"A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual
os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia
derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo". Entrevista de Tariq
Ali, feita por Christophe Ventura.
“Se os
dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um
levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em
Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
Mémoires des Luttes (MDL - "Memórias das Lutas"): Que se passa actualmente no mundo árabe?
Tariq Ali (TA): Acho que estamos a assistir à segunda
vaga histórica do despertar árabe. A recusa dos povos a beijar, durante
mais tempo, a mão que segura o pau que os puniu durante décadas abriu um
novo capítulo na história da nação árabe. A absurda ideia
neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são
geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado
no fogo. Os que faziam a promoção desta ideia são os que estão mais
descontentes. Penso em Israel e nos seus lóbis na Europa e nos Estados
Unidos – o que eu chamo a Euro-América -, na indústria militar que
vendia tudo o que podia àqueles regimes, mas igualmente nos presionados
dirigentes da Arábia Saudita que se interrogam hoje sobre se a epidemia
democrática vai propagar-se até ao seu reino tirânico.
Até agora, estes últimos deram refúgio a numerosos déspotas, mas,
quando o momento vier, onde vai a família real saudita encontrar
refúgio? Os dirigentes sauditas devem saber que os seus protectores
ocidentais, antigos ou novos, os deitarão fora sem cerimónia como meias
velhas e proclamarão que sempre foram favoráveis à democracia.
Se houvesse comparação a fazer com a história europeia, seria com 1848,
quando os levantamentos revolucionários tomaram forma continental,
poupando apenas a Grã-Bretanha e a Espanha.
Como os Europeus de 1848, os povos árabes lutam contra a dominação
estrangeira: 82% dos egípcios têm uma “imagem negativa dos Estados
Unidos”, recordava recentemente uma sondagem. Não julgaram útil pôr a
questão a respeito dos europeus... Eles lutam contra a violação dos seus
direitos democráticos e contra uma elite cega pela sua própria
ilegitimidade. Eles querem mais justiça económica.
MDL: Quais são as características desta “segunda vaga do despertar árabe”?
TA: A situação é diferente da que conhecemos na
primeira vaga do nacionalismo árabe. Essa foi essencialmente
anti-imperialista e tinha como principal objectivo libertar a região dos
vestígios do império britânico.
As actuais revoluções árabes, desencadeadas pela crise económica,
mobilizaram a vontade, a criatividade e poder de enormes movimentos de
massas. No entanto, nem todos os aspectos da vida humana não foram
postos em questão. Os direitos sociais, políticos e religiosos são alvo
de fortes polémicas na Tunísia, mas não noutros lugares, pelo menos para
já. Até agora, nenhum novo partido se formou, o que leva a pensar que
as futuras batalhas eleitorais oporão o liberalismo e o conservadorismo
árabe, neste último caso sob a forma das Irmandades muçulmanas, versão
local da democracia cristã europeia.
Estes últimos tomarão como modelos os seus correlegionários actualmente
no poder na Turquia e na Indonésia e confortavelmente instalados no
regaço dos Estados Unidos. Os dirigentes da Confraria propõem uma
transição ultra-ordenada se Washington os apoiar, o que poderá
acontecer. A diferença com a Turquia reside no facto que foram
movimentos de massas que derrubaram ou ameaçam os déspotas do mundo
árabe. O futuro poderá ainda reservar-nos surpresas se os regimes de
transição ou de sucessão provocarem decepções na frente social.
MDL: Como vão reagir os Estados Unidos?
TA: A hegemonia dos Estados Unidos na região foi
beliscada, mas não destruída. Ela retornará, mas não da mesma forma. Os
regimes pós-despóticos vão ser mais independentes, mesmo que, no Egipto
ou na Tunísia, o exército esteja sempre presente para garantir que nada
vai longe de mais. O novo grande problema para a Euro-América tem por
nome Bahrein. Se os dirigentes deste pequeno reino – que dependem de um
exército dominado por oficiais e soldados reformados do exército
paquistanês – forem destituídos, então será difícil impedir um
levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita. Pode Washington
dar-se ao luxo de ficar de braços cruzados perante uma tal perspectiva?
Ou vão os Estados Unidos implicar as suas forças armadas na manutenção
no poder dos cleptocratas wahabitas?
MDL: Como analisa a situação na Líbia?
TA: As raízes dos levantamentos na Líbia não são diferentes dos que explicam os acontecimentos na Tunísia ou no Egipto.
Mouamar Kadhafi dirigiu o país com mão de ferro. Se por vezes recorreu a
uma retórica anti-imperialista num passado longínquo, ele colaborou
directamente, nas últimas décadas, com a Euro-América. O ideólogo de
Tony Blair, Anthony Giddens, fez elogios ditirâmbicos ao Guia. O estilo
de vida deste último e as suas políticas excêntricas tornaram-no inapto
para modernizar o seu país. Apesar dos quarenta anos que passou no
poder, os líbios têm um nível de educação muito pior que os tunisinos e o
sistema de saúde do país é muito deficiente.
O balanço de Kadhafi é um Estado de partido único degenerado, as
prisões e a utilização da tortura. E tudo isto para manter a sua família
no poder. A sua decisão de recorrer ao exército e à aviação para
reprimir o seu próprio povo levou à libertação de Benghazi e provocou
uma dissidência na instituição militar. Os soldados que recusaram abrir
fogo sobre o povo foram executados pelos esquadrões da morte do ditador,
como pudemos ver na Al-Jazeera. Fazer querer que este regime é
progressista é uma vergonha. Com um país dilacerado e um exército
dividido, os dias de Kadhafi estão contados.
Entrevista publicada em Mémoires des luttes, traduzida por Carlos Santos para esquerda.net