sexta-feira, 22 de abril de 2011

Quatro notas latinoamericanas


Uma epopéia latino-americana: soldados e patriotas cubanos, sob o comando do então jovem Fidel Castro, derrotaram os invasores em 66 horas. Foto: Reprodução.

1 – Praia Girón: Primeira derrota militar dos EUA na América Latina

Na madrugada de 15/abril/1961, há 50 anos – passados então dois anos e pouco do triunfo da Revolução Cubana -, aviões camuflados como se fossem cubanos bombardearam aeroportos militares da Ilha e, logo em seguida, tropas mercenárias sob orientação do Pentágono e da CIA (serviço de inteligência) desembarcaram na Baía de Cochinos. Seriam “insurgentes cubanos” retomando o domínio de Cuba, conforme informavam entusiasmadas as agências de notícias.
A farsa durou pouco. Em 66 horas, os militares e patriotas cubanos, sob o comando direto do então jovem Fidel Castro, derrotaram os invasores e a grande maioria se rendeu. O combate decisivo deu-se no dia 19 na Praia Girón, foi a primeira derrota militar do império estadunidense na América Latina, uma epopéia latino-americana.
O sonho do governo norte-americano era reconhecer de imediato o “governo provisório” a ser declarado pelos invasores numa “zona libertada” e, com respaldo da então submissa OEA (Organização dos Estados Americanos), prestar ajuda militar aos “rebeldes” cubanos. Eram os tempos do glamoroso John Kennedy alimentando os sonhos de mudança em Cuba, ou seja, a volta do neocolonialismo. Hoje, mais de meio século depois, continuam tentando e sonhando…
(Pena que façanhas como essa não possam chegar ao conhecimento do povo brasileiro de forma mais ampla, devido à censura dos monopólios privados de comunicação).

2 – Senado do Uruguai derruba anistia aos torturadores

Foi um parto traumático. Depois de uma polêmica imensa, o Senado do Uruguai decidiu, no dia 12/abril, pelo apertado escore de 16 a 15, derrubar a chamada Lei de Caducidade, que durante 25 anos garantiu a vigência de anistia aos repressores da ditadura uruguaia (1973-1985), impedindo que fossem a julgamento acusados de crimes de lesa humanidade – sequestros, torturas, desaparições e assassinatos de opositores políticos. A decisão terá que passar ainda na Câmara dos Deputados e ser sancionada pela Presidência.
A Lei de Caducidade estava respaldada por dois referendos populares, isto é, tinha sido confirmada duas vezes pelo eleitorado do país, o que sinaliza o grau de enfrentamento em torno da decisão do Senado. O senador Fernández Huidobro, ex-tupamaro, surpreendeu ao anunciar que votou com a governista Frente Ampla por disciplina partidária, seguindo a posição da maioria, mas renunciaria a seu mandato, lembrando que a maioria do povo uruguaio, nos dois plebiscitos, aprovou a anistia aos repressores.
Chegou-se a prever o veto presidencial, no caso da aprovação na Câmara, mas tal hipótese foi descartada pelo presidente José Mujica, também um ex-guerrilheiro, eleito pela mesma Frente Ampla que patrocinou a derrubada da lei.

3 – Os “10 mandamentos” da segurança argentina
Ilustração Página/12.

O jornal Página/12 (edição de 29/março) criou o que chamou os “10 mandamentos” da segurança do governo da Argentina, com base na orientação da ministra da Segurança, Nilda Garré, no que diz respeito à atuação das forças policiais diante dos chamados “conflitos sociais”, ou seja, greve de trabalhadores, protestos de caráter sindical, ocupação de terras, ocupação de prédios na luta por moradia popular, fechamento de ruas, manifestações populares, etc. Em síntese, diálogo e não repressão policial, dentro da ótica de defesa dos Direitos Humanos, de acordo com a política oficial do governo federal. (No “IX mandamento”, “funcionário político” quer dizer uma pessoa designada pelas autoridades dos órgãos de segurança).
I – Não portarás armas de foto;
II – Não usarás pistolas lança-gases;
III – Só usarás balas de borracha para defesa;
IV – Deverás estar identificado;
V – No utilizarás veículos sem identificação;
VI – Garantirás a livre cobertura jornalística;
VII – Não impedirás a tomada de imagens;
VIII – A intervenção policial será progressiva;
IX – Um funcionário político coordenará as ações;
X – Antes de tudo, dialogarás.

4 – Correa: SIP quer “mentir, caluniar e ficar na impunidade”

Declarações no sábado, dia 16, em seu programa de rádio, do presidente do Equador, Rafael Correa, um dos presidentes da América Latina que vivem sob bombardeio cerrado dos monopólios dos meios privados de comunicação:
“A SIP (Sociedade Interamericana de “Prensa” – Imprensa), apesar de ter nome bonito, não representa nem os jornalistas nem os cidadãos, e sim os donos dos principais jornais da América (…) É o sindicato dos donos de jornais, empresários que produzem em vez de batatas, informação, mas que perseguem uma finalidade, lucro, dinheiro (…) Esses senhores, que são empresários como quaisquer outros, por manejar meios de comunicação, se crêem acima do bem e do mal”. Enfatizou que não cederá ante a lógica do poder dos meios de comunicação, que pretendem colocar-se acima da lei, “mentir, caluniar e ficar na impunidade”. (Com base em matéria do sítio da TV Telesur).

(*) Jadson Oliveira é jornalista baiano e vive viajando pelo Brasil, América Latina e Caribe. Atualmente está em Buenos Aires. Mantém o blog Evidentemente (blogdejadson.blogspot.com).

Caminhos para a descolonização da América Latina


Por Elaine Tavares - jornalista - Revista Pobres & Nojentas

A sétima edição das Jornadas Bolivarianas discutiu este ano um tema árduo e muito pouco palatável: a presença imperialista na cultura latino-americana. A idéia foi dar um panorama de como o império vai consolidando sua forma de ser na capilaridade da vida cotidiana através da escola, dos meios de comunicação, da vestimenta, da comida, da indústria do entretenimento, da moda etc... Como um conta-gotas, misturando-se aos diversos aspectos da vida cultural, grande parte das vezes sem usar a força bruta, o modo de vida do império toma conta das gentes, até parecer ser natural esquecer os mitos locais, os pratos típicos, a maneira de viver, as brincadeiras, e até a língua. A cultura, expressão material da realidade humana, na América Latina, segue cativa do colonialismo e a tarefa de descolonização mostra-se, às vezes, grande demais, para os países que continuam sem uma alternativa política nacional/popular. Nestas Jornadas, discutiu-se a situação dramática da América Central, as tentativas de mudança na América do Sul e a proposta ainda solitária de Cuba, que desde há 50 anos busca a criação de um pensamento próprio, baseado na cultura nacional. O totalmente novo ficou por conta da perspectiva indígena, que desde os anos 90, assoma na América Latina, recuperando elementos chave de sua cultura ancestral.
Poucas pessoas desconhecem a força da cultura estadunidense na vida da América Latina. Desde que proclamaram sua independência da Inglaterra, em 1776, os Estados Unidos da América do Norte decidiram trilhar o caminho da rapina e da dominação. Como foi o primeiro país a realizar o feito de se libertar da colônia em todo o território do “mundo novo”, nada poderia ser mais natural que os demais povos o vissem como um exemplo a ser seguido. Mas, o que veio logo depois já deveria ter servido como um sinal de que as famosas “13 colônias”, agora livres e unificadas, também iriam arvorar-se a disputar o cargo de donas do mundo. A doutrina do “destino manifesto” - que tinha por princípio defender a idéia de que os colonos norte-americanos de origem calvinista teriam sido eleitos por Deus para comandar todos os povos da terra, com a missão civilizatória de ocupar os territórios situados entre os oceanos Atlântico e Pacífico – levou à trágica conquista do Oeste, com a destruição de nações indígenas inteiras. O massacre dos povos locais expandiu o território e aguçou a pretensão de fazer daquele país um império. Naqueles dias, os governantes já faziam uso de armas químicas como bem mostra essa célebre frase do presidente Benjamin Franklin "Se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa". E assim foi.
Poucos anos depois da independência, já no século XIX, outra doutrina expansionista iria ganhar corpo, a doutrina Monroe, que pregava a idéia de a “América para os americanos”. No discurso, os governantes estadunidenses afirmavam a necessidade da independência das terras latino-americanas, mas, na verdade, tudo o que queriam era anexá-las aos seu círculo de poder, já configurado como imperialismo.
Assim, em 1820, quando a América Latina dava consequência ao sonho de libertação, o governo estadunidense invadia o que hoje é o Texas, ocupando também a Califórnia, o Novo México, Nevada, Arizona e Utah. Com esta segunda incursão expansionista (a primeira foi a que anexou os territórios indígenas do centro do país) roubava grande parte das terras mexicanas, conformando pela força das armas e da destruição o seu atual território. Nesse sentido, em 1850 os EUA já eram um império, no modo de operar e na política de disseminação da cultura de dominação.
Terminada a operação de ocupação das terras mexicanas, os dirigentes do país se voltaram para a América Latina recém liberada. As guerras de independência já tinham sido travadas e os estados-nação começavam a formar-se. Era necessário, na visão dos estadunidenses, que alguém ficasse no comando e esse alguém eram eles, coisa já definida por deus no destino manifesto. É a Nicarágua, em 1855, o primeiro país a ser ocupado pelas tropas do já formado império, pelas mãos do mercenário William Walker que desembarca e se faz presidente, distribuindo terras aos fazendeiros do sul dos EUA. Depois, em 1898, é a vez de Cuba, tirada da Espanha e transformada em quintal estadunidense, um protetorado que durou até 1933. No mesmo ano de 98, o Havaí também é ocupado, sendo colônia até hoje.
Quando o século XX nasceu, trouxe com ele a sede de expansão do império estadunidense, que nunca mais parou. Intrigas muito bem urdidas lograram a separação do Panamá da Colômbia e lá ficou o pequeno país, com a riqueza de um canal ligando os dois oceanos, nas mãos do império. Como bem lembrou Rafael Cuevas Molina, da Universidade Central da Costa Rica, presente nas Jornadas Bolivarianas, a América Central passou a ser um espaço estratégico para os Estados Unidos e desde então, nunca mais conseguiu caminhar com as próprias pernas. A cada tentativa de garantir soberania, os países eram invadidos e submetidos aos desejos dos governantes estadunidenses.
Pouco depois da Primeira Guerra Mundial, num mundo devastado pelo conflito, os Estados Unidos iniciaram outra estratégia de dominação na América Latina. A proposta era conquistar corações e mentes pela via da cultura. Enriquecido pela indústria da guerra, os EUA deram linha para a indústria cultural. Inicia-se um período de ouro no cinema, no qual os filmes eram produzidos para propagandear o “modo americano de ser”. O mito do mundo livre, das oportunidades para todos, da democracia, vai se construindo e invadindo a América Latina. O círculo do far west (corrida para o oeste) demoniza os índios, transformando-os em assassinos sanguinários, enquanto os cowboys (vaqueiros) era pintados como heróis. A completa inversão de valores. Em toda América Latina esses produtos culturais se popularizaram e em pouco tempo as crianças sabiam mais de John Wayne do que de seus vizinhos. Estava aberta a veia da dominação “limpa”. Igualmente, os açucarados filmes românticos mostravam o jeito de ser da sociedade estadunidense, gravando nas cabeças latino-americanas o desejo de ser como aqueles heróis que infestavam os cinemas de todos os países. No campo da comunicação de massa, o rádio também reproduzia a propaganda do “mundo livre” e com ela, introduzia nos países as megaempresas que iriam dominar economicamente cada pedaço desse chão. No Brasil, o repórter Esso, noticiário diário, era um fenômeno de audiência. Só o que se noticiava ali, sob a chancela da Esso, era considerado verdade.
E é essa forma de dominação - que ocorre num terreno aparentemente invisível - que as Jornadas Bolivarianas se propuseram discutir. Compreender qual o alcance desta política ainda hoje nos países latino-americanos e encontrar as brechas para sair do atoleiro da dominação cultural.
 
A América Central
 
Na franja de terra que separa as Américas do Sul e do Norte, a vida nunca foi fácil, desde a dominação espanhola. Depois, com a influência estadunidense, as condições de vida das gentes só pioraram. Sem os “patrões” europeus, os países da América Central e do Caribe passaram a ser dominados pelas grandes empresas estadunidenses, principalmente as chamadas bananeiras. No controle da economia, elas ainda tinham pleno domínio da política e elegiam e derrubavam governos ao seu bel prazer. Eram um estado dentro do estado. Assim, as regiões que antes eram espaços das culturas Caribe, Chicha, Maya, Kuna e outras, passam a receber mão de obra escrava vinda da Jamaica, já inoculada com a cultura britânica, a qual tinha absorvido com a colonização. Com o enclave bananeiro, o modo de vida que passou a ser hegemônico foi o estadunidense. “O planejamento urbano, a religião, a cultura, a arquitetura, a língua, tudo estava ligado com a vida nos Estados Unidos”, diz o professor da Universidade Nacional da Costa Rica, Rafael Cuevas Molina.
Segundo ele foi Augusto César Sandino o primeiro a se insurgir contra essa dominação que já extrapolava o campo do território e se espraiava pela via da cultura. Quando no início do século XX os EUA invadem outra vez a Nicarágua para tomar conta do canal e desde ali frear a revolução mexicana, Sandino aparece com seu “pequeno exército louco”, dando vida a um nacionalismo latino-americanista e antiimperialista, capaz de mostrar que seria possível a vida sem as megaempresas e sem o domínio do mal nominado “Tio Sam” (já que irmão de nossa pátria ele não, como dizia Alí Primera). E é essa idéia que vai incendiar as lutas populares nos anos 60 por toda a América Central com o surgimento dos movimentos armados de libertação nacional.
O resultado de décadas de lutas insurgentes, praticamente todas derrotadas, é o que se vê na realidade atual. A constituição de um Estado terrorista, que torna naturalizada a cultura da violência e da discriminação. Os anos 80, que marcaram o derrocamento das propostas revolucionárias, ainda trouxeram consigo as reformas neoliberais, esgarçando um pouco mais o frágil tecido social. O resultado disso é uma identidade cultural esfacelada, o que torna ainda mais fácil a dominação. E, se a bananeiras já não tem mais poder na América Central, o espaço foi tomado pelas empresas maquiladoras, que seguem trabalhando no mesmo velho ritmo: trabalho precário, produção de coisas que as gentes jamais usarão e esgotamento total das pessoas. O que sobra é a violência, a pobreza, o crime organizado e as gangues juvenis. Sem horizontes de futuro, os jovens ou se matam ou migram. E, de um jeito ou de outro vão se transformando em uma cópia mal feita dos jovens empobrecidos do centro do poder. “Na América Central, hoje, os ricos sonham com Nova Iorque, os de classe média sonham com Miami e os pobres com o que vêem na TV. Isso é uma mostra segura de que há um mal estar cultural. Todos, de alguma forma, imitam a vida dos EUA”.
 
A comunicação é a via de transmissão do imperialismo
 
Se nos anos 30 os EUA iniciaram sua corrida às mentes do povo latino-americano pode-se dizer que isso segue sendo feito num ritmo frenético. Usando a velha tática da repetição, a indústria cultural estadunidense continua hegemônica em praticamente todos os países. O cinema exporta o modo estadunidense de ser, os programas de televisão, as séries, os desenhos animados, as teorias culturais, os movimentos artísticos, a estética, a filosofia. Tudo é colonizado. E, os meios de comunicação bombardeiam o cérebro das pessoas diuturnamente. Romper essa dominação colonial requer mudanças drásticas na vida dos países, ensina o jornalista uriguaio/venezuelano Aram Aharonian, um dos formuladores da proposta da Telesur – um canal de televisão latino-americano.
Para Aram é impossível mudar qualquer coisa nos países que vivem dominados culturalmente, se não houver primeiro uma mudança radical de paradigma. “Há mais de 40 anos que não temos uma teoria nova na comunicação. Tudo copiamos dos gringos”. Essa formulação teórica tem de ser própria, fruto da realidade local. Já basta de pensar com a cabeça mergulhada num mundo que não é nosso.
Mas, fazer isso tampouco é fácil, uma vez que o império, ao ser confrontado com novas teorias e paradigmas usa de todas as armas para absorver o impacto, usando-as para contra-atacar. “Nós pudemos ver isso quando na Telesur colocamos nossos apresentadores de maneira bem informal, como são os latino-americanos. Não passaram dois meses e lá estava a CNN em espanhol copiando nossa forma de fazer, e usando isso contra nós”. Assim, nossa tarefa parece ser cada dia mais desafiadora.
Aharonian adverte que se no mundo da arte, da cultura e da comunicação estamos cada dia mais enfeitiçados pelo sistema hegemônico, a única saída parece ser liberar os 1.400 cm cúbicos de cérebro que cada um tem. É a capacidade de pensar com a própria cabeça que definirá o futuro. Aram mostrou que mesmo a comunicação dita alternativa, que fez sucesso em determinado momento, acabou se domesticando. “As rádios comunitárias se profissionalizaram e não são mais o espaço popular, os sindicatos se conformem em ter apenas um boletim, a palavra está sequestrada pelas empresas. Estamos cegos de nós mesmos. Não sabemos quem somos e não cremos em nós mesmos. É isso que precisa mudar”.
Uma comunicação libertadora precisa ter o compromisso de manejar ela mesma a agenda informativa. Os espaços alternativos não podem ser marginais, precisam almejar ao universal. O grande desafio é deixar de copiar conteúdos e formas. Criar o próprio estilo e a partir daí criar redes de comunicação que possam chegar ao maior número de pessoas. “Nós vivemos a síndrome da praça sitiada. Ocorre que ela não está mais sitiada, nós podemos romper o sítio. Mas, para isso, temos de criar nosso próprio paradigma. Já basta de choramingar e de gritar palavras de ordem. Vamos produzir conteúdo de qualidade e formar redes. Assim, superaremos a dominação cultural”.
No campo do cinema a ordem parece ser a mesma. Sérgio Santeiro, cineasta brasileiro que bebe na proposta estética e filosófica de Glauber Rocha - como se pode ver no seu deslumbrante curta metragem “Paixão” (http://youtu.be/AS3Oep2cCsw ) - desafia a se constituir uma estética própria, fora dos padrões “roliudianos”, que dêem conta da realidade latino-americana e que provoquem o desconforto gerador da mudança. Glauber, de alguma forma, conseguiu isso no seu tempo, mas a nova geração precisa encontrar outro caminho, original. Outra estética para vencer a lógica da violência e do medo imposta pela arte cinematográfica estadunidense. Igualmente a proposta do pensamento crítico e próprio, na senda do ensinamento de Simón Rodriguez, que pregava como um louco a máxima: “Basta de imitar. Há que criar”.
 
A proposta cubana
 
Faz mais de 50 anos que a pequena ilha caribenha, Cuba, busca um caminho original. Até o triunfo da revolução, a mídia, comandada pelos EUA, confundia o mundo e os cubanos sobre o que passava no país. Na ilha se podia viver em inglês, como lembrou o vice-ministro da Cultura, Fernando Rojas. Depois não. A revolução, pela proposta de liberdade que carregava, foi definindo uma identidade que até então só aparecia nos escritos de José Martí. Hoje, depois de acertos e erros, a cultura cubana segue rechaçando o neocolonialismo que se expressa na invasão do ar via televisão desde Miami, mas busca estabelecer uma relação dialógica com a cultura dos EUA. “Nós acreditamos que é preciso conhecer muito bem essa cultura para podermos conformar um anti-imperialismo. Mas, a proposta é enfrentar a colonização cultural com o melhor do pensamento socialista, fazendo assomar a rumba, o guagancon e o balé nacional de Cuba”.
Segundo Fernando, a ilha de Cuba já superou os tempos em que se buscava importar a experiência socialista do leste. Atualmente, incorporados os elementos da afro descendência, dos indígenas, dos descendentes dos colonizadores, as forças políticas do campo e a cultura popular urbana, tem-se a cultura cubana, tomada por uma liderança coletiva anticolonialista e anti-imperialista. “Em Cuba há uma questão que nos parece vital. Todas as pessoas têm acesso à cultura. Nós não dizemos: crê. Dizemos: lê. E, com isso, os cubanos recebem gratuitamente o melhor da cultura, inclusive a dos EUA. Fundamos escolas de arte em todo o país, na montanha e na capital. E esse acaba sendo nosso desafio. Afinal, temos de pensar em como sustentar isso economicamente”.
Em Cuba as políticas culturais significam esforços estatais e públicos. Vem daí a Casa das Américas, a escola de Cinema e outras milhares de instituições de cultura de base. “Como tudo isso custa, agora andamos pensando em cobrar do público para ver um teatro, por exemplo. Mas é coisa simbólica, nada comparada ao mundo capitalista no qual é praticamente impossível aos trabalhadores freqüentarem o teatro”.
A polêmica em Cuba agora passa pela discussão do direito de autor. Segundo Fernando, existem manifestações da cultura popular que precisam de proteção e que não podem ser apropriadas por este ou aquele. São construções coletivas. “Mas esse ainda é um debate ainda inicial”. Para o vice-ministro, a originalidade cubana está no fato de o governo ter uma política cultural que possibilita a liberdade criativa e a garantia do acesso ilimitado à cultura. É uma aposta na qualidade da vida das pessoas, pois, com isso, elas se tornam pessoas melhores. Ele ressaltou que Cuba vive sob bloqueio econômico, mas não cultural. Todo o lixo produzido no império chega às casas cubanas e, por isso, esse campo de batalha é tão importante. Vencer aí é fazer meio caminho no rumo da sustentação da nova sociedade.
 
O paradigma andino
 
Se a questão do enfrentamento do império passa pelo desafio de sermos originais, o mundo indígena tem muito a contribuir para esse debate. Foi o que mostrou a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui na sua exposição. Segundo ela os índios há muito que deixaram de ser estudo de caso e sua cosmovisão assoma como uma proposta de vida absolutamente diferente da que foi pregada pelo mundo ocidental, europeu. Muito antes da invasão já havia muitas culturas aqui nestas terras, com histórias milenares, que, mesmo sob a dominação, mantiveram-se vivas e hoje saem da obscuridade, oferecendo novas formas de viver no mundo. Sua originalidade consiste justamente na diferença radical. Enquanto a filosofia ocidental busca o uno, o mundo andino, por exemplo, trabalha com a idéia do terceiro incluído: ou seja, os contrários podem sim conviver e se encontrar.
Silvia defende a idéia de que a cultura é um sistema de significados que não tem como passar pelo mercado. É o imaginário, o desejo das comunidades, mas ao mesmo tempo é o que se torna real pela força da arte humana. Segundo ela, na Bolívia, a esquerda não tem falado em imperialismo ao discutir as mazelas do tempo presente. “Falam em pós-colonialismo, mais encobrindo do que revelando o que está por trás de tudo isso”. Ela conta que os povos indígenas da Bolívia sabem muito bem que a identidade naquele país é uma questão política de primeira grandeza. E tanto que conforme são os dirigentes mudam as cifras sobre a porcentagem de indígenas no país. Já houve momentos em que a porcentagem foi de 19%, pulando no ano seguinte para 68%. O trágico é que o racismo contra o índio é algo internalizado também na esquerda, até porque suas fileiras são formadas por gente que tem o pensamento colonizado também.
Nos Andes, as comunidades vivem sob outro paradigma, fora da dualidade maniqueísta ocidental. “Para nós é fundamental o conflito das dualidades, porque isso é a energia que nos move”. Entre os indígenas das comunidades andinas a cultura é parte da forma de organizar a vida. Nos tempos mais remotos, mesmo as obras públicas sempre eram precedidas de grandes festas, de encontros com dança, música, imagens e gestos, tudo recheado do simbólico e do sagrado. Mesmo a religião é múltipla, com deuses de muitas faces, que são anjos e demônios ao mesmo tempo, porque é esse conflito que move a vida. Coisas bastante difíceis de serem assimiladas pelos cérebros formatados na mentalidade ocidental. Palavras desconcertantes para os 1.400 cm cúbicos de racionalidade instrumental. “Para nós o futuro é algo que está atrás, porque não sabemos dele, o passado é algo que está à frente, pois dele temos conhecimento. E o presente é o que de fato importa”. Para Silvia a tarefa de descolonização dos estados na América Latina é árdua e difícil, mas esta é uma batalha que precisa ser travada. Derrubar o colonialismo, o racismo, o preconceito. No território que serpenteia junto à cordilheira dos Andes, as comunidades estão descobrindo suas potencialidades, estão recuperando suas formas de organizar a vida. “É bobagem pensar que não podemos ser modernos. Podemos sim. Comunitários e modernos. Temos nossos paradigmas e nossa cultura. Mas, o fato é que nós vimos o mundo ao contrário. Nossa lógica é “al revés”. Isso precisa ser entendido e respeitado”.
 
Desafios do presente
 
A experiência indígena pode parecer desconcertante num primeiro momento, já que coloca o mundo de pernas para o ar. Mas a idéia de convivência dos contrários parece ser a única possível num mundo onde as diferenças se afirmam cada vez mais. Transitar neste território conflituoso e desde aí criar o novo é também desafiador. A nova sociedade sonhada pela racionalidade marxista precisa levar em conta esse paradigma indígena, precisa incorporar as demandas destas comunidades que assomam cada dia com mais força. Desconhecer esse mundo é apostar no fracasso. Assim já foi com Simón Bolívar, quando subestimou a força dos lañeros venezuelanos e foi derrotado por eles. Só depois de voltar do Haiti, com os ensinamentos dos revolucionários negros sobre a necessidade de incorporar a cultura local é que Bolívar logrou a confiança dos indígenas e, com eles, abriu caminhos para a libertação. Foi assim com Artigas, na Banda Oriental, que, conhecendo e respeitando a cosmovisão Charrua, trouxe os indígenas para fazer real o sonho da liberdade. Tanto Bolívar quanto Artigas respeitaram de verdade a forma de viver dos indígenas, não fizeram mero uso instrumental, como se vê por aí. Esse pode ser o segredo.
Em toda a América Latina vive e pulsa uma Abya Yala, um espaço de propostas que exigem mudanças radicais na forma de raciocinar sobre a realidade. Outra episteme, outra forma de conhecer. Não necessariamente precisa-se aceitar toda a cosmovisão que vem destes povos milenares aqui nestas terras, mas fundamentalmente há que se incorporar essas formas de ver a realidade. Os indígenas querem estar no mundo, fazer parte da planetização da vida boa e bonita. Mas eles precisam ser compreendidos na sua cultura. Assim, no conflito destes contrários, mundo indígena X mundo colonizado, talvez se possa chegar ao novo tão esperado. Uma América Latina descolonizada, livre do imperialismo, aberta para o presente.

Hermeto Paschoal


HERMETO PASCHOAL – A MUSICA LIVRE DE HERMETO PASCHOAL – 1973Biografia:

Extraido do sitio Virtual Musical Box
 
Nascido em Olho d´Água e criado em Lagoa da Canoa, na época município de Arapiraca, estado de Alagoas, em 22 de junho de 1936, Hermeto Pascoal é filho de Vergelina Eulália de Oliveira (dona Divina) e Pascoal José da Costa (seu Pascoal). Foi no seu alistamento militar que colocaram o pré nome de seu pai como seu sobrenome.
Os sons da natureza o fascinaram desde pequeno. A partir de um cano de mamona de "gerimum" (abóbora), fazia um pífano e ficava tocando para os passarinhos. Ao ir para a lagoa, passava horas tocando com a água. O que sobrava de material do seu avô ferreiro, ele pendurava num varal e ficava tirando sons. Até o 8 baixos de seu pai, de sete para oito anos, ele resolveu experimentar e não parou mais. Dessa forma, passou a tocar com seu irmão mais velho José Neto, em forrós e festas de casamento, revezando-se com ele no 8 baixos e no pandeiro.
Mudou-se para Recife em 1950, e foi para a Rádio Tamandaré. De lá, logo foi convidado, com a ajuda do Sivuca (sanfoneiro já de sucesso), para integrar a Rádio Jornal do Commercio, onde José Neto já estava. Formaram o trio "O Mundo Pegando Fogo" que pegou fogo mesmo já na primeira vez em que tocaram, pois, segundo Hermeto, ele e seu irmão estavam apenas começando a tocar sanfona, ou seja, eles só tocavam mesmo 8 baixos até então.
Porém, por não querer tocar pandeiro e sim sanfona, foi mandado para a Rádio Difusora de Caruaru, como refugo, pelo diretor da Rádio Jornal do Commercio, o qual disse-lhe que "não dava para música". Ficou nessa rádio em torno de três anos. Quando Sivuca passou por lá, fez muitos elogios sobre o Hermeto ao diretor dessa rádio, o Luis Torres, e Hermeto, por conta disso, logo voltou para a Rádio Jornal do Commercio, em Pernambuco, ganhando o que havia pedido, a convite da mesma pessoa que o tinha mandado embora. Ali, em 1954, casou-se com Ilza da Silva, com quem viveu 46 anos e teve seis filhos: Jorge, Fabio, Flávia, Fátima, Fabiula e Flávio. Foi nessa época também que descobriu o piano, a partir de um convite do guitarrista Heraldo do Monte, para tocar na Boate Delfim Verde. Dali, foi para João Pessoa, PB, onde ficou quase um ano tocando na Orquestra Tabajara, do maestro Gomes.
Em 1958, mudou-se para o Rio para tocar sanfona no Regional de Pernambuco do Pandeiro (na Rádio Mauá) e, em seguida, piano no conjunto e na boate do violinista Fafá Lemos e, em seguida, no conjunto do Maestro Copinha (flautista e saxofonista), no Hotel Excelsior.
Atraído pelo mercado de trabalho, transferiu-se para São Paulo em 1961, tocando em diversas casas noturnas. Depois de um tempo, formou, juntamente com Papudinho no trompete, Edilson na bateria e Azeitona no baixo, o grupo SOM QUATRO. Foi aí que começou a tocar flauta. Com esse grupo gravou um lp. Em seguida, integrou o SAMBRASA TRIO, com Cleiber no baixo e Airto Moreira na bateria. No disco do Sambrasa Trio, Hermeto já registrou sua música "Coalhada".



Com o florescimento dos programas musicais de TV, criaram o QUARTETO NOVO, em 1966, sendo Hermeto no piano e flauta, Heraldo do Monte na viola e guitarra, Théo de Barros no baixo e violão e Airto Moreira na bateria e percussão. O grupo inovou com sua sonoridade refinada e riqueza harmônica, participando dos melhores festivais de música e programas da TV Record, representando o melhor da nossa música. Nessa época, venceram um dos festivais com "Ponteio", de Edu Lobo. Além disso, Hermeto ganhou várias vezes como arranjador. No ano seguinte gravou o LP QUARTETO NOVO, pela Odeon, onde registrou suas composições O OVO e CANTO GERAL.
Em 1969, a convite de Flora Purim e Airto Moreira, viajou para os EUA e gravou com eles 2 LPs, atuando como compositor, arranjador e instrumentista. Nessa época, conheceu Miles Davis e gravou com ele duas músicas suas: "Nem Um Talvez" e "Igrejinha". De volta ao Brasil, gravou o lp "A MÚSICA LIVRE DE HERMETO PASCOAL", com seu primeiro grupo, em 1973.
Em 1976, retornou aos EUA, gravou o "SLAVES MASS" e realizou mais alguns trabalhos com Airto e Flora.
Com o nome já reconhecido pelo talento, pela qualidade e por sua criatividade, tornou-se a atração de diversos eventos importantes, como o I Festival Internacional de Jazz, em 1978, em São Paulo. No ano seguinte, participou do Festival de Montreux, na Suíça, quando é editado o álbum duplo HERMETO PASCOAL AO VIVO, e seguiu para Tóquio, onde participou do LIVE UNDER THE SKY. Lançou o CÉREBRO MAGNÉTICO em 1980 e multiplica suas apresentações pela Europa.

HERMETO PASCHOAL – LIVE MONTREAUX JAZZ FESTIVAL – 1979

Em 1982, lançou, pela gravadora Som da Gente, o lp HERMETO PASCOAL& GRUPO. Em 1984, pelo mesmo selo, gravou o LAGOA DA CANOA, MUNICÍPIO ARAPIRACA, onde registrou pela primeira vez o SOM DA AURA com os locutores esportivos Osmar Santos (Tiruliru) e José Carlos Araújo (Parou, parou, parou). Esse disco também foi em homenagem à sua cidade, que se elevou, então, à categoria de município e conferiu-lhe o título de Cidadão Honorário. Em 1986, o BRASIL UNIVERSO, também com seu grupo.
Compôs ainda a SINFONIA EM QUADRINHOS, apresentando-se com a Orquestra Jovem de São Paulo. Em seguida, foi para Kopenhagen, onde lançou a SUITE PIXITOTINHA, que foi executada pela Orquestra Sinfônica local, em concerto transmitido, via rádio, para toda a Europa.
Em 1987, lançou mais um LP: o SÓ NÃO TOCA QUEM NÃO QUER, através do qual o músico homenageia jornalistas e radialistas, como reconhecimento pelo seu apoio ao longo da carreira. Em 1989, fez seu primeiro disco de piano solo, o lp duplo POR DIFERENTES CAMINHOS.
Em 1992, já pela Philips, gravou com seu grupo o FESTA DOS DEUSES. Depois do lançamento, viajou à Europa para uma série de concertos na Alemanha, Suíça. Dinamarca, Inglaterra e Portugal.
Em março de 1995, apresentou uma Sinfonia no Parque lúdico do Sesc Itaquera, em SP, utilizando os gigantescos instrumentos musicais do parque. No mesmo ano foi a convite da Unicef para Rosário, Argentina, onde apresentou-se para 2.000 crianças, sendo que seu grupo entrou para tocar dentro da piscina montada no palco a pedido dele.
De 23 de junho de 1996 a 22 de junho de 1997, registrou uma composição por dia, onde quer que estivesse. Essas composições fazem parte do CALENDÁRIO DO SOM, lançado em 1999 pela editora Senac/ SP.
Em 1999 lançou o CD EU E ELES, primeiro disco do selo Mec, no Rio de Janeiro.
Nesse CD produzido por seu filho Fábio Pascoal, Hermeto toca todos os instrumentos.
Em 2003, lançou, com seu grupo, o cd MUNDO VERDE ESPERANÇA, também produzido por Fábio.

Em outubro de 2002, quando foi dar um workshop em Londrina, PR, conheceu a cantora Aline Morena e convidou-a para dar uma canja no dia seguinte com o seu grupo em Maringá, PR. Em seguida ela foi para o Rio com ele e, no final de 2003, Hermeto passou a residir em Curitiba, PR, com ela. Assim, passou a dar-lhe noções de viola caipira, piano e percussão e, em março de 2004 estreou no Sesc Vila Mariana a sua mais nova formação: o duo "CHIMARRÃO COM RAPADURA" (gaúcha com Alagoano), com Aline Morena.
Em abril de 2004, embarcou para Londres para o terceiro concerto com a Big Band local, sendo que o primeiro já havia sido considerado o SHOW DA DÉCADA. Em seguida realizou mais alguns shows solo em Tóquio e Kyoto.
Em 2005 gravou o CD e o DVD "CHIMARRÃO COM RAPADURA", com Aline Morena, além de realizar duas grandes turnês com seu grupo por toda a Europa. O cd e o dvd de Hermeto Pascoal e Aline Morena foram lançados de maneira totalmente independente em 2006.
Atualmente, Hermeto Pascoal apresenta-se com cinco formações: Hermeto Pascoal e Grupo, Hermeto Pascoal e Aline Morena, Hermeto Pascoal Solo, Hermeto Pascoal e Big Band e Hermeto Pascoal e Orquestra Sinfônica. Diz ele que, por enquanto, é só!! Esse é o nosso "CAMPEÃO"!!!
Obs. Público, shows e discos têm todos a mesma importância para o Hermeto. Não há melhor público, nem melhor show, nem melhor disco. São todos filhos muito amados por ele. Portanto, o que foi mencionado nessa biografia refere-se apenas a um resumo dos fatos que foram lembrados.



Fonte Biográfica(meus agradecimentos): 
http://www.hermetopascoal.com.br/

Para ver a discografia completa desse músico incrível clique AQUI


Músicas para download Hermeto Paschoal,clique AQUI

Terra à vista! – ou parcelada em 511 vezes sem juros

Leonardo Sakamoto em seu blog

Minha singela homenagem à lembrança do 22 de abril de 1500. Lembrando que nada disso é novidade, mas como cismam em comemorar a data…
Nas últimas linhas da carta que relata o início da invasão portuguesa (“descobrimento”? Há! Sei…) de Pindorama a dom Manuel, rei de Portugal, Pero Vaz de Caminha se aproveita do cargo e da oportunidade para pedir um favorziho. Se a graça foi ou não concedida, não faço idéia e nem quero saber. Afinal, Inês é morta, ou melhor, Pero Vaz. Porém, a utilização do público para atender a interesses privados perdurou durante toda a nossa história – situação que permeia das grandes somas das grandes obras ao cafezinho trocado pela multa na beira da estrada. Culpa do escrivão, porque “aqui se plantando tudo dá”? Nem. Culpa nossa.

“E pois que, senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida. A ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz”

Se a história pode ser escrita com segundas intenções, é reescrita para atender necessidades das mais diversas. Por exemplo, o surgimento de estudos mequetrefes que ignoram séculos de presença de comunidades tradicionais, provando com documentos honestos do 2º Cartório de Registro de Imóveis Faz-Me Rir que um pedaço de chão pertence, desde as capitanias hereditárias, à família que precisa continuar vendendo matéria-prima para uma determinada indústria importante. No ritmo em que vão as coisas, se for deixar a elaboração dos livros didáticos na mão desse povo, não me surpreenderia que fossem feitas algumas atualizações.

“Em 22 de abril de 1500, o empresário português Pedro Álvares Cabral, quando chegou em missão ao Sul da Bahia, estabeleceu comércio com os empreendedores do setor madeireiro, e sua pujante economia, trocando miçangas por toras de eucalipto – o que foi altamente lucrativo para os locais. A primeira missa foi celebrada com a presença de dezenas de operários – entre os turnos da tarde e da noite – de forma a não prejudicar a produção. O bispo, que rapidamente se tornou amigo dos maiores proprietário de terra locais, abençoou aquela união e benzeu o local onde seria erguido o porto para escoamento de mercadorias…”

PS: Sensacional o 22 de abril cair logo em uma Sexta-Feira Santa, não? Se nosso Estado não fosse laico, na teoria e na prática, acharia que isso seria uma fina ironia dos deuses…

1833 - França inicia reforma da educação pública

Do blog Opera  Mundi

 Em 28 de julho de 1833, o ministro da Educação da França, François Guizot, faz votar uma lei que iria transformar o ensino primário no país e no mundo. Ela obrigava as comunas com mais de 500 habitantes a ter pelo menos uma escola primária de meninos e a manter pelo menos um professor primário. Além disso, cada departamento francês deveria ter uma escola de formação de professores do ensino básico. Os estabelecimentos privados foram legalizados e a instrução religiosa, mantida. A instrução pública na França seria modificada mais tarde pelas leis Falloux e Ferry.

Promulgada por iniciativa de Alfred de Falloux, então ministro da Educação (Instrução Pública), uma nova lei, sancionada em 15 de março de 1850, instaurou a liberdade do ensino secundário. Fez a distinção entre educação pública (a cargo de uma comuna, de um departamento ou do Estado) e o ensino privado, ao qual foi conferida ampla liberdade. De outra parte, favoreceu o ensino católico nos estabelecimentos primários e obrigou as comunas de mais de 800 habitantes a abrir uma escola para as meninas. Contrária ao princípio da laicidade no ensino, esta lei acabou revogada. Em 1881 e 1882, as leis Ferry seriam promulgadas.


Em 28 de abril de 1848 surgiu a escola maternal. O termo “maternal” foi empregado pela primeira vez em substituição àquilo que então se chamavam “casas de asilo” ou simplesmente “asilo”. Desde 1830, os asilos tinham por função acolher as crianças que ficavam brincando e perambulando pelas ruas enquanto seus pais trabalhavam. Além do ensino, também era oferecida assistência às crianças, cuja idade variava de 2 a 6 anos. A pedagoga Marie Pape-Carpentier desempenhou um papel importante na modificação do funcionamento desses estabelecimentos, especialmente quanto aos métodos empregados, relativamente duros. Foi necessário, porém, esperar pelas leis de Jules Ferry, em 1881, para que as escolas maternais fossem efetivamente instituídas.
 
Em 15 de novembro de 1866, nasceu a Liga Francesa de Ensino, graças à vontade e empenho de Jean Macé, que tinha lançado um apelo para reunir o máximo de voluntários para melhorar a educação na França. Muitos se entusiasmaram pelo projeto e dele fizeram parte. Com um número de adesões sempre crescente em todo o país, a Liga passou a lutar por uma educação popular, pública. Lançou uma petição pela educação obrigatória, gratuita e laica. Quando as leis Ferry foram aprovadas, a Liga adotou um estatuto jurídico, se organizou em federações e nunca parou de lutar contra as desigualdades e em favor do desenvolvimento cultural.

Finalmente, em 16 de junho de 1881, o novo ministro da Educação, Jules Ferry, aprovou uma lei que estabelecia a gratuidade da escola. A partir de 1879, ordenou a publicação de uma série de textos a fim de promover a escola pública e reduzir o peso da Igreja na educação das crianças e jovens franceses. Nesse contexto, uma nova lei seria sancionada em 28 de março de 1882, tornando obrigatória a educação para as crianças de 3 a 6 anos e definitivamente laica. A educação civil substituiria a religiosa e até os professores deveriam ser laicizados no seio de escolas especializadas. Essa foi a estrutura que serviu de base para o ensino público da França daquela época em diante.

'Trem-bala não é o projeto mais conveniente à retomada de autêntica política ferroviária'

  Gabriel Brito, da Redação do CORREIO DA CIDADANIA   
 
No último dia 14, o Senado brasileiro aprovou a Medida Provisória 511/10, que autoriza o empréstimo de 20 bilhões de reais ao consórcio vencedor da licitação pelo Trem de Alta Velocidade (TAV), o trem-bala, que fará a ligação Rio-São Paulo. Para debater mais um mega-projeto dos governos petistas, o Correio da Cidadania conversou com o deputado federal do PSOL-RJ Chico Alencar.
 
De acordo com ele, o governo se equivoca em lançar mão de um projeto que antes de tudo não tem teto orçamentário, uma vez que há quase um consenso de que a previsão de custo de R$ 30 bilhões é de baixa confiabilidade. Além disso, o deputado lembra que "com os recursos destinados ao trem-bala (públicos, do BNDES) poderiam ser construídos 10 quilômetros de metrô ou VLT em cada uma das nas 9 regiões metropolitanas do Brasil, onde vivem 65% da população".
 
Dessa forma, considera que o projeto do Trem de Alta Velocidade ocupa lugar remoto na tabela de prioridades nacionais, e vem em momento muito inconveniente, logo após o governo anunciar o corte de 50 bilhões de reais do Orçamento Público. O deputado não menospreza a necessidade de se retomar uma política ferroviária, mas sublinha que isso deveria começar pela ampliação da malha urbana, saturada e insuficiente.
 
Correio da Cidadania: Como você recebeu a Medida Provisória 511/10, que autoriza a União a oferecer garantia para financiamento de até R$ 20 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao consórcio que construirá o Trem de Alta Velocidade (TAV), conhecido como trem-bala, que ligará São Paulo ao Rio de Janeiro?
 
Chico Alencar: Mais uma reversão total daquilo que o PT sempre pregou. A recuperação do transporte sobre trilhos no Brasil, que começou a se deteriorar nos anos 50 com a ênfase dada à indústria automobilística é importantíssima, é verdade.
 
Porém, o trem-bala surge sem que a gravíssima crise que afeta a população mais pobre no transporte urbano sobre trilhos seja resolvida – metrô, trens, VLT... Nada disso está sendo implementado. Com os recursos destinados ao trem-bala, públicos, do BNDES, poderia se construir 10 quilômetros de metrô ou VLT nas 9 regiões metropolitanas do Brasil, onde vivem 65% da população.
 
Governar é escolher prioridades a partir das necessidades mais sentidas de nossa gente.
 
Não vou nem falar de educação, vamos ficar na parte do transporte sobre trilhos mesmo: dá pra dizer tranquilamente que o trem-bala não é prioridade. Poderia se fazer algumas adaptações e melhorar a ligação ferroviária Rio-SP, mas o trem-bala vai exigir vultosos investimentos, com recursos do BNDES. Além disso, não admite passagens difíceis, vai exigir muitos túneis, pode dividir cidades ao meio, terá impactos ambientais violentíssimos... E ainda dizem que a passagem vai custar 300 reais...
 
Correio da Cidadania: Pela projeção divulgada pelo governo, os custos da passagem ficarão entre 150 e 200 reais, por uma viagem de uma hora e meia. Ou seja, mesmo que sejam custos um pouco menores do que os mencionados por você, ainda seria mais caro e demorado que a viagem de avião. Como você enxerga esse aspecto?
 
Chico Alencar: Pois é, e já começaram as reivindicações de várias cidades. Querem que pare em Volta Redonda, tem que parar em Resende, em São José dos Campos, em Jundiaí... Todo mundo quer uma parada em sua cidade. Quanto à duração da viagem, seria de cerca de duas horas e meia.
 
Mas os detalhes técnicos são menos importantes do que outro fator, aquele que elenca prioridades. Não que eu seja contra o trem-bala por princípio. Todo transporte de massa é bem vindo, toda tecnologia que comprima tempo e espaço com segurança é ótima, mas no Brasil temos etapas e ferrovias, outros trilhos, urbanos e suburbanos, a serem implementados antes. Os metrôs do Brasil são de dimensões muito pequenas. O Rio, por exemplo, tem o metrô mais caro do Brasil e a menor extensão; o de Brasília é ridículo... Existem outras prioridades.
 
Correio da Cidadania: Isso no momento em que o governo Dilma corta 50 bilhões do orçamento, atingindo, como manda a tradição, os serviços essenciais dirigidos à maioria da população que carece, e padece, deles?
 
Chico Alencar: Pois é! É completamente contraditório a essa política de arrocho e contenção de gastos que a Dilma promove em seu governo. A gente se choca com isso. É uma iniciativa de ‘alta velocidade’ contra a política de contenção.
 
Correio da Cidadania: Aliás, essa previsão orçamentária encontra base na realidade ou ainda nem se calcularam precisamente os custos totais do projeto? Em outras palavras, você enxerga tendência de inchaço dos valores, tal como visto em diversas obras de infra-estrutura nos últimos anos?
 
Chico Alencar: Não, não tem a menor base real. É só pra tentar edulcorar um pouco o projeto e atrair a iniciativa privada. É claro que podemos temer por inchaço de custos. Nesse país a diferença entre orçamento inicial e custo final vai a uma diferença que pode chegar a 10 vezes.
 
É algo fora de lugar fazer esse trem-bala. Apesar das deficiências, ir de São Paulo ou Campinas para o Rio, ou o contrário, ainda é fácil. Tem o transporte aéreo e ferroviário, e não há um estrangulamento dessa rota, a Dutra não está estrangulada.
 
Inclusive, tivemos a experiência de revitalizar o trem de prata Rio-SP e não foi bem sucedida, por causa do custo. Não foi nem pela demora, já que se podia dormir bem nele. Mas só durou uns dois anos depois de reativado até voltar a cair em desuso.
 
Correio da Cidadania: Dessa forma, nem do ponto de vista de uma malha integrada do transporte nacional a obra adquire viés positivo?
 
Chico Alencar: Acho que não, pois deveríamos começar pelas redes metropolitanas.
 
Correio da Cidadania: E o que pensa da criação da Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade (Etav), estatal que seria dedicada exclusivamente ao gerenciamento do projeto?
 
Chico Alencar: Aí é uma conseqüência. Quando se aprova financiamento para construção do trem-bala, que pelo menos haja uma estatal enxuta que possa controlar o processo e evitar abusos que são praticados ao bel prazer da livre iniciativa.
 
Correio da Cidadania: Não se podia deixá-lo a cargo da Valec, a atual empresa gerenciadora da malha ferroviária?
 
Chico Alencar: Poderia também, mas alegam que a Valec tem outras preocupações etc. Na verdade, a criação de nova estatal serve pra ressaltar a prioridade que se pretende dar ao trem-bala.
 
Correio da Cidadania: Ainda que sejam questionáveis os custos do projeto em meio às necessidades nacionais, o Brasil não precisa retomar políticas estratégicas no setor ferroviário, hoje em dia praticamente reduzido às rotas de transporte dos minérios e outros itens da cadeia produtiva da Vale?
 
Chico Alencar: Precisa, claro, quanto a isso não há duvida. O Brasil precisa de uma rede ferroviária, e tem condições disso, o que é muito importante. O transporte ferroviário é de massa, não apenas coletivo, é a rede do futuro, inclusive.
 
E essa política que era forte nos anos 30, 40, começou a minguar nos anos 50 e nunca mais voltou. Precisamos retomar, mas fazê-lo com o trem-bala é retomar com bases equivocadas, embora já esteja aprovado na Câmara e no Senado.
 
Correio da Cidadania: E qual seria a estratégia ferroviária mais adequada ao país?
 
Chico Alencar: Fazer as ligações ferroviárias nas grandes cidades e suas regiões metropolitanas, melhorar a qualidade dos trens urbanos, reativar ligações inter-estaduais, mesmo que sem o trem de alta velocidade, que é caríssimo e exige condições especiais, e a partir disso acumular condições para transportes mais complexos como o trem-bala.
 
Gabriel Brito é jornalista.

O contra-ataque da direita frente à maior tributação dos ricos nos EUA

Por Sam Pizzigati no Portal Grabois
 
O debate fiscal no Congresso dos EUA segue girando quase exclusivamente em torno da questão dos cortes no orçamento, sem que se dê atenção às enormes fortunas dos super ricos que seguem com uma baixa tributação. Mas então, por que os porta-vozes das grandes fortunas dos EUA começaram a suar? Porque se deram conta do novo clamor – por parte dos sindicatos e da sociedade civil em todo o país –pedindo maiores impostos para os “multimilionários”. E porque deram também uma olhada nas pesquisas: quase 80% dos estadunidenses querem que o imposto de nossos ricos aumente.
O crescente clamor público para que se aumente os impostos para os ricos nos Estados Unidos tem deixado os conservadores cada vez mais preocupados. E com razão. Os dados não estão do seu lado...e tampouco a História.

Ao longo de todo o país, começa-se a ouvir uma consigna simples, mas poderosa contra os cortes selvagens do gasto público. “Como acabar com o déficit? – proclamam os manifestantes. “Aumentar, aumentar, aumentar os impostos dos ricos!”.

Essa ideia, infelizmente, ainda não se materializou nas propostas dos legisladores. Uma exceção: na semana passada, em Washington, o republicano Jan Schakowsky, de Illinois, lançou uma proposta para aumentar os impostos das rendas superiores a 1 milhão de dólares, passando dos atuais 35% para um leque que variaria entre 45 e 49%.

Mas o debate fiscal no Congresso segue girando quase exclusivamente em torno da questão dos cortes, sem que se dê atenção algumas às enormes fortunas dos super ricos que seguem com uma baixa tributação. E nos parlamentos estaduais é quase sempre a mesma história.

Mas então, por que os porta-vozes das grandes fortunas dos EUA começaram a suar? Porque se deram conta do novo clamor – por parte dos sindicatos e da sociedade civil em todo o país – pedindo maiores impostos para os “multimilionários”. E porque deram também uma olhada nas pesquisas: quase 80% dos estadunidenses, assinalam os últimos levantamentos, querem que o imposto de nossos ricos aumente.

Os apologistas da classe ultra acomodada, diante do avanço desta onda que grota “mais impostos para os ricos”, começaram a organizar seu contra-ataque preventivo. Subir os impostos dos ricos, reza seu novo argumento, dificilmente servirá para enxugar o déficit porque, como sustenta o editor da National Review, Kevin Williamson, “não há o número suficiente de ricos” para isso.

A National Review, publicação mais reverenciada da direita, lançou duas bombas de profundidade na semana passada que iam nesta linha. Williamson, editor adjunto da revista, terminou seu artigo voltando de novo aos velhos mitos e tópicos fiscais da direita. Os ricos, diz, ou bem vão se livrar do aumento de impostos mediante artifícios legais ou vão marchar a jurisdições com menor pressão fiscal.

Seu colega na National Review, Robert VerBruggen, tratou de abordar a questão em números a partir das declarações de imposto de renda de 2008, para sustentar sua afirmação de que “se não pudermos subir também os impostos para todas as pessoas que não são ricas, o imposto sobre a renda não será de muita ajuda para aumentar a arrecadação”. Mas os dados, se analisados no detalhe, não apoiam essa conclusão.

Em 2008, o ano mais recente com registros completos do IRS (a agência tributária dos EUA), os contribuintes que ganhavam mais de 200 mil dólares anuais pagaram ao governo federal, depois de explorar todos os vazios legais que puderam encontrar, somente 21,8% do total de suas receitas. Isso é consideravelmente menos do que pagavam os mais opulentos dos EUA – também depois de buscar toda evasão possível – há 50 anos. Em 1961, os contribuintes que ganhavam mais de 27 mil dólares – o equivalente a uns 200 mil dólares atuais – pagavam em média impostos de 31,3% sobre seus rendimentos totais.

Mas mesmo os contribuintes que ganhavam ainda mais há 50 anos pagavam também mais do que agora ao Tio Sam. Em 1961, as rendas anuais acima de 400 mil dólares – cerca de 3 milhões de dólares hoje – enfrentavam uma carga tributária de 91%. Hoje, em troca, as rendas superiores a 3 milhões de dólares pagam cerca de 35% de impostos.

Esse índice de 91%, cabe lembrar, só era aplicado em 1961 às rendas que superassem os 400 mil dólares. As rendas abaixo desse limite pagavam taxas mais baixas. E mesmo alguns tipos de receitas acima dos 400 mil dólares, as taxas de capital, por exemplo, também enfrentavam tributações menores. Assim, sobre que parte de sua renda total pagavam impostos de verdade os autênticos ricos de 1961? Os contribuintes com uma renda acima dos 135 mil dólares anuais – o equivalente a 1 milhão de dólares hoje – acabavam pagando uma média de 43,1% de sua renda em impostos federais.

Em 2008, aqueles que ganharam mais de 1 milhão de dólares deram ao Tio Sam somente 23,1% de sua renda. Em outras palavras, os autênticos ricos pagavam há 50 anos quase o dobro de impostos ao governo federal do que pagam os ricos de agora.

Quanto o governo poderia arrecadar a mais se nossos ricos contemporâneos pagassem como impostos a mesma proporção de sua renda que pagavam os ricos de 1961?

O Comitê Conjunto sobre Impostos, do Congresso, fez uma previsão no ano passado estimando que os contribuintes que ganham mais de 1 milhão de dólares declarariam à Receita um total de mais de 1,1 bilhões de dólares. E as declarações daqueles que ganham entre 200 mil e 1 milhão de dólares somariam outros 1,9 bilhões.

Toda esta gente poderia pagar uns alucinantes 382 bilhões a mais de dólares em impostos se tivessem que tributar segundo as taxas efetivas de 1961 que, de fato, afrontavam os ricos de 50 anos atrás depois de aproveitarem toda brecha legal possível.

Isso é quase quatro vezes mais que os 100 bilhões que os conservadores no Congresso tratam de cortar do orçamento deste ano, afetando um amplo conjunto de políticas, como o programa Head Start (para atender a saúde e a educação infantil de crianças de famílias de baixa renda), os auxílios para estudantes universitários e a própria televisão pública.

Os defensores dos cortes no orçamento vão também atrás do IRS. Querem eliminar outros 285 milhões de dólares dos fundos de que a Agência dispõe para controles fiscais, no momento em que, após os obscuros anos de Bush, o IRS finalmente começou a ser algo mais sério nas auditorias das declarações de impostos das classes abastadas dos EUA. No ano passado, as auditorias de declarações acima dos 10 milhões de dólares quase duplicaram, registrando um aumento de 18,4%.

Por que precisamos de mais controles na parte superior da distribuição de renda? O último informe do IRS sobre a evasão fiscal (IRS Oversight Board report) estima que perdemos algo da ordem de 290 bilhões de dólares ao ano em impostos não pagos. Segundo um estudo de 2008, os contribuintes de maiores rendimentos escondem três vezes mais renda do que um cidadão médio.
Assim, a conclusão é a seguinte: taxar os ricos com os índices que existiam há meio século – esforçando-se mais para garantir que paguem o que devem pagar – faria com que este ano se arrecadasse em nível federal aproximadamente meio trilhão de dólares a mais.

Aumentar, aumentar, aumentar os impostos dos ricos, portanto!


Sam Pizzigati é editor de Too Much, um semanário eletrônico sobre abusos e desigualdades, publicado pelo Instituto de Estudos Políticos, sediado em Washington.

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Too Much, na Carta Maior

Crime (financeiro) contra a humanidade

Por José Saramago* no Portal Grabois
 
A história é conhecida e – nos antigos tempos de uma escola que a si mesma se proclamava como perfeita educadora – era ensinada aos meninos como exemplo da modéstia e da discrição que sempre deverão acompanhar-nos quando nos sintamos tentados pelo demônio a ter opinião sobre aquilo que não conhecemos, ou conhecemos pouco e mal.
Apeles podia consentir que o sapateiro lhe apontasse um erro no calçado da figura que havia pintado, porquanto os sapatos eram o ofício dele, mas nunca que se atrevesse a dar parecer sobre, por exemplo, a anatomia do joelho. Em suma, um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. À primeira vista, Apeles tinha razão, o mestre era ele, o pintor era ele, a autoridade era ele; quanto ao sapateiro, seria chamado na altura própria, quando se tratasse de deitar meias-solas num par de botas. Realmente, aonde iríamos nós parar se qualquer pessoa, até mesmo a mais ignorante de tudo, se permitisse opinar sobre aquilo que não sabe? Se não fez os estudos necessários, é preferível que se cale e deixe aos sabedores a responsabilidade de tomar as decisões mais convenientes (para quem?).

Sim, à primeira vista, Apeles tinha razão, mas só à primeira vista. O pintor de Filipe e de Alexandre da Macedônia, considerado um gênio na sua época, esqueceu-se de um aspecto importante da questão: o sapateiro tem joelhos, portanto, por definição, é competente nestas articulações, ainda que seja unicamente para se queixar – sendo esse o caso – das dores que nelas sente.

A estas alturas, o leitor atento já terá percebido que não é propriamente de Apeles nem de sapateiro de que se trata nestas linhas. Trata-se, isso sim, da gravíssima crise econômica e financeira que está a convulsionar o mundo, a ponto de não escaparmos à angustiosa sensação de que chegamos ao fim de uma época sem que se consiga vislumbrar qual e como seja o que virá a seguir, após um tempo intermédio, impossível de prever, para levantar as ruínas e abrir novos caminhos. Como assim? Uma lenda antiga para explicar os desastres de hoje? Por que não? O sapateiro somos nós, nós todos que assistimos, impotentes, ao avanço esmagador dos grandes potentados econômicos e financeiros, loucos por conquistar mais e mais dinheiro, mais e mais poder, por todos os meios legais ou ilegais ao seu alcance, limpos ou sujos, correntes ou criminosos. E Apeles? Apeles são esses precisamente: os banqueiros, os políticos, os seguradores, os grandes especuladores que, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, responderam nos últimos trinta anos a nossos tímidos protestos com a soberba de quem se considerava detentor da última sabedoria, isto é: ainda que o joelho nos doesse não nos seria permitido falar dele, denunciá-lo, apontá-lo à condenação pública. Foi o tempo do império absoluto do Mercado, essa entidade presuntivamente auto-reformável e autocorretora encarregada pelo imutável destino de preparar e defender para todo o sempre a nossa felicidade pessoal e coletiva, ainda que a realidade se encarregasse de o desmentir a cada hora.

E agora? Irão finalmente acabar os paraísos fiscais e as contas numeradas? Irá ser implacavelmente investigada a origem de gigantescos depósitos bancários, de engenharias financeiras claramente delituosas, de investimentos opacos que, em muitíssimos casos, não são mais que maciças lavagens de dinheiro negro, de dinheiro do narcotráfico? E já que falamos de delitos… Terão os cidadãos comuns a satisfação de ver julgar e condenar os responsáveis diretos do terremoto que está sacudindo as nossas casas, a vida das nossas famílias, o nosso trabalho? Quem resolve o problema dos desempregados (não os contei, mas não duvido de que já sejam milhões), vítimas do crash e que desempregados irão continuar a ser durante meses ou anos, malvivendo de míseros subsídios do Estado, enquanto os grandes executivos e administradores de empresas, deliberadamente levadas à falência, gozam de milhões e milhões de dólares a coberto de contratos blindados que as autoridades fiscais, pagas com o dinheiro dos contribuintes, fingiram ignorar? E a cumplicidade ativa dos governos, quem a apura? Bush, esse produto maligno da natureza numa das suas piores horas, dirá que o seu plano salvou (salvará?) a economia norte-americana, mas as perguntas a que terá de responder são estas: Não sabia o que se passava nas luxuosas salas de reunião em que até o cinema já nos fez entrar, e não só entrar, como assistir à tomada de decisões criminosas sancionadas por todos os códigos penais do mundo? Para que lhe serviram a CIA e o FBI, mais as dezenas de outros organismos de segurança nacional que proliferam na mal chamada democracia norte-americana, onde um viajante, à entrada do país, terá de entregar ao policial de turno o seu computador para que faça copiar o respectivo disco rígido? Não percebeu o senhor Bush que tinha o inimigo em casa, ou, pelo contrário, sabia e não o importou?

O que está a passar-se é, em todos os aspectos, um crime contra a humanidade. E é desta perspectiva que deveria ser objeto de análise em todos os foros públicos e em todas as consciências. Não estou a exagerar. Crimes contra a humanidade não são somente os genocídios, os etnocídios, os campos de morte, as torturas, os assassínios seletivos, as fomes deliberadamente provocadas, as poluições maciças, as humilhações como método repressivo da identidade das vítimas. Crime contra a humanidade é o que os poderes financeiros e econômicos dos Estados Unidos, com a cumplicidade efetiva ou tácita do seu governo, friamente perpetraram contra milhões de pessoas em todo o mundo, ameaçadas de perder o dinheiro que ainda lhes resta e depois de, em muitíssimos casos (não duvido de que eles sejam milhões), haverem perdido a sua única – e quantas vezes escassa – fonte de rendimento, o trabalho.

Os criminosos são conhecidos, têm nomes e sobrenomes, deslocam-se em limusines quando vão jogar golfe, e tão seguros de si mesmos que nem sequer pensaram em esconder-se. São fáceis de apanhar. Quem se atreve a levar esta gangue aos tribunais? Ainda que não o consiga, todos lhe ficaremos agradecidos. Será sinal de que nem tudo está perdido para as pessoas honestas.

*José Saramango é escritor, roteirista, jornalista e poeta português, vencedor do Nobel de literatura em 1998.

Referência
Texto publicado no blog http://caderno.josesaramago.org em 19 de outubro de 2008 e adaptado para o português do Brasil para esta edição de Princípios.

Aumento de juros ou taxa Tobin?


O neoliberalismo promoveu um processo global de desregulação da economia. Debilitou as formas de regulação estatal, da proteção aos mercados internos à garantia dos direitos sociais, da afirmação dos patrimônios públicos à garantia do acesso gratuito aos bens fundamentais. Seu diagnóstico era que o excesso de regulação inibia a livre circulação do capital. Destravado, o capital voltaria a promover investimentos produtivos, fazendo com que a economia voltasse a crescer.


Por Emir Sader no PORTAL VERMELHO

Não foi o que aconteceu. Livre de travas, o capital se transferiu maciçamente para o setor financeiro, passando a auferir enormes ganhos na especulação. Porque o capital não é feito para produzir, mas para acumular. Se pode dispor de taxas de juros altas, de baixa ou nenhuma taxação e de liquidez absoluta, ele se dirigirá para esse setor. Foi o que aconteceu com a desregulamentação.

Estados endividados, competindo para ver quem atrai a maior quantidade de capitais financeiros, com economias que passaram a depender cada vez mais desses capitais, não somente promoveram o enriquecimento brutal do setor financeiro, como deixaram os Estados vulneráveis à volatilidade de ataques especulativos. As crises econômicas do período neoliberal são basicamente produzidas por saídas bruscas e maciças de capitais especulativos.

Esses capitais, os de pior qualidade, porque não produzem bens, nem empregos, são assim produtores de crises. Alavancados pelos empréstimos do FMI a países em crise, ocuparam lugares estratégicos nas economias nacionais e no plano internacional e passaram a ser o setor hegemônico a nível nacional e internacional.

A luta contra o neoliberalismo e suas consequências negativas passou a ter na retomada da tese da Taxa Tobin – formulada por um economista - de taxação dos movimentos do capital financeiro a proposta central dos movimentos que posteriormente se agruparam no Forum Social Mundial. Essa taxação se faria para a criação de um fundo para promover os direitos de cidadania, atacados duramente pelos governos neoliberais. A proposta obteve grande difusão, mas não chegou a ser colocada em pratica, salvo alguns casos isolados.

A crise econômica atual não poupou sequer os EUA, surgindo do setor financeiro e estendendo-se ao resto da economia global. As reações das potencias centrais do capitalismo foram as tradicionais, salvando os bancos, na expectativa de que estes salvassem a economia. Os bancos se salvaram e deixaram as economias à deriva.

Países do Sul do mundo, que privilegiamos o intercambio Sul-Sul, os processos de integração regional e a expansão do mercado interno de consumo popular, pudemos superar rapidamente a crise, enquanto os países do Norte, sofrendo o seu próprio veneno, ainda tropeçam na crise, como os dramáticos casos da Irlanda, da Grécia, de Portugal e da Espana demonstram.

Mas a abertura das economias de praticamente todos os países, promovida pelo neoliberalismo, não nos faz imunes aos efeitos da crise. Sofremos da competitividade cambial de economias fortes como a dos EUA e da China, que ganham mercados com moedas nacionais artificialmente desvalorizadas, assim como drenam para países como o Brasil capitais atraídos pela taxa de juros real mais alta do mundo.

Uma margem restrita de manobra se apresenta, entre os riscos inflacionários e a desindustrialização que o real supervalorizado produz. As taxas de juros têm sido elevadas na contramão do objetivo de chegar ao final do governo atual para algo em torno de 2%, como media internacional de juros. Essas elevações e outras medidas complementares têm sido insuficientes e o dólar baixou não apenas de 1,65 – piso que o governo tinha estabelecido – como a para a casa dos 1,5.

Sair desse circulo vicioso supõe romper com os dilemas aparentemente insuperáveis que a situação nos apresenta. A Taxa Tobin, como forma de taxação de toda movimentação financeira, ao mesmo tempo que inibiria esses movimentos especulativos, geraria recursos para fortalecer e estender mais as politicas sociais. (As politicas de saúde, por exemplo, necessitadas urgentemente de recursos.)

É a hora de discutir seriamente entre instancias do governo, parlamento, partidos e movimentos do campo popular, esse tipo de medida, que contribuiria para superar a hegemonia persistente do capital financeiro sob sua forma especulativa e fortalecer o maior objetivo do país hoje – terminar com a extrema pobreza e desenvolver ainda mais a prioridade das políticas sociais.

Fonte: Carta Maior

Mais uma elevação dos juros!



A continuidade da política de elevação da taxa de juros é um tiro no pé. Ela não resolve adequadamente a questão que se propõe solucionar (queda da demanda) e provoca dois efeitos perversos adicionais: eleva os gastos públicos com pagamento de juros e serviços da dívida, e perpetua o fluxo internacional de capital especulativo em busca de rentabilidade fácil.


Infelizmente parece que a coisa está virando rotina. Apesar de todas as expectativas a respeito de uma mudança de rota a ser promovida pela Presidenta Dilma na condução da política econômica, as decisões tomadas até agora só fizeram reforçar o conteúdo da ortodoxia e do monetarismo.

Desde a posse da nova ocupante do Palácio do Planalto, houve 3 reuniões do Comitê de Política Monetária (COPOM). Trata-se de um encontro dos próprios membros da diretoria do Banco Central (CBC), que ocorre com a periodicidade de cada 45 dias e dura 2 dias, em geral uma terça-feira e uma quarta-feira. Deixando-se de lado todo o jogo de cena e a pompa envolvendo o evento, o mais importante refere-se ao resultado da reunião: todos querem saber o que foi decidido a respeito da taxa oficial de juros do governo, a SELIC. Manter, reduzir ou elevar. Dias depois vem a público a ata da reunião, com toda a parafernália de interpretações a respeito das entrelinhas, das omissões, dos gerúndios, dos adjetivos e dos não ditos. Inicia-se a fase de apostas para a tendência possível para a próxima reunião.

Pois então, o fato é que em todas as oportunidades de 2011, a decisão dos membros do comitê foi de elevar a SELIC. Em meados de janeiro, no início de março e agora em 20 de maio a taxa de juros foi elevada em 0,5% e dessa vez “apenas” 0,25%. No total, um acumulado de 1,25% na taxa anual de juros que serve como base para a formação de todas as demais taxas no mercado financeiro.

Com isso, o BC está orientando as instituições que oferecem crédito e empréstimo a também elevarem as suas taxas para os indivíduos e as empresas que procurem os recursos em seus balcões. Com o agravante, porém, de que não há nenhuma iniciativa do governo em controlar ou reduzir os elevadíssimos “spreads” cobrados pelos bancos em tais operações. Nesse quesito, somos também campeões mundiais. Ou seja, além do Brasil oferecer a maior taxa de juros oficial do planeta, em nenhum outro lugar os bancos são autorizados pelo órgão responsável pelo controle e fiscalização a cobrar um diferencial tão elevado sobre os empréstimos, como ocorre em nosso País. Com essa liberdade, tais instituições se permitem optar por onde pretendem exercer sua altíssima lucratividade. Seja aplicando sem risco algum em títulos da dívida pública, com retorno recorde. Seja emprestando a quem quiser precisar recursos, com ganhos de mais de 40% nas operações. Seja administrando o dia-a-dia dos clientes cobrando tarifas igualmente escandalosas pelos serviços prestados.

Os argumentos de natureza macroeconômica para justificar as decisões de elevar a taxe de juros são - para dizer o mínimo - polêmicos. A maior parte dos planos de ajuste econômico das últimas décadas, a exemplo do Plano Real de 1994, incorporou a idéia de controle da inflação a partir do chamado regime de metas de inflação. Com isso, a autoridade econômica estabelecia uma meta de crescimento geral de preços no país para um período futuro (em geral, um ano). E ao longo desse espaço de tempo, acontecem reuniões de um órgão para avaliar o conjunto dos fatores e a conjuntura econômica mais geral, com o objetivo de balizar a ferramenta considerada eficaz para evitar que a inflação verificada na prática “escape” da meta previamente fixada. E esse instrumento é a taxa oficial de juros, a nossa SELIC.

Ao elevar a taxa de juros, a intenção é que ocorra uma redução no nível do chamado “consumo agregado”. Isso porque a maior rentabilidade dos instrumentos de poupança atrairia os recursos para esse fim, reduzindo a pressão da demanda agregada. Obviamente, tudo isso partindo do pressuposto de que a elevação dos preços estaria associada exclusivamente a um problema de excesso de demanda face à escassez de oferta. Assim, em tese, ao elevar a taxa de juros o governo estaria controlando a inflação.

Porém, o fenômeno econômico é bem mais complexo do que pretendem nos fazer crer esses modelos simplificadores e o buraco, na verdade, está muito mais embaixo. Existem vários trabalhos de economistas e pesquisadores que utilizam os mesmos dados sobre inflação e taxa de juros para chegar a conclusões opostas às dos modelos que embasam as decisões do “establishment”. Há um conjunto de fatores, que apenas listo abaixo, sem perder espaço com argumentação. Percebe-se uma diferença enorme entre a eficácia da política monetária, de acordo com os países considerados e a institucionalidade econômica. Por exemplo, uma coisa é o FED norte-americano elevar a sua taxa oficial de juros de 0,25% para 0,50% ao ano. Trata-se de um aumento de 100%, a taxa dobrou. Outra bem diferente, é o COPOM aumentar a SELIC de 11,75% para 12%. As conseqüências sobre a demanda agregada são bem menores. Uma coisa é tentar controlar a inflação quando a pressão dos preços se dá em setores em que há concorrência e outra bem distinta é atuar em situações em que os preços crescem por condições chamadas “exógenas”, pois tem origem fora do País e não conseguimos interferir diretamente nelas.

No caso atual, é importante separar o joio do trigo. Os grandes órgãos de comunicação prepararam a terra durante vários dias que antecederam a reunião do COPOM, criando o falso clima catastrofista – como costumam fazer sempre, aliás. As manchetes dos jornais e de seus cadernos de economia giravam em torno de variações no mesmo tema: “inflação está fora de controle”, “mercado espera que COPOM eleve a taxa de juros”, “analistas econômicos reafirmam necessidade de elevação da SELIC”, “governo não tem outra opção para evitar volta da inflação”, “previsão de inflação supera a meta oficial”, e por aí vai. Uma verdadeira faca no pescoço nos responsáveis pela área econômica e no COPOM para que eleve a taxa SELIC.

Ocorre que não cabe à Presidenta Dilma ficar refém de um reduzido grupo, que defende exclusivamente seus próprios interesses e não se preocupa com as necessidades do conjunto do País e da maioria de sua população. Face a tais pressões oportunistas, caberia ao governo responder com os argumentos e fatos da realidade e não se deixar levar pelo clima irresponsável dessas propostas, com receio de não enfrentar as “forças de mercado”. Afinal, quem é mesmo essa tão temida entidade - o “mercado” - que tudo pode, que tem tantos desejos assim e a quem não se pode contrariar? Por que não ouvir também a opinião de economistas ligados ao movimento sindical (além do patronal), a opinião dos pesquisadores das universidades que têm avaliação diferente dos interesses do sistema financeiro? Afinal, até mesmo Delfim Netto vem declarando ultimamente que a economia não é uma ciência exata e sim uma ciência social! Ou seja, a constatação de que há mais de uma avaliação a respeito de uma conjuntura e também mais de uma solução para um mesmo problema.

Antes de mais nada, é importante reafirmar que não é líquido e certo que a inflação esteja fora de controle. O modelo adotado pelo BC contém um chamado “centro” da meta e um intervalo de dois pontos percentuais para cima ou para baixo como margem de erro. Ou seja, com o centro definido em 4,5%, uma inflação de até 6,5% para os próximos 12 meses está dentro do aceitável. E as previsões ainda não chegaram a tanto. Os fatos demonstram que boa parte das pressões para a alta de preços estão localizadas nos preços das chamadas “commodities”, bens comercializáveis internacionalmente e sobre os quais o Brasil tem pouca capacidade de interferência, como petróleo, minério de ferro, soja, trigo, milho, arroz, etc. Tanto é assim, que boa parte dos países desenvolvidos estão sofrendo os efeitos também dessa alta de preços em seus próprios mercados. Além disso, há sinais que apontam para uma desaceleração da atividade econômica em cursos, em, função das 2 elevações que o COPOM já promoveu na SELIC no início do ano.

De outro lado, vale a pena reforçar o argumento de que a elevação da taxa SELIC tem efeito muito reduzido sobre a demanda interna, ao contrário do que pretende o atual modelo usado pelo BC. As camadas de renda mais elevada são as que mais se beneficiam da alta dos juros, pois conseguem aumentar seus rendimentos nas instituições financeiras. Com a alta dos juros e a disponibilidade de aplicações de curtíssimo prazo, elas ficam inclusive com maiores recursos disponíveis para... consumir! Ou seja, ocorre um resultado oposto ao esperado no modelo. A demanda desses setores pode até aumentar. Já as camadas de renda mais baixa apresentam comportamento oposto. As famílias dessas faixas de rendimento são caracterizadas pelo que o “economês” classifica como “baixa ou nula propensão a poupar”. Como têm renda reduzida e muita deficiência no atendimento das necessidades básicas de uma vida digna e cidadã, acabam gastando tudo o que ganham no consumo de bens e serviços básicos. Assim, esse tipo de demanda não é praticamente afetada pela elevação da SELIC. Os juros sobem, mas nem por isso as pessoas vão deixam de comprar. Esse comportamento ainda é reforçado por uma particularidade cultural de nosso povo, onde domina a lógica da “prestação que cabe no orçamento” ao invés da lógica racional de adiar o consumo para um momento de juros mais baixos.

Por tudo isso é que a continuidade da política de elevação da taxa de juros oficial é um verdadeiro tiro no pé. Não apenas por que ela deixa de resolver adequadamente a questão que se propõe solucionar (queda da demanda). O pior é que ela provoca dois efeitos perversos que fragilizam ainda mais o quadro da macroeconomia. De um lado, eleva os gastos públicos de forma extraordinária através aumento das despesas com uma atividade absolutamente improdutiva: pagamento de juros e serviços da dívida pública. Há projeções que falam de um total de 230 bilhões para esse item orçamentário até o final do ano. De outro lado, essa política perpetua o fluxo internacional do capital especulativo em busca da rentabilidade fácil e elevada. Com isso, mantém-se a armadilha do real valorizado em sua taxa de câmbio com as demais moedas do mundo. Nossas exportações perdem competitividade lá fora e nosso País fica exposto à competição injusta face aos produtos industrializados estrangeiros que para cá se dirigem.

A busca de soluções alternativas exige a coragem política de enfrentar os agentes do mercado financeiro. A elevação da taxa de juros pode ser substituída por outras medidas, a exemplo da elevação dos depósitos compulsórios dos bancos. A medida tem o mesmo efeito sobre a demanda e não eleva as despesas orçamentárias com juros. Já a questão da valorização cambial deve ser enfrentada de maneira urgente, para evitar os riscos do processo de desindustrialização já em marcha. Para tanto, o governo deve elevar de forma efetiva a taxação do capital especulativo do exterior e definir uma quarentena mínima de permanência após o ingresso no País.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.