Por coincidência, acabo de ler o que seria o diário de Maurício Garbois, no exato momento em que a revista CartaCapital chega às bancas com este tema como matéria de capa. O texto, intitulado "Devaneio na selva" e assinado por Lucas Figueiredo, comenta “O diário do Araguaia”, tema anunciado como “exclusivo”. O assunto, no entanto, não é novo. Quando escrevi a biografia de Maurício Grabois, publicada em 2004 pela editora Anita Garibaldi, deparei com informações que davam conta desse diário.
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A capa da revista CartaCapital desta semana traz a reportagem de Lucas Figueiredo sobre o diário de Maurício Grabois no Araguaia
Por Osvaldo Bertolino*no Portal Vermelho
Recebi, anonimamente, trechos do que seriam as anotações do comandante militar da Guerrilha do Araguaia, mas, impossibilitado de verificar a veracidade do documento, não usei as informações.
Segundo o jornalista Hugo Studart, que escreveu o livro A Lei da Selva, trata-se uma cópia preservada por um militar. Em artigo publicado pela revista Brasil História,
edição de março de 2007, ele diz que o destino e principalmente o teor
do diário ficaram ocultos por três décadas. “O diário foi encontrado
pelas tropas que mataram Grabois, dentro de suas roupas, já estufado
pela umidade. O documento chegou a Marabá no final da tarde de 25 de
dezembro de 1973, para ser encaminhado na primeira hora do dia seguinte
ao Centro de Informações do Exército (CIE), em Brasília”, diz ele.
Segundo Studart, um capitão da área de informações pediu o material
emprestado aos colegas para examiná-lo e, sem consultar os superiores,
convocou cinco soldados para que atravessassem a madrugada copiando o
conteúdo à mão. Pela manhã devolveu o documento. O diário original
desapareceu dos arquivos do CIE, provavelmente destruído no crematório
ocorrido em fins de 1974, por ordem do presidente Ernesto Geisel, para
ocultar os combates no Araguaia. Restou a cópia (mais tarde
datilografada), preservada nos arquivos pessoais daquele capitão. Três
oficiais superiores, antigos membros da Comunidade de Informações que
tiveram acesso aos originais antes da cremação, atestam a autenticidade
do conteúdo que consta na cópia.
O último combate
O jornalista diz que Grabois começou o diário três semanas após a
chegada do Exército. Ele esmerou-se nos detalhes dos crimes cometidos
pela repressão no Araguaia, a principal razão que levou os generais do
regime militar mandar destruir a maior parte dos documentos sobre a
Guerrilha, incluindo o diário do seu comandante militar. Studart
descreveu o documento como rico na descrição das receitas de alimentos e
medicamentos utilizadas pelos guerrilheiros, assim como na transcrição
de poemas e letras de canções invocadas no cotidiano das selvas.
Grabois escreveu até dia do seu último combate, em 25 de dezembro de
1973, quando, segundo escreveu João Quartim de Moraes no prefácio da
biografia que fiz, o Brasil vivia o tempo dos assassinos, dos curiós,
dos sérgios fleury e congêneres. Era “também o tempo dos verdadeiros
heróis, dos que em vida se comoviam até as lágrimas com a imensa miséria
e o indizível sofrimento dos humilhados, dos famélicos, dos
sem-infância e sem-esperança, mas que, na hora do combate final, caem de
pé, olhando a morte na cara”. Grabois morreu no grande combate que
ficou conhecido como o “Chafurdo de Natal”.
Descrevi, no livro, a cena nestes termos:
“No início da operação, batizada de 'Sucuri', instalou-se na região um
sujeito chamado Marco Antônio Luchini, enviado como engenheiro do Incra.
Era na verdade o major Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, ferrenho
anticomunista que em 1961, como tenente, foi preso por participar da
trama que tentou impedir a posse presidencial de João Goulart. No golpe
de 1964, ele participou ativamente da conspiração e chegou ao CIEx. Frio
e sanguinário, ficou famoso na região por receber de pistoleiros as
cabeças, mãos e dedos decepados dos guerrilheiros para os quais pagava
de 10 a 50 mil cruzeiros – dependendo da importância política da vítima.
Por trás da operação estava o general Antônio Bandeira. Curió foi,
possivelmente, a figura que mais encarnou o espírito da “guerra suja”,
que rasgou todas as leis e princípios que regem os conflitos militares e
os direitos básicos do ser humano. Curió ainda iria participar de
outras atrocidades praticadas pela ditadura – como a “chacina da Lapa”,
quando em 1976 a repressão assassinou dirigentes do PCdoB em São Paulo –
e se estabelecer na região, onde foi eleito deputado, dominou o garimpo
de Serra Pelada à força e fundou uma cidade em homenagem ao seu nome –
Curionópolis.
No dia 25 de dezembro de 1973, Curió comandava a patrulha que, no final
daquela manhã chuvosa, por volta das onze horas e vinte cinco minutos,
encontrou o grupo de guerrilheiros. O major viu entre eles aquele que o
relatório do CIEx classificou como o comandante militar da Guerrilha,
que destacava-se dos demais pela idade – estava com 61 anos. Maurício
Grabois recebeu um tiro de fuzil no braço esquerdo, abaixou-se, puxou o
revólver e de joelhos atirou até ser atingido mortalmente na cabeça.
Apropriadamente, o oficial que presenciou a cena proclamou: “Foi a morte
de um lutador”.
No início do dia 25 de dezembro de 1973, exatamente seis anos depois do
desembarque de Maurício Grabois no Araguaia, dos 69 guerrilheiros
enviados à região 41 estavam vivos, 20 mortos, 7 presos e um – João
Carlos Borgeth, o “Paulo Paquetá” – havia fugido. No tiroteio contra a
Comissão Militar naquela manhã de Natal, dos 15 que estavam no grupo dez
sobreviveram. Os mortos foram, além de Maurício Grabois, seu genro
Gilberto Olímpio Maria, Líbero Giancarlo Castiglia, o “Joca” – que
chegou com ele e Elza Monnerat à região em 1967, e possivelmente foi
preso ainda com vida –, Paulo Mendes Rodrigues e Guilherme Gomes Lund.
Os demais guerrilheiros estavam acampados num local mais abaixo ou
realizando tarefas nas redondezas.”
Para escrever a biografia, consultei muitas fontes, conversei
demoradamente com pessoas que conviveram com Grabois e mergulhei fundo
em seus escritos. A impressão que fiquei é de um homem à frente do seu
tempo, de rara capacidade intelectual, de caráter sólido e totalmente
envolvido com a causa que embala a humanidade desde tempos imemoriais: a
luta pelo futuro. É daqueles que, como disse o escritor Monteiro Lobato
na carta enviada a Caio Prado Júnior quando este estava na prisão,
quanto mais a gente conhece, mais admira. “A regra é ao contrário: à
proporção que a gente vai conhecendo um homem, vai se decepcionando –
vendo-lhe as falhinhas...”, disse.
Formulação de Karl Marx
No caso de Grabois e de seus contemporâneos que reorganizaram o Partido
Comunista do Brasil em 1943, na Conferência da Mantiqueira, e em 1962,
aplica-se muito bem a formulação de Karl Marx, na obra O dezoito brumário de Luis Bonaparte,
de que a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o
cérebro dos vivos. “Os homens fazem sua própria história, mas não a
fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim
sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
pelo passado”, diz ele.
Esse é ponto: Grabois se destaca nos noticiários por ter participado até
à morte naquela que é considerada a mais dura linha de resistência à
ditadura de 1964, a Guerrilha do Araguaia, mas o seu legado oprime o
cérebro dos que procuram esvaziar as suas ideias. O conjunto da sua obra
nem sempre é devidamente valorizado – uma opção da mídia que, sabemos
muito bem, não tem o menor interesse em retratar o alcance da Guerrilha
do Araguaia.
Chutes teóricos de Lucas Figueiredo
O que causa estranheza é a opção de CartaCapital de entregar esse
assunto ao jornalista Lucas Figueiredo, que se revelou um desconhecedor
das elementares informações que possibilitariam um juízo mais em
conformidade com os fatos descritos no diário. Já no início da matéria,
ele deduz que Grabois ilude-se sobre o ânimo das “massas”, que seriam “a
miserável população local que quer cooptar para fazer a revolução
comunista no Brasil”. Devaneio maior, impossível.
Bastaria raciocinar não mais que cinco minutos para saber que uma
“revolução comunista” era o que menos estava em questão naquele
movimento. Se for para ser mais rigoroso, é possível dizer que Lucas
Figueiredo não se deu sequer ao trabalho de evitar chutes teóricos para
qualificar a luta armada no Sul do Pará. Seria o caso de perguntar: onde
ele leu, ouviu ou obteve tal informação? Se diz que Grabois e seus
camaradas queriam “fazer a revolução comunista”, deveria explicar o que
vem a ser isso. É o velho vício da mídia, de disparar preconceitos sem a
menor preocupação.
O esperto jornalista
Para Lucas Figueiredo, “tudo conspirava contra os guerrilheiros”, mas o
ingênuo Grabois “julgava que a situação era ‘favorável’”. O esperto
jornalista diz que “fica patente” no diário “que, entre o sonho e a
realidade, Grabois abraça o primeiro e renega a segunda, um gesto bonito
para um idealista, mas fatal para um comandante militar”. Bem, quando o
assunto chega a esse tom professoral, é preciso tomar cuidado. Como
sabemos, professores nem sempre gostam de ser contestados. Mas alguns
pontos são tão falseados que, mesmo com esse risco, não dá para não
comentar.
Lucas Figueiredo descreve Grabois como um ser tão incapacitado
intelectualmente que passava horas de seu dia a ouvir as transmissões da
Rádio Tirana e acreditava nas notícias que chegavam “da distante e
fechada Albânia comunista”. “Grabois chega a acreditar que não só ele e
seus companheiros ouvem a propaganda vermelha da Tirana (sic), a ‘melhor
fonte de informações’”, escreve. Aqui a desinformação assusta. Bastaria
um rápida busca na internet para saber que o PCdoB montara um
sofisticado sistema de transmissão de informações, via Rádio Tirana, que
vinham exatamente de onde Grabois estava. Dizer, como faz Lucas
Figueiredo, que Grabois tomava propaganda como informação é o cúmulo do
descaso.
Uma confusão primária
Para o jornalista, a capacidade do comandante “de se entregar ao
autoengano parece infinita”. “O diário mostra que ele confundia o apoio
logístico dado pela população local, que realmente existiu durante um
tempo, com a nunca efetivada adesão à luta”, diz ele. Lucas Figueiredo
poderia ter assistido ao documentário Camponeses do Araguaia – a Guerrilha vista por dentro
(veja aqui do lado, na coluna da esquerda), do qual participei como
responsável pelas entrevistas, para ver que Grabois tinha razão. Deveria
também ler os documentos sobre o caráter daquela resistência para saber
que ninguém, muito menos o comandante, queria que a população aderisse
“efetivamente” à luta. É uma confusão primária, sabe-se lá com qual
propósito.
O texto se lança em outros devaneios de menor intensidade, como as
descrições de Grabois sobre as dificuldades enfrentadas na mata e a
busca incessante por comida. Aí Lucas Figueiredo voa tão baixo que é
impossível alcançá-lo. “O diário revela um guerrilheiro obcecado por
comida”, diz ele. Depois dessa triste passagem, ele volta a atacar
Grabois, “um comandante rigoroso, sobretudo com os outros”.
Palavreado rasteiro, chulo
Aparece novamente um ser ingênuo e incapacitado a ponto de escrever
regras como “garantir o autoabastecimento” e “levar a cabo ações armadas
contra o inimigo”. “Espera que os estudantes e profissionais liberais
de pouca idade levados pelo PCdoB para a mata sejam verdadeiros Rambos”,
escreve. “E quando não o são, Grabois os chama de ‘problema’,
‘acovardado’, ‘pouco desenvolto’ ‘ingênuo’ e ‘um tanto lerdo de
raciocínio’”, diz o jornalista, fazendo citações descontextualizadas e
demonstrando que leu o diário de forma artificial.
Mas, segundo Lucas Figueiredo, Garbois era tão estulto que “quando se
tratava de analisar a si próprio como comandante e o PCdoB como
Estado-Maior da guerrilha, era generoso”. O palavreado é rasteiro,
chulo. “Se os 69 combatentes ‘inexperientes’ – pelo menos isso ele
admitia – seguissem à risca as ordens emanadas da cúpula vermelha e da
inspiração do ‘mestre da guerra popular' Mao Tse Tung, seria
‘impossível’ perder a luta contra o rolo compressor liderado pelo
Exército e apoiado pela Aeronáutica, Marinha, Polícia Federal e as PMS
de três estados”, escreve. Quantos devaneios!
Dignidade humana personalizada
Para finalizar, Lucas Figueiredo atribui às chuvas as derrotas sofridas
pela repressão em suas duas primeiras campanhas. E na operação final
fica-se com a impressão de que os bandos comandados por Curió é que
estavam certos. “Em fevereiro de 1973, às vésperas do início da campanha
definitiva dos militares, (Grabois) aceita em sua mente (sic) o jogo do
tudo ou nada. ‘No final, como nos filmes de mocinho, tudo acabará bem.
Se não acabar... azar nosso’”, escreve ele.
Grabois não merecia isso tudo. Se pudesse dizer algo para o comandante
da Guerrilha do Araguaia, utilizaria ideias e palavras de Monteiro
Lobato na carta a Caio Prado Júnior. Cada ato seu o eleva mais. Morreu
por ser digno, honesto em uma era de desonestos, corajoso nesse tempo de
covardes, limpo em um século de sujeiras. Eu aqui, da minha
insignificância, Grabois, te beijo a mão comovido – como se beijasse a
mão da própria dignidade humana personalizada.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, pesquisador da Fundação Maurício Grabois e editor do portal desta instituição (grabois.org.br).
Fonte: Blog O outro lado da notícia
Leia aqui a íntegra do diário de Maurício Grabois