Por Elaine Tavares - jornalista - Revista
Pobres & Nojentas
A
sétima edição das Jornadas Bolivarianas discutiu este ano um tema
árduo e muito pouco palatável: a presença imperialista na cultura
latino-americana. A idéia foi dar um panorama de como o império vai
consolidando sua forma de ser na capilaridade da vida cotidiana através
da escola, dos meios de comunicação, da vestimenta, da comida, da
indústria do entretenimento, da moda etc... Como um conta-gotas,
misturando-se aos diversos aspectos da vida cultural, grande parte das
vezes sem usar a força bruta, o modo de vida do império toma conta das
gentes, até parecer ser natural esquecer os mitos locais, os pratos
típicos, a maneira de viver, as brincadeiras, e até a língua. A
cultura, expressão material da realidade humana, na América Latina,
segue cativa do colonialismo e a tarefa de descolonização mostra-se, às
vezes, grande demais, para os países que continuam sem uma alternativa
política nacional/popular. Nestas Jornadas, discutiu-se a situação
dramática da América Central, as tentativas de mudança na América do
Sul e a proposta ainda solitária de Cuba, que desde há 50 anos busca a
criação de um pensamento próprio, baseado na cultura nacional. O
totalmente novo ficou por conta da perspectiva indígena, que desde os
anos 90, assoma na América Latina, recuperando elementos chave de sua
cultura ancestral.
Poucas
pessoas desconhecem a força da cultura estadunidense na vida da América
Latina. Desde que proclamaram sua independência da Inglaterra, em
1776, os Estados Unidos da América do Norte decidiram trilhar o caminho
da rapina e da dominação. Como foi o primeiro país a realizar o feito
de se libertar da colônia em todo o território do “mundo novo”, nada
poderia ser mais natural que os demais povos o vissem como um exemplo a
ser seguido. Mas, o que veio logo depois já deveria ter servido como
um sinal de que as famosas “13 colônias”, agora livres e unificadas,
também iriam arvorar-se a disputar o cargo de donas do mundo. A
doutrina do “destino manifesto” - que tinha por princípio defender a
idéia de que os colonos norte-americanos de origem calvinista teriam
sido eleitos por Deus para comandar todos os povos da terra, com a
missão civilizatória de ocupar os territórios situados entre os oceanos
Atlântico e Pacífico – levou à trágica conquista do Oeste, com a
destruição de nações indígenas inteiras. O massacre dos povos locais
expandiu o território e aguçou a pretensão de fazer daquele país um
império. Naqueles dias, os governantes já faziam uso de armas químicas
como bem mostra essa célebre frase do presidente Benjamin Franklin "Se
faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para
abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum
seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que
antes habitavam a costa". E assim foi.
Poucos
anos depois da independência, já no século XIX, outra doutrina
expansionista iria ganhar corpo, a doutrina Monroe, que pregava a idéia
de a “América para os americanos”. No discurso, os governantes
estadunidenses afirmavam a necessidade da independência das terras
latino-americanas, mas, na verdade, tudo o que queriam era anexá-las
aos seu círculo de poder, já configurado como imperialismo.
Assim,
em 1820, quando a América Latina dava consequência ao sonho de
libertação, o governo estadunidense invadia o que hoje é o Texas,
ocupando também a Califórnia, o Novo México, Nevada, Arizona e Utah.
Com esta segunda incursão expansionista (a primeira foi a que anexou os
territórios indígenas do centro do país) roubava grande parte das
terras mexicanas, conformando pela força das armas e da destruição o seu
atual território. Nesse sentido, em 1850 os EUA já eram um império, no
modo de operar e na política de disseminação da cultura de dominação.
Terminada
a operação de ocupação das terras mexicanas, os dirigentes do país se
voltaram para a América Latina recém liberada. As guerras de
independência já tinham sido travadas e os estados-nação começavam a
formar-se. Era necessário, na visão dos estadunidenses, que alguém
ficasse no comando e esse alguém eram eles, coisa já definida por deus
no destino manifesto. É a Nicarágua, em 1855, o primeiro país a ser
ocupado pelas tropas do já formado império, pelas mãos do mercenário
William Walker que desembarca e se faz presidente, distribuindo terras
aos fazendeiros do sul dos EUA. Depois, em 1898, é a vez de Cuba,
tirada da Espanha e transformada em quintal estadunidense, um
protetorado que durou até 1933. No mesmo ano de 98, o Havaí também é
ocupado, sendo colônia até hoje.
Quando
o século XX nasceu, trouxe com ele a sede de expansão do império
estadunidense, que nunca mais parou. Intrigas muito bem urdidas
lograram a separação do Panamá da Colômbia e lá ficou o pequeno país,
com a riqueza de um canal ligando os dois oceanos, nas mãos do império.
Como bem lembrou Rafael Cuevas Molina, da Universidade Central da
Costa Rica, presente nas Jornadas Bolivarianas, a América Central
passou a ser um espaço estratégico para os Estados Unidos e desde
então, nunca mais conseguiu caminhar com as próprias pernas. A cada
tentativa de garantir soberania, os países eram invadidos e submetidos
aos desejos dos governantes estadunidenses.
Pouco
depois da Primeira Guerra Mundial, num mundo devastado pelo conflito,
os Estados Unidos iniciaram outra estratégia de dominação na América
Latina. A proposta era conquistar corações e mentes pela via da
cultura. Enriquecido pela indústria da guerra, os EUA deram linha para a
indústria cultural. Inicia-se um período de ouro no cinema, no qual os
filmes eram produzidos para propagandear o “modo americano de ser”. O
mito do mundo livre, das oportunidades para todos, da democracia, vai
se construindo e invadindo a América Latina. O círculo do far west
(corrida para o oeste) demoniza os índios, transformando-os em
assassinos sanguinários, enquanto os cowboys (vaqueiros) era pintados
como heróis. A completa inversão de valores. Em toda América Latina
esses produtos culturais se popularizaram e em pouco tempo as crianças
sabiam mais de John Wayne do que de seus vizinhos. Estava aberta a veia
da dominação “limpa”. Igualmente, os açucarados filmes românticos
mostravam o jeito de ser da sociedade estadunidense, gravando nas
cabeças latino-americanas o desejo de ser como aqueles heróis que
infestavam os cinemas de todos os países. No campo da comunicação de
massa, o rádio também reproduzia a propaganda do “mundo livre” e com
ela, introduzia nos países as megaempresas que iriam dominar
economicamente cada pedaço desse chão. No Brasil, o repórter Esso,
noticiário diário, era um fenômeno de audiência. Só o que se noticiava
ali, sob a chancela da Esso, era considerado verdade.
E
é essa forma de dominação - que ocorre num terreno aparentemente
invisível - que as Jornadas Bolivarianas se propuseram discutir.
Compreender qual o alcance desta política ainda hoje nos países
latino-americanos e encontrar as brechas para sair do atoleiro da
dominação cultural.
A América Central
Na
franja de terra que separa as Américas do Sul e do Norte, a vida nunca
foi fácil, desde a dominação espanhola. Depois, com a influência
estadunidense, as condições de vida das gentes só pioraram. Sem os
“patrões” europeus, os países da América Central e do Caribe passaram a
ser dominados pelas grandes empresas estadunidenses, principalmente as
chamadas bananeiras. No controle da economia, elas ainda tinham pleno
domínio da política e elegiam e derrubavam governos ao seu bel prazer.
Eram um estado dentro do estado. Assim, as regiões que antes eram
espaços das culturas Caribe, Chicha, Maya, Kuna e outras, passam a
receber mão de obra escrava vinda da Jamaica, já inoculada com a
cultura britânica, a qual tinha absorvido com a colonização. Com o
enclave bananeiro, o modo de vida que passou a ser hegemônico foi o
estadunidense. “O planejamento urbano, a religião, a cultura, a
arquitetura, a língua, tudo estava ligado com a vida nos Estados
Unidos”, diz o professor da Universidade Nacional da Costa Rica, Rafael
Cuevas Molina.
Segundo
ele foi Augusto César Sandino o primeiro a se insurgir contra essa
dominação que já extrapolava o campo do território e se espraiava pela
via da cultura. Quando no início do século XX os EUA invadem outra vez a
Nicarágua para tomar conta do canal e desde ali frear a revolução
mexicana, Sandino aparece com seu “pequeno exército louco”, dando vida a
um nacionalismo latino-americanista e antiimperialista, capaz de
mostrar que seria possível a vida sem as megaempresas e sem o domínio
do mal nominado “Tio Sam” (já que irmão de nossa pátria ele não, como
dizia Alí Primera). E é essa idéia que vai incendiar as lutas populares
nos anos 60 por toda a América Central com o surgimento dos movimentos
armados de libertação nacional.
O
resultado de décadas de lutas insurgentes, praticamente todas
derrotadas, é o que se vê na realidade atual. A constituição de um
Estado terrorista, que torna naturalizada a cultura da violência e da
discriminação. Os anos 80, que marcaram o derrocamento das propostas
revolucionárias, ainda trouxeram consigo as reformas neoliberais,
esgarçando um pouco mais o frágil tecido social. O resultado disso é
uma identidade cultural esfacelada, o que torna ainda mais fácil a
dominação. E, se a bananeiras já não tem mais poder na América Central,
o espaço foi tomado pelas empresas maquiladoras, que seguem
trabalhando no mesmo velho ritmo: trabalho precário, produção de coisas
que as gentes jamais usarão e esgotamento total das pessoas. O que
sobra é a violência, a pobreza, o crime organizado e as gangues
juvenis. Sem horizontes de futuro, os jovens ou se matam ou migram. E,
de um jeito ou de outro vão se transformando em uma cópia mal feita dos
jovens empobrecidos do centro do poder. “Na América Central, hoje, os
ricos sonham com Nova Iorque, os de classe média sonham com Miami e os
pobres com o que vêem na TV. Isso é uma mostra segura de que há um mal
estar cultural. Todos, de alguma forma, imitam a vida dos EUA”.
A comunicação é a via de transmissão do imperialismo
Se
nos anos 30 os EUA iniciaram sua corrida às mentes do povo
latino-americano pode-se dizer que isso segue sendo feito num ritmo
frenético. Usando a velha tática da repetição, a indústria cultural
estadunidense continua hegemônica em praticamente todos os países. O
cinema exporta o modo estadunidense de ser, os programas de televisão,
as séries, os desenhos animados, as teorias culturais, os movimentos
artísticos, a estética, a filosofia. Tudo é colonizado. E, os meios de
comunicação bombardeiam o cérebro das pessoas diuturnamente. Romper essa
dominação colonial requer mudanças drásticas na vida dos países,
ensina o jornalista uriguaio/venezuelano Aram Aharonian, um dos
formuladores da proposta da Telesur – um canal de televisão
latino-americano.
Para
Aram é impossível mudar qualquer coisa nos países que vivem dominados
culturalmente, se não houver primeiro uma mudança radical de paradigma.
“Há mais de 40 anos que não temos uma teoria nova na comunicação. Tudo
copiamos dos gringos”. Essa formulação teórica tem de ser própria,
fruto da realidade local. Já basta de pensar com a cabeça mergulhada
num mundo que não é nosso.
Mas,
fazer isso tampouco é fácil, uma vez que o império, ao ser confrontado
com novas teorias e paradigmas usa de todas as armas para absorver o
impacto, usando-as para contra-atacar. “Nós pudemos ver isso quando na
Telesur colocamos nossos apresentadores de maneira bem informal, como
são os latino-americanos. Não passaram dois meses e lá estava a CNN em
espanhol copiando nossa forma de fazer, e usando isso contra nós”.
Assim, nossa tarefa parece ser cada dia mais desafiadora.
Aharonian
adverte que se no mundo da arte, da cultura e da comunicação estamos
cada dia mais enfeitiçados pelo sistema hegemônico, a única saída
parece ser liberar os 1.400 cm cúbicos de cérebro que cada um tem. É a
capacidade de pensar com a própria cabeça que definirá o futuro. Aram
mostrou que mesmo a comunicação dita alternativa, que fez sucesso em
determinado momento, acabou se domesticando. “As rádios comunitárias se
profissionalizaram e não são mais o espaço popular, os sindicatos se
conformem em ter apenas um boletim, a palavra está sequestrada pelas
empresas. Estamos cegos de nós mesmos. Não sabemos quem somos e não
cremos em nós mesmos. É isso que precisa mudar”.
Uma
comunicação libertadora precisa ter o compromisso de manejar ela
mesma a agenda informativa. Os espaços alternativos não podem ser
marginais, precisam almejar ao universal. O grande desafio é deixar de
copiar conteúdos e formas. Criar o próprio estilo e a partir daí criar
redes de comunicação que possam chegar ao maior número de pessoas. “Nós
vivemos a síndrome da praça sitiada. Ocorre que ela não está mais
sitiada, nós podemos romper o sítio. Mas, para isso, temos de criar
nosso próprio paradigma. Já basta de choramingar e de gritar palavras de
ordem. Vamos produzir conteúdo de qualidade e formar redes. Assim,
superaremos a dominação cultural”.
No
campo do cinema a ordem parece ser a mesma. Sérgio Santeiro, cineasta
brasileiro que bebe na proposta estética e filosófica de Glauber Rocha -
como se pode ver no seu deslumbrante curta metragem “Paixão”
(http://youtu.be/AS3Oep2cCsw ) - desafia a se constituir uma estética
própria, fora dos padrões “roliudianos”, que dêem conta da realidade
latino-americana e que provoquem o desconforto gerador da mudança.
Glauber, de alguma forma, conseguiu isso no seu tempo, mas a nova
geração precisa encontrar outro caminho, original. Outra estética para
vencer a lógica da violência e do medo imposta pela arte
cinematográfica estadunidense. Igualmente a proposta do pensamento
crítico e próprio, na senda do ensinamento de Simón Rodriguez, que
pregava como um louco a máxima: “Basta de imitar. Há que criar”.
A proposta cubana
Faz
mais de 50 anos que a pequena ilha caribenha, Cuba, busca um caminho
original. Até o triunfo da revolução, a mídia, comandada pelos EUA,
confundia o mundo e os cubanos sobre o que passava no país. Na ilha se
podia viver em inglês, como lembrou o vice-ministro da Cultura, Fernando
Rojas. Depois não. A revolução, pela proposta de liberdade que
carregava, foi definindo uma identidade que até então só aparecia nos
escritos de José Martí. Hoje, depois de acertos e erros, a cultura
cubana segue rechaçando o neocolonialismo que se expressa na invasão do
ar via televisão desde Miami, mas busca estabelecer uma relação
dialógica com a cultura dos EUA. “Nós acreditamos que é preciso
conhecer muito bem essa cultura para podermos conformar um
anti-imperialismo. Mas, a proposta é enfrentar a colonização cultural
com o melhor do pensamento socialista, fazendo assomar a rumba, o
guagancon e o balé nacional de Cuba”.
Segundo
Fernando, a ilha de Cuba já superou os tempos em que se buscava
importar a experiência socialista do leste. Atualmente, incorporados os
elementos da afro descendência, dos indígenas, dos descendentes dos
colonizadores, as forças políticas do campo e a cultura popular urbana,
tem-se a cultura cubana, tomada por uma liderança coletiva
anticolonialista e anti-imperialista. “Em Cuba há uma questão que nos
parece vital. Todas as pessoas têm acesso à cultura. Nós não dizemos:
crê. Dizemos: lê. E, com isso, os cubanos recebem gratuitamente o
melhor da cultura, inclusive a dos EUA. Fundamos escolas de arte em
todo o país, na montanha e na capital. E esse acaba sendo nosso
desafio. Afinal, temos de pensar em como sustentar isso
economicamente”.
Em Cuba
as políticas culturais significam esforços estatais e públicos. Vem daí
a Casa das Américas, a escola de Cinema e outras milhares de
instituições de cultura de base. “Como tudo isso custa, agora andamos
pensando em cobrar do público para ver um teatro, por exemplo. Mas é
coisa simbólica, nada comparada ao mundo capitalista no qual é
praticamente impossível aos trabalhadores freqüentarem o teatro”.
A
polêmica em Cuba agora passa pela discussão do direito de autor.
Segundo Fernando, existem manifestações da cultura popular que precisam
de proteção e que não podem ser apropriadas por este ou aquele. São
construções coletivas. “Mas esse ainda é um debate ainda inicial”.
Para o vice-ministro, a originalidade cubana está no fato de o governo
ter uma política cultural que possibilita a liberdade criativa e a
garantia do acesso ilimitado à cultura. É uma aposta na qualidade da
vida das pessoas, pois, com isso, elas se tornam pessoas melhores. Ele
ressaltou que Cuba vive sob bloqueio econômico, mas não cultural. Todo o
lixo produzido no império chega às casas cubanas e, por isso, esse
campo de batalha é tão importante. Vencer aí é fazer meio caminho no
rumo da sustentação da nova sociedade.
O paradigma andino
Se
a questão do enfrentamento do império passa pelo desafio de sermos
originais, o mundo indígena tem muito a contribuir para esse debate. Foi
o que mostrou a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui na sua
exposição. Segundo ela os índios há muito que deixaram de ser estudo de
caso e sua cosmovisão assoma como uma proposta de vida absolutamente
diferente da que foi pregada pelo mundo ocidental, europeu. Muito antes
da invasão já havia muitas culturas aqui nestas terras, com histórias
milenares, que, mesmo sob a dominação, mantiveram-se vivas e hoje saem
da obscuridade, oferecendo novas formas de viver no mundo. Sua
originalidade consiste justamente na diferença radical. Enquanto a
filosofia ocidental busca o uno, o mundo andino, por exemplo, trabalha
com a idéia do terceiro incluído: ou seja, os contrários podem sim
conviver e se encontrar.
Silvia
defende a idéia de que a cultura é um sistema de significados que não
tem como passar pelo mercado. É o imaginário, o desejo das comunidades,
mas ao mesmo tempo é o que se torna real pela força da arte humana.
Segundo ela, na Bolívia, a esquerda não tem falado em imperialismo ao
discutir as mazelas do tempo presente. “Falam em pós-colonialismo, mais
encobrindo do que revelando o que está por trás de tudo isso”. Ela
conta que os povos indígenas da Bolívia sabem muito bem que a
identidade naquele país é uma questão política de primeira grandeza. E
tanto que conforme são os dirigentes mudam as cifras sobre a
porcentagem de indígenas no país. Já houve momentos em que a
porcentagem foi de 19%, pulando no ano seguinte para 68%. O trágico é
que o racismo contra o índio é algo internalizado também na esquerda,
até porque suas fileiras são formadas por gente que tem o pensamento
colonizado também.
Nos
Andes, as comunidades vivem sob outro paradigma, fora da dualidade
maniqueísta ocidental. “Para nós é fundamental o conflito das
dualidades, porque isso é a energia que nos move”. Entre os indígenas
das comunidades andinas a cultura é parte da forma de organizar a vida.
Nos tempos mais remotos, mesmo as obras públicas sempre eram
precedidas de grandes festas, de encontros com dança, música, imagens e
gestos, tudo recheado do simbólico e do sagrado. Mesmo a religião é
múltipla, com deuses de muitas faces, que são anjos e demônios ao mesmo
tempo, porque é esse conflito que move a vida. Coisas bastante
difíceis de serem assimiladas pelos cérebros formatados na mentalidade
ocidental. Palavras desconcertantes para os 1.400 cm cúbicos de
racionalidade instrumental. “Para nós o futuro é algo que está atrás,
porque não sabemos dele, o passado é algo que está à frente, pois dele
temos conhecimento. E o presente é o que de fato importa”. Para Silvia a
tarefa de descolonização dos estados na América Latina é árdua e
difícil, mas esta é uma batalha que precisa ser travada. Derrubar o
colonialismo, o racismo, o preconceito. No território que serpenteia
junto à cordilheira dos Andes, as comunidades estão descobrindo suas
potencialidades, estão recuperando suas formas de organizar a vida. “É
bobagem pensar que não podemos ser modernos. Podemos sim. Comunitários e
modernos. Temos nossos paradigmas e nossa cultura. Mas, o fato é que
nós vimos o mundo ao contrário. Nossa lógica é “al revés”. Isso precisa
ser entendido e respeitado”.
Desafios do presente
A
experiência indígena pode parecer desconcertante num primeiro momento,
já que coloca o mundo de pernas para o ar. Mas a idéia de convivência
dos contrários parece ser a única possível num mundo onde as diferenças
se afirmam cada vez mais. Transitar neste território conflituoso e
desde aí criar o novo é também desafiador. A nova sociedade sonhada
pela racionalidade marxista precisa levar em conta esse paradigma
indígena, precisa incorporar as demandas destas comunidades que assomam
cada dia com mais força. Desconhecer esse mundo é apostar no fracasso.
Assim já foi com Simón Bolívar, quando subestimou a força dos lañeros
venezuelanos e foi derrotado por eles. Só depois de voltar do Haiti,
com os ensinamentos dos revolucionários negros sobre a necessidade de
incorporar a cultura local é que Bolívar logrou a confiança dos
indígenas e, com eles, abriu caminhos para a libertação. Foi assim com
Artigas, na Banda Oriental, que, conhecendo e respeitando a cosmovisão
Charrua, trouxe os indígenas para fazer real o sonho da liberdade.
Tanto Bolívar quanto Artigas respeitaram de verdade a forma de viver
dos indígenas, não fizeram mero uso instrumental, como se vê por aí.
Esse pode ser o segredo.
Em
toda a América Latina vive e pulsa uma Abya Yala, um espaço de
propostas que exigem mudanças radicais na forma de raciocinar sobre a
realidade. Outra episteme, outra forma de conhecer. Não necessariamente
precisa-se aceitar toda a cosmovisão que vem destes povos milenares
aqui nestas terras, mas fundamentalmente há que se incorporar essas
formas de ver a realidade. Os indígenas querem estar no mundo, fazer
parte da planetização da vida boa e bonita. Mas eles precisam ser
compreendidos na sua cultura. Assim, no conflito destes contrários,
mundo indígena X mundo colonizado, talvez se possa chegar ao novo tão
esperado. Uma América Latina descolonizada, livre do imperialismo,
aberta para o presente.