veiculado, na maior parte dos exemplos estudados essa correlação é positiva, especialmente no tocante à diversidade de ideias e pontos de vista (no caso da diversidade de tipos de programa, não necessariamente).

Como

Limites à propriedade cruzada tem a ver fundamentalmente com essa segunda justificativa. Países como Estados Unidos, França e Reino Unido adotam esses limites por entenderem que a concentração de vozes afeta suas democracias. É importante notar que nesses países esses limites são antigos, mas têm sido revistos e, via de regra, mantidos – ainda que relaxados, em alguns casos. Mesmo com todos os processos liberalizantes, revisões regulares de seus marcos regulatórios e convergência tecnológica, esses países seguem mantendo enxergando a propriedade cruzada como um problema.

O que aconteceu nas últimas décadas foi uma complexificação dos critérios de análise adotados, incluindo alcance e audiência como critérios definidores. Os Estados Unidos, por exemplo, tinham uma regra clássica de limite à concentração cruzada em âmbito local: nenhuma emissora poderia ser dona de um jornal que circulasse na cidade em que ela atua.

Essa regra foi levemente flexibilizada em 2007, quando se passou a levar em conta o índice de audiência das emissoras e o número de meios de comunicação independentes presentes naquela localidade. Mas essa flexibilização só vale para as vinte maiores áreas de mercado dos EUA (são 210 no total) e só acontece se o canal de TV não está entre os quatro mais vistos e se restam pelo menos oito meios independentes. Dá para ver, portanto, que a flexibilização é a exceção, não a regra.

Na França, há regras para propriedade cruzada em âmbito nacional e em âmbito local. Em cada localidade, nenhuma pessoa pode deter ao mesmo tempo licenças para TV, rádio e jornal de circulação geral distribuídos na área de alcance da TV ou da rádio. No Reino Unido, nenhuma pessoa pode adquirir uma licença do Canal 3 (segundo maior canal de TV, primeiro entre os canais privados) se ela detém um ou mais jornais de circulação nacional que tenham juntos mais que 20% do mercado. Essa regra vale também para o âmbito local. No caso britânico, há outras regras que utilizam um complexo sistema de pontuação para sopesar o impacto de licenças nacionais e locais de TV e rádio e jornais de circulação local e nacional.

Como se vê, nem com as mais agressivas tentativas de liberalização conseguiu-se chegar perto da situação brasileira, que simplesmente não prevê limites à propriedade cruzada. Exemplos como o da Globo no Rio de Janeiro, que controla a principal TV, as principais rádios e o único jornal da cidade voltado ao público formador de opinião (sem contar TV a cabo, distribuidora de filmes etc.) são completamente impensáveis em democracias avançadas. Assim, independentemente da fórmula que irá adotar, se o Brasil quiser aprovar um novo marco regulatório para o setor que seja de fato fortalecedor da diversidade informativa, e portanto de nossa democracia, essa questão não pode estar ausente. A despeito do que digam Estados e Globos.

João Brant, é coordenador do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.

domingo, 30 de janeiro de 2011

O fantasma fardado e outras histórias

 Foto: Miguel Mendez/AFP

A presidenta Dilma Rousseff parte dia 31 para uma visita a Buenos Aires e está previsto seu encontro com as “mães da Plaza de Mayo”, as valentes cidadãs argentinas cujos filhos foram assassinados ou desapareceram durante a ditadura. Hoje elas frequentam a Casa Rosada, recebidas pela presidenta Cristina Kirchner, em um país que puniu os algozes, a começar pelos generais ditadores.
Há quem diga e até escreva que Dilma se expõe ao risco de uma “saia-justa” (não aprecio a enésima frase feita frequentada pelos nossos perdigueiros da informação, mas a leio e reproduzo) ao encontrar as mães da praça. Quem fala, ou escreve, talvez funcione como porta-voz de ambientes fardados. Ocorre, porém, que a reunião foi solicitada pela própria presidenta do Brasil, e ela sabe o que faz.
No discurso de posse, Dilma mostrou-se orgulhosa do seu passado de guerrilheira e homenageou os companheiros mortos na luta. Conta com o aplauso de CartaCapital. Foi o primeiro sinal de um propósito claro do novo governo: aprofundar o debate em torno das gravíssimas ofensas aos Direitos Humanos cometidas ao longo dos nossos anos de chumbo. O encontro de Buenos Aires confirma e sublinha a linha definida pela presidenta, a bem da memória do País.
Cada terra tem suas características, peculiaridades, tradições. O Brasil não é a Argentina. Ambos foram colônias. Nós padecemos, contudo, três séculos de escravidão. A independência não veio com a rebelião contra a metrópole e sim graças aos humores contingentes de um jovem príncipe brigado com a família. A república foi proclamada pelos generais. A resistência e a luta armada na Argentina tiveram uma participação bem maior do que se deu no Brasil, e nem por isso o terror de Estado deixou de ser menos feroz aqui do que no Prata.
Já li mais de uma vez comparações entre o número de mortos e de desaparecidos brasileiros e argentinos, de sorte a justificar que a nossa foi ditabranda. Bastaria um único assassinado. A violência, de todo modo, foi a mesma, sem contar que os nossos torturadores deram aulas aos colegas de todo o Cone Sul, habilitados por sua extraordinária competência. Se a repressão verde-oliva numericamente matou, seviciou e perseguiu menos que a argentina foi porque entendeu poder parar por aí.
Fernando Henrique Cardoso disse na terça-feira 25 ao Estadão ser favorável à abertura dos arquivos da ditadura. Surpresa. Foi ele, antes de deixar a Presidência, quem referendou a proposta do general Alberto Cardoso, que comandava seu gabinete da Segurança Institucional, de manter indevassável a rica documentação por 50 anos. No elegante português que o distingue, FHC agora declara: “Aquilo ocorreu no meu último dia de governo e alguém colocou um papel para eu assinar lá”. Deu para entender que alguém pretendia enganá-lo e que o presidente assinava sem ler. Resta o fato de que, ao chegar ao poder, o príncipe dos sociólogos recomendou: “Esqueçam o que eu disse”. Dilma teve um comportamento de outra dignidade. E não há como duvidar que saberá dar os passos certos na realização da Comissão da Verdade.
Certos significa também cautelosos, sempre que necessário. E sem o receio da “saia-justa”. Adequados a tradições que, infelizmente, ainda nos perseguem. Colonização predatória, escravidão etc. etc. As desgraças do Brasil. E mais, daninha além da conta, o golpe de 64 a provar no País a presença insuportável de um exército de ocupação, pronto a executar os planos dos Estados Unidos com a inestimável colaboração da CIA e a servir às conveniências dos titulares do privilégio e seus aspirantes. Os marchadores com Deus e pela liberdade. Que Deus e que liberdade é simples esclarecer.
O fantasma brasileiro é fardado e não há cidadão graúdo que não o tema, e também muitos miúdos. Todas as desculpas valem, na hora em que se presume seu iminente comparecimento, para, de antemão, cancelar o debate ou descartar as soluções destinadas a provocá-lo. Nada disso é digno de um país em ascensão e de democracia conquistada. Carta-Capital acredita que a presidenta saberá exorcizar o fantasma sem precipitar conflitos. Saias-justas, se quiserem.
Um leitor escreve diretamente para Wálter Fanganiello Maierovitch. Lamenta a posição dele e de CartaCapital a favor da extradição de Cesare Battisti. Com urbanidade, felizmente. Enaltece a figura de Tarso Genro, louva a decisão que precipitou o caso e cita, para demonstrar seu teo-rema, um livro intitulado Terrorismo e Criminalidade Política, em que o falecido Heleno Fragoso, professor universitário e célebre criminalista carioca, se refere às inúmeras leis de exceção promulgadas na Itália durante os anos de chumbo. Nada disso também é digno do Brasil.
Fragoso não é o único entre os professores brasileiros que ignoram a história recente com toda a solenidade condizente com suas becas. A Itália dos anos 70, entregue ao comando da operação ao general Alberto Dalla Chiesa, venceu o terrorismo sem recurso a leis de exceção. Houve sim leis de emergência, que um Fragoso não poderia confundir com aquelas. Na semana passada publicamos uma entrevista do filho de Dalla Chiesa, que fez menção a outras leis aprovadas illo tempore, entre elas a redução a 36 horas da jornada de trabalho por obra da poderosa atuação do Partido Comunista e dos sindicatos, e a descriminalização do aborto, que aqui é quimera.
Nas eleições políticas de 1976, o PDC teve 36% dos votos e o PCI 34%, enquanto os pleitos administrativos davam aos comunistas a maioria das prefeituras. A  Itália dos anos 70, contudo, não era somente de Aldo Moro e Enrico Berlinguer, mas também de primorosa cultura, representada por figuras como Norberto Bobbio, Italo Calvino, Pasolini, Sciascia, Fellini, De Sica, Montale, Visconti e assim por diante. Não bastaria esta página para nomear a todos, e ninguém era de direita. Um importante colaborador de Berlinguer, Giorgio Napolitano, atual presidente da República italiana, enviou uma carta tocante à presidenta Dilma. Ele renova os cumprimentos pela eleição, mas mira no caso Battisti.
“Não são aceitáveis distorções, negações ou leituras românticas de crimes de sangue”, escreve Napolitano. A negativa à extradição, acentua “significa motivo de desilusão e amargura para a Itália”. “Não foi plenamente compreendida – prossegue – a necessidade de justiça experimentada por meu país e pelos familiares das vítimas de brutais e injustificados ataques armados, bem como dos feridos por aqueles ataques, sobrevividos às duras penas.” E ao cabo lembra que o terrorismo foi derrotado “dentro das regras do Estado de Direito”.
O Brasil no caso não deve satisfações ao governo italiano, o atual, aliás, o pior desde o imediato pós- guerra, e sim ao Estado, que o presidente da República representa. Talvez seja igual a pregar no deserto recomendar uma boa pesquisa sobre os anos de chumbo italianos a políticos, magistrados, jornalistas, irados cidadãos atolados em uma patética patriotada, indigna do país que o Brasil merece ser. Isento o trabalho, aconselhamos, da singular influência da hipocrisia francesa.
Falo deste nosso atual país onde ainda se verificam cenas do faroeste. Na sexta-feira 21, o caminhão que carregava para o Rio o reparte de CartaCapital foi assaltado ao longo da Dutra. Os assaltantes não eram ávidos de boa leitura: a carga não tinha para eles a menor serventia, queriam era o próprio caminhão. Renderam e aprisionaram o motorista, ficaram com o veículo, imediatamente remetido para outro canto do País.
A última edição da revista não circulou no Rio. Na noite da mesma sexta tentamos reunir um número suficiente de exemplares para reabastecer as bancas cariocas. Infelizmente não havia sobras, na manhã de sábado todos os repartes tinham sido distribuídos. Pelo gravíssimo percalço pedimos desculpas muito sentidas aos leitores do Rio. Com uma derradeira observação. Ao recordar os assaltos às diligências dos filmes western, murmurei para meus espantados botões: a presença de bandos armados no trajeto da mais importante rodovia do País não é digna do Brasil que queremos. Os botões me acharam comedido.

A cidade que acolhe o FSM


Rita Freire
Dacar começa a compartilhar os primeiros espaços, atividades e expressões da sua cultura com visitantes que chegam para ajudar a construir o FSM.
Fotos: Antonio Pacor

Quem vier ao Fórum Social Mundial, com vontade de compartilhar idéias, experiências e propostas para um outro mundo possível, e tiver acolhida em alguma casa senegalesa, aprenderá também a compartilhar um cebu djen.
Ao meio dia de cada dia, famílias se reúnem em torno desse prato coletivo e popular, que consiste no preparo de um peixe com ervas, em cuja água de cozimento são imersos diferentes legumes, gerando o caldo a ser utilizado para o preparo do arroz. Tudo servido assim, com muitas colheres que avançam sobre os bocados do cebu dijen
Dacar começa a compartilhar as primeiras casas com visitantes que chegam para ajudar a construir o FSM. A casa de Lia, italiana que vive no Senegal a maior parte do ano, ensinando costura e estilismo em uma escola local, é uma delas. Procurada por outro italiano, o videomaker Paco, que facilita coberturas de video do Forum, assegurou estadia para vários colaboradores da comunicação.
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E foi assim que cheguei a Dacar, conhecendo Lia e seus alunos, que pensam em ir ao Fórum em busca de contatos de economia solidária, e com quem conheci Abi, a senegalesa da foto que motivou a reunião de todas essas pessoas em torno do prato mais apreciado do Senegal, preparado por ela para nos dar as boas vindas.
Enquanto almoçamos, são naturais algumas notícias sobre o FSM, como o informe de que Via Campesina trabalhará o tema da violência contra as mulheres no campo, ou a confirmação da Assembleia que debaterá perspectivas da comunicação. Reunirá gente da Africa, América Latina, Europa, e quiça da Asia e Oriente Médio. O programa com todas as atividades será impresso no domingo.
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É o segundo dia que eu e Paco passamos na cidade que acolherá o Fórum e já é possível sentir a ansiedade das pessoas encarregadas de organizar as bases do evento, com aquele sentimento de toda véspera de uma edição mundial, de que "tudo ainda está por fazer".
Nosso olhar esteve especialmente voltado para a comunicação, procurando as conexões potenciais entre as redes que compartilham informação sobre os temas do FSM e o trabalho local de cobertura e propagação do evento. Na Enda, organização de referência do FSM em Dacar, a equipe do escritório do FSM no Brasil já está ha mais dias e trabalha na organização de informações, na distribuição de atividades por eixos do FSM. No Centre Bopp, onde a comunicação se organiza, se formam e desfazem pequenas rodas multilingues de pessoas que chegam para ajudar.
Predominam no espaço os colaboradores locais do FSM e há uma certa ansiedade em relação à infraestrutura. Voluntários falam dos intervalos que algumas áreas da cidade enfrentam sem energia elétrica. Com os preços elevados do petróleo e gás, que estão na base do abastecimento local, o Senegal sofre. O problema afetará o FSM? Pessoas da organização acreditam que não, porque as instalações da universidade dispôem de geradores em caso de emergência.
A banda para internet é outra preocupação, que aliás se repete em todos os eventos centralizados do FSM. Para assegurar um bom fluxo de informações e pacotes audiovisuais do FSM para fora, é preciso garantir um mínimo de conexão e isso deve ser assegurado pela organização local junto à Universidade.
As coisas caminham, sob pressão e urgência, impulsionadas por lutas inadiáveis por outro mundo possível. As conversas sobre credenciamento e programa no Centre Bopp se misturam com outras, sobre gente que se levanta no mundo, e particularmente na Africa, como os jovens da Tunisia, com sua revolução Jasmin, a resistencia sarawi, ou a revolta da Costa do Marfim. Também se fala de uma Diáspora africana que terá no FSM uma oportunidade de voltar para casa. Um dia inteiro do FSM será dedicado à Diápora.
Os jovens de Dakar sentem o peso da responsabilidade e se expressam especialmente pela participação em atividades culturais - grande parte delas terá lugar naquele mesmo Centre Bopp, segundo participantes da Comissão de Cultura.
Neste sábado, haverá um concerto na capital senegalesa. Estarão no palco músicos de várias áreas da cidade para lançar um cd que gravaram em conjunto. A obra foi feita especialmente para acolher o FSM. Mil cópias serão vendidas durante o fórum.