Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
domingo, 22 de maio de 2011
Um sebo de resistência
Com mais de 300 livros publicados sobre o Rio Grande do
Norte, o editor Abimael Silva, proprietário do Sebo Vermelho, no centro
de Natal, tornou-se uma espécie de guardião da cultura de seu estado, e
uma referência para quem quer ir muito além das praias e dunas
Por: João Correia Filho na REDE BRASIL ATUAL
"O objetivo de um livro é fazer outro" Poucos lugares do
Sebo Vermelho são arrumados como a estante das edições do próprio selo
(Foto: João Correia Filho)
O local não é o que se pode chamar de ponto turístico. Uma pequena
porta de correr pintada de vermelho, com a tinta já descascada, um
amontoado de livros entre poeira, móveis e pilhas de papel. Mas se
engana quem não vê nesse estabelecimento, no centro histórico de Natal,
uma das maiores referências para conhecer a cultura potiguar e adentrar o
Rio Grande do Norte de norte a sul, praia e sertão, erudito e popular.
Criado em 1985, o Sebo Vermelho tornou-se muito mais que um sebo a
partir de 1990, quando seu proprietário, o ex-bancário Abimael Silva,
resolveu publicar o livro de um amigo sobre a história do cinema em
Natal. E foi assim, com Écran Natalense, de Anchieta Fernandes, que
Abimael começou sua saga editorial, que já chega à marca de mais de 300
livros lançados, dos mais variados temas, mas todos voltados para a
cultura potiguar.
“Anchieta não encontrava espaço para publicar esse brilhante ensaio,
sempre com negativas das editoras daqui. Decidi procurar Varela
Cavalcanti, então presidente do Sindicato dos Bancários, que sabia da
importância da obra. Comprei todo o material e ele topou fazer a
impressão. Imprimimos 300 exemplares e, felizmente, conseguimos vender
todos”, conta Abimael, que a partir daí passou a lançar outros títulos
por conta própria.
Livreiro por natureza
Antes
disso, trabalhara quatro anos no setor de conta corrente de um banco.
“Ficava o dia inteiro somando cheques, mas sempre pensando que queria
trabalhar numa livraria. Na primeira oportunidade, saí do banco e
resolvi começar meu próprio sebo”, diz Abimael. Na época, sua biblioteca
particular tinha mais de 700 livros, e 600 foram colocados à venda.
“Lamento a perda de alguns poucos que nunca mais encontrei em 26 anos de
sebo, como Cartas a Nora, de James Joyce, e alguns do Graciliano
Ramos.”
As publicações do Sebo Vermelho, depois de quase três décadas de
existência, apresentam um completo panorama da cultura do estado, além
de importantes resgates de livros. É o caso de Antologia Poética do Rio
Grande do Norte, publicado originalmente em 1922 e reeditado pelo selo
em 1993. Os Americanos em Natal, do historiador Lenine Pinto, é outro
destaque. Retrata a cidade durante a Segunda Guerra Mundial, quando se
tornou uma base dos Estados Unidos e sofreu forte influência da cultura
americana. Outra pérola, O Carteiro de Cascudinho, foi escrita por José
Helmut Cândido, o carteiro de Câmara Cascudo durante anos, que conta
suas experiências servindo um dos maiores intelectuais do Nordeste.
As tiragens do Sebo Vermelho costumam ser pequenas, no máximo 500
exemplares, e com distribuição extremamente complicada, já que é difícil
entrar no esquema das grandes livrarias, que dominam o mercado. “Até o
livro número 34, ainda tinha esperança de que isso pudesse render algum
dinheiro, mas hoje, para mim, o que importa é apenas que as edições se
paguem, pois o objetivo de um livro é fazer outro, e assim por diante”,
resume o editor. Ele lembra que um dos livros que mais venderam foi
História do Rio Grande do Norte, do pesquisador Ezequiel Vanderlei,
publicado originalmente em 1992. Foram 500 exemplares em seis meses.
É dessa forma que são lançados cerca de 30 títulos por ano, e o
editor pretende alcançar a marca de 500 livros editados até 2012. “O
mérito é todo do Rio Grande do Norte, que tem tudo isso para ser dito”,
argumenta Abimael, que garimpa preciosidades em viagens pelo interior e
em conversas com amigos. A triagem é feita pelo valor histórico e
editorial, que conta com a sensibilidade de quem conhece seu estado e
vive envolto por livros e intelectuais de peso. “Também aparecem várias
porcarias, como uma senhora que queria pagar a publicação do livro do
neto, de 5 anos, edição bilíngue, pelo selo. Obviamente, não aceitei.”
Vermelho?
Embora o caráter político-literário do trabalho de Abimael esteja
claro, o nome de seu sebo nada tem a ver com posições ideológicas. Ao
alugar um quiosque para montar sua banca, ele notou que todos eram azuis
ou pretos. Para destacá-lo, pintou tudo de vermelho. “Até o dia em que
chegou alguém e perguntou: ‘Aqui é o sebo vermelho?’ E o nome acabou
ficando. Mas minha mãe achou horrível, achava que tinha de se chamar
Sebo São José”, brinca Abimael. Hoje, o sebo não está mais instalado em
um quiosque de rua, mas na Avenida Rio Branco, bem no centro da cidade. E
mantém a cor como chamariz.
Ano após ano, a luta do sebista-editor foi se tornando também uma
bandeira política e social, à medida em que virava um verdadeiro
guardião da cultura do estado. Além de ser hoje o maior editor potiguar
(talvez do Nordeste, pelo número de títulos), tem acumulado uma série de
resgates cuja importância é negligenciada pelo poder público e pelas
editoras privadas. “Só querem saber do que vende em grandes tiragens. É
nisso que investem ainda mais. Quando houve o lançamento do livro do
Padre Marcelo aqui em Natal, venderam 5.000 exemplares num único dia,
graças a um aparato gigante de marketing”, alfineta o sebista. “Aqui,
nunca a prefeitura comprou ou indicou um único livro meu que fale do Rio
Grande do Norte. Já tentei, já mandei ofício, mas esse povo fica
esperando que a gente puxe o saco.”
Sem uma empresa distribuidora, os títulos do Sebo Vermelho são
vendidos, em sua grande maioria, no dia do lançamento e no boca a boca,
ou em algumas livrarias de Natal, nas quais Abimael leva pessoalmente
cada exemplar. “Quanto maior a livraria, maior o obstáculo”, reclama. No
sebo, os livros editados por ele são os que têm maior destaque,
expostos nas paredes da entrada, com um pouco mais de organização que os
demais. Segundo ele, um dos raros momentos de destaque do Sebo Vermelho
ocorreu quando foi entrevistado pelo apresentador Jô Soares. Na
ocasião, havia alcançado 100 livros editados e os poucos momentos
televisivos renderam visibilidade, embora isso não tenha mudado
substancialmente a venda de seus livros. “Foi bom pra chamar a atenção,
por exemplo, para o sertão do Rio Grande do Norte, que quase sempre é
deixado de lado”, diz Abimael.
Quando sobra tempo ou dinheiro, Abimael viaja para as duas capitais
próximas de Natal, Recife (a 285 quilômetros) e João Pessoa (a 190
quilômetros), sempre com o carro lotado de exemplares, que vai
entregando de livraria em livraria, numa verdadeira romaria literária.
Já no interior do Rio Grande do Norte, além da pesquisa de novos
títulos, realiza eventualmente lançamentos de obras que falem do sertão
ou de autores locais. É o caso de O Ataque de Lampião a Mossoró,
história em quadrinhos escrita por Emanoel Amaral e Alcides Sales.
Para este ano, um dos destaques entre os lançamentos é a reedição de
Indícios de uma Civilização Antiquíssima, de José de Azevedo Dantas.
Autodidata e pioneiro da antropologia brasileira, escreveu em 1925 um
verdadeiro tratado sobre as pinturas rupestres do sertão potiguar, mais
especificamente sobre a região do Seridó, no sul do estado, já na divisa
com a Paraíba.
Para quem quer conhecer o Rio Grande do Norte além dos livros, é bom
lembrar que se trata de uma região riquíssima, com belas paisagens,
cidades históricas e muitas pinturas rupestres, a maioria datada de 10
mil anos. Somente Carnaúba dos Dantas, a 200 quilômetros da capital,
onde viveu José Dantas, possui mais de 60 sítios arqueológicos para
serem visitados.
Outra predileção de Abimael são os livros de história e de
fotografias. Entre os mais importantes lançados por ele estão Uma Câmara
Vê Cascudo, com imagens raras do escritor, feitas no final dos anos
1970; e Natal Através dos Tempos, que retrata a cidade desde os anos
1940, ambos do fotógrafo potiguar Carlos Lyra, falecido em 2006.
Além de um lugar para comprar livros sobre o Rio Grande do Norte, o
Sebo Vermelho também se tornou, em seus 26 anos, um importante reduto de
intelectuais, a maioria em busca de boa literatura ou boas conversas,
que acontecem ali quase todos os dias.
No fundo da loja há uma pequena mesa de sinuca e uma geladeira, aos
sábados repleta de cervejas. O ponto de encontro virou tradição entre os
amigos que frequentam o sebo. Não faltam uma boa cachaça e a carne de
sol, “a melhor de Natal, que eu mesmo escolho”, faz questão de dizer
Abimael. Nesses churrascos, o papo rende e surgem ideias para novos
livros, além do incentivo dos amigos para que Abimael continue na dura
batalha a favor da cultura do Rio Grande do Norte, um estado que, se
você quiser conhecer a fundo, não pode deixar de incluir o Sebo Vermelho
em seu próximo roteiro.
O ministro consultor...
Palocci e as escolhas de Dilma
por Rodrigo Vianna, via BLOG DO MIRO
A denúncia contra Palocci parece consistente. Ah, mas a “Folha” quer desgastar a Dilma… E daí? O fato ocorreu ou não?
Ah, mas a denúncia foi vazada por “ruralistas” interessados em
enfraquecer o ministro. E daí, de novo? É só quando os poderosos
divergem que essas coisas vêm à tona…
Sim, Palocci (contradição do mundo real?!) cumpria nesse caso um
papel positivo: negociava duramente com os ruralistas da base
governista, para que aceitassem um Código Florestal menos retrógrado do
que o proposto por Aldo Rebelo.
Por isso, criticar Palocci agora – dizem alguns apoiadores de Dilma – é fazer “o jogo da direita”. Será?
Aliás, se o caso surgiu como “fogo amigo” de dentro da base
governista, por conta da votação do Código Florestal, a essa altura
parece ter ganho dinâmica própria. Os jornais já relacionam o
enriquecimento de Palocci à campanha de Dilma. Vale a pena manter um
ministro que traz esse grau de instabilidade ao governo?
Quem acompanhou os bastidores da campanha eleitoral de 2010 sabe qual
foi a opção de Dilma e do núcleo dirigente do PT no primeiro turno:
tentaram ganhar a eleição só com o programa de TV e a popularidade do
Lula. A idéia era ganhar sem fazer política. No primeiro turno, foi
assim: campanha controlada pelo marqueteiro e pelos 3 porquinhos
(Palocci, Dutra e Zé Eduardo).
Quem fez política foi o Serra. Politizou pela direita: trouxe aborto e
religião para a campanha. Com isso, empurrou milhões de votos pra
Marina, e levou a eleição pro segundo turno. Aí, a ficha no PT caiu.
Dilma e o núcleo da campanha finalmente compreenderam o que já estávamos
vendo na internet há semanas: o terrorismo conservador. Dilma deixou os
conselhos do marqueteiro de lado, teve coragem de ir pra cima no debate
da “Band” (primeiro domingo do segundo turno): pendurou no pescoço do
Serra a história do aborto (a mulher de Serra tinha dito que Dilma
gostava de “matar crancinhas”), falou em Paulo Preto, reanimou a
militância.
Se Dilma tivesse insistido no figurino do primeiro turno, poderia ter
perdido a eleição. Pesquisas internas, pouco antes do debate da Band,
davam apenas 4 pontos de diferença sobre Serra no início do segundo
turno. Foi a realidade que levou Dilma a mudar de figurino.
Pois bem. Passada a eleição, Dilma montou o ministério e começou a
governar. Como? Com o figurino idêntico ao usado no primeiro turno da
eleição: sem política, longe dos movimentos sociais, procurando agradar
o “mercado” e a “velha mídia”. Foi uma escolha.
Palocci tem a ver com isso. Coordenou a campanha. Ele quer um governo
moderadíssimo, que não assuste a turma a quem dá “consultoria”.
Logo no início do governo, estava claro que Dilma procurava ocupar um
espaço mais ao centro. Lula tinha (e tem) apoio da esquerda
tradicional, dos movimentos sociais, do povão que saiu da miséria. Dilma
foi em direção à classe média que lê a “Veja”. Com Palocci à frente.
Palocci é amigo da “Veja” e da “Globo”. Palocci é blindado na “Globo”.
Perguntem ao Azenha o que aconteceu na Globo quando ele tentou fazer uma
reportagem sobre o irmão do Palocci, 5 anos atrás…
Renato Rovai publicou em seu blog um texto que mostra a repercussão desastrosa – para o governo – do caso Palocci nas redes sociais. Como aconteceu na eleição, com o aborto e a onda consevadora: primeiro os temas batem na internet, depois chegam às ruas.
Assim como ocorreu na eleição, Dilma talvez perceba que o figurino
palocciano não garantirá estabilidade ao governo. Com quem ela vai
contar quando enfrentar crise séria? Com a família Marinho? Com os
banqueiros?
Dilma segue com popularidade alta. Mas o caso Palocci mostra os
limites do governo. E os riscos que ela corre diante da primeira crise
mais grave. Pode faltar base social…
Mas, seja qual for a escolha de Dilma
(ela a essa altura parece mais próxima de optar por um acerto “por
cima”, com os que mandam nas finanças e nas comunicações do Brasil), é
inaceitável que o governo vote o novo Código Florestal sob chantagem dos
ruralistas.
O governo está sob pressão dos ruralistas, que dizem nos bastidores:
“a oposição pode maneirar com o Palocci, desde que passe o Código
Florestal que nós queremos!”
O texto vai a votação na terça.
Hoje, o governo Dilma corre o seguinte risco: aceitar a chantagem dos
ruralistas pra salvar Palocci e… não conseguir salvar Palocci. Seria um
desastre.
Dilma precisa fazer uma escolha agora. Semelhante à que ela fez
naquele debate na “Band”, no início do segundo turno. A quem ela
pretende agradar? À turma do Palocci, ou à turma que foi à rua e
garantiu a vitória dela enfrentando a onda conservadora que Serra trouxe
para o debate?
A oposição está enfraquecida. O lulismo é forte e dominante no país.
Mas o governo Dilma parece frágil. Equação estranha. É preciso aproximar
o governo Dilma do lulismo. Dilma ganhou por causa disso. Vai governar,
de verdade, se estiver alinhada ao lulismo.
Biblioteca Latino-Americana – Radiografia do Pampa (1933)
Blog do Avelar na REVISTA FORUM
Ezequiel Martínez Estrada
(1895-1964), ensaísta, poeta, contista e crítico literário, nasceu na
província de Santa Fé e morreu em Bahía Blanca, província de Buenos
Aires. Como a esmagadora maioria da intelectualidade de sua geração, foi
anti-peronista. Durante os dois primeiros mandatos de Perón
(1946-1955), foi privado de seu emprego em La Plata. Depois do golpe
militar conhecido como “Revolução Libertadora”, foi nomeado professor
extraordinário na Universidade Nacional do Sul, em Bahía Blanca. Em duas
ocasiões, foi presidente da Sociedade Argentina de Escritores. Apesar
das origens anti-peronistas, aproximou-se da esquerda depois da
Revolução Cubana, e durante dois anos dirigiu o Centro de Estudos
Latino-Americanos de Casa de las Américas, a principal instituição de
política cultural da Revolução. Mas Martínez Estrada entraria mesmo para
o cânone como o autor do principal ensaio de interpretação do ser
argentino, Radiografia do Pampa, publicado em 1933.
É
interessante comparar os mais celebrados ensaios de interpretação das
identidades brasileira e argentina, publicados no mesmo ano. O contraste
com Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, não poderia ser maior. Radiografia do Pampa
recorre, com frequência, à figura do pecado original: qual seria a
queda originária dos pampas? Qual é a origem da inautenticidade?
Martínez Estrada arma sua resposta a partir da noção de vazio. A terra
vazia seria o índice do desarraigo, da falta de raízes, da ausência de
princípios e de ideais. Os pampas estariam marcados, de antemão, pelo
signo do erro e da mentira: o artesão sem pão e o fidalgo empobrecido,
ao ouvir relatos fabulosos, já mentiam no próprio ato de escutar.
A viagem originária foi feita sem nenhum ideal ou propósito em si.
Não havia um projeto de povoar ou colonizar; a conquista mais se
assemelhou a um saqueio. Os que vinham supunham que um dia regressariam à
Europa e construíam suas viagens a partir de uma ilusória
transitoriedade. Martínez Estrada apelida de “Trapalanda” esse país
fictício imaginado pelos colonizadores. Trata-se do El Dorado dos
tesouros ocultos, que nunca se concretiza. Na medida em que a realidade o
lembra que ele está nos pampas, e não em Trapalanda, o homem americano
adentra o rancor. Inaugura-se o ressentimento.
Enquanto que, na Europa, a posse da terra implicava emparentar-se com
a história, nos pampas, para Martínez Estrada, ela significava apenas a
posse de um bônus de crédito. Possuir, nos pampas, era possuir algo que
seria preenchido. O valor era uma pura virtualidade, puro
título, crédito, honra. Instalava-se aí o conflito e a contradição com a
terra, posto que o colono vivia na projeção de uma Trapalanda futura,
enquanto os pampas reais não têm tempo, história ou futuro. Vivem num
presente perpétuo. Daí a consolidação da tradição bacharelesca, pois em
vez de construir, o homem dos pampas fazia leis, preenchia papeis,
enviava petições. Formulava um valor puramente jurídico e teológico,
descolado da realidade.
O coitus interruptus funciona, para Martínez Estrada, como
alegoria da fundação: as leis de Índias proibiam a formação de famílias
com as indígenas, mas implicitamente incentivavam o concubinato. O ato é
realizado de maneira incompleta, com pressa e desgosto. Os pouquíssimos
que trouxeram mulheres também possuíam amantes, com frequência na
própria casa. O desprezo pela mulher seria componente chave da história
da América.
Os partidos políticos, para Martínez Estrada, não escapam a esse
quadro. Buenos Aires estabelece laços com a Europa antes de enxergar o
interior. O Estado se forma antes do povo, e os governos também são
filhos da inautenticidade, já que suas origens estariam no espírito de
rapina dos soldados da independência, condicionados a saquear, possuir,
dominar. A ausência de pacto possível entre o colonizador e o índio
geraria a desconfiança constitutiva do mestiço, treinado para farejar
intenções e perseguir, suspeito, os rastros do não-dito por baixo das
frases.
Toda a interpretação de Martínez Estrada da história argentina deriva
desse diagnóstico. Rosas, o caudilho demonizado pela tradição liberal,
seria apenas um sistematizador da barbárie, enquanto os democratas se
divorciavam de todo o mundo real a sua volta para perseguir uma ideia
abstrata. Terminaram sendo eles os bárbaros, buscando ideais de justiça,
democracia e liberdade que não tinham qualquer solo comum ou
possibilidade de diálogo com a realidade existente. A nossa barbárie,
diz Martínez Estrada, foi sempre fomentada pelos sonhadores de
grandezas.
Algumas das principais inspirações de Radiografia do Pampa—especialmente O Declínio do Ocidente, de Spengler—já não exercem a mesma influência de antes. Outras, como Totem e Tabu,
de Freud, continuam sendo lidas e estudadas numa série de disciplinas. A
retórica pessimista de Martínez Estrada pode soar anacrônica, mas
resistem muitas de suas teses como, por exemplo, sobre o caráter
hipertrofiado do Estado, construído a partir da ausência de lastro na
realidade.
Para uma visualização parcial de Radiografia do Pampa, clique aqui. Para uma breve entrevista com o autor, clique aqui. Para ler na íntegra e no original Diferenças e semelhanças entre os países da América Latina, escrito já na época da aproximação do autor com a Revolução Cubana, clique aqui.
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A Biblioteca Latino-Americana da revista Fórum é uma coleção de introduções às principais obras do pensamento de nossos vizinhos, um acervo de referência sobre os grandes clássicos latino-americanos. A cargo de Idelber Avelar, a Biblioteca incluirá breves resenhas, compreensíveis para o leitor não-especializado, de textos clássicos de historiografia, teoria política, literatura e outras áreas. Quando possível, ofereceremos também o link à própria obra e a outros estudos disponíveis sobre ela.
OS XERIFES DA LÍNGUA
POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE no Blog do Altino Machado
Os toques de clarim e o rufar dos tambores chamaram a Infantaria e a 7ª.
Cavalaria. O Exército colocou de prontidão os seus soldados armados até
os dentes: a tropa da Academia Brasileira de Letras (ABL), o batalhão
dos jornalistas, a brigada ligeira dos escritores, a legião de
políticos, o pelotão do Ministério Público e até algumas divisões
blindadas da Universidade. Todos eles irmanados na santa cruzada
lançaram o grito de guerra que ecoou pelos campos, vilas e cidades do
Brasil, ameaçando o inimigo:
- Oh, vós, que desejais assassinar o idioma. Liquidar-vos-emos. Avante!.
O inimigo é o livro “Por uma vida melhor” da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC, que é apenas a ponta do iceberg. Lá, a autora apresenta a diferença entre falar e escrever e reconhece que na fala existe muito mais variação do que na escrita. O jeito de falar muda bastante, de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. A mesma pessoa fala diferente se está em casa, na feira, no bar, no tribunal ou na igreja.
- Existem várias línguas faladas em português – já disse o escritor José Saramago, prêmio Nobel da literatura.
Nesse sentido, cada um de nós é “bilíngue” na própria língua. Uma dessas línguas é a chamada ‘norma culta’, a de maior prestígio em nossa sociedade, que é usada na sala de aula e está mais próxima da escrita formal. Outras são as variedades populares, regidas por uma diversidade de regras, mas que não chegam a prejudicar a intercompreensão.
Acontece que milhões de brasileirinhos chegam à escola, falando segundo as regras da variedade popular. Por isso, são ridicularizados e humilhados. Dessa forma, são levados a se envergonharem das variedades que a norma culta considera “erradas”, e não se apropriam, nessas condições adversas, da outra variedade considerada “certa”. São reprimidos. Sua fala fica excluída dos espaços públicos, comprometendo o exercício da cidadania.
Esse fato demonstra a incapacidade do Estado, que não encontrou ainda o caminho para permitir que todos os alunos transitem pela norma culta. A autora defende, então, que a alternativa é admitir que a variedade popular existe, tem suas regras e é legítima. As duas normas não se excluem, mas se complementam. O respeito ao jeito de falar do aluno cria um ambiente acolhedor e propício à aprendizagem da norma culta. Só isso.
Mas tal proposta foi suficiente para que os xerifes da língua, que combatem a diversidade, disparassem suas armas alegando, alguns deles, que o MEC quer instituir o “lulês” como idioma oficial. Distorceram – ou no mínimo não compreenderam (será que leram?) - o que está escrito no livro. Eles acham que quem defende o respeito à norma popular quer impô-la ao conjunto da sociedade, como eles o fazem com a norma culta. Por isso, chamam a 7ª. Cavalaria.
As cavalgaduras
A cavalaria veio. Na linha de frente, cavalgando um pangaré manco – tololoc, tololoc - o centurião José Sarney (PMDB, vixe-vixe!), membro da ABL, ex-presidente da República e presidente do Senado. No artigo ‘Fale errado, está certo’ na Folha de SP – com a espada em riste, ele faz aquilo que fez ao longo de sua vida: atribui aos outros seus próprios defeitos. Escreve que o livro em questão pretende “oficializar a burrice”, que “o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente”, quando é justamente o contrário, e que “defender a língua é defender a pátria”.
Sarney, defensor da pátria? Quaquaraquaquá! O que é ‘a língua’ e o que é ‘a pátria’ para ele? Em sua ‘pátria’ não cabem os deserdados, apenas os beneficiados pelo nepotismo. Já a ‘língua’ que defende não é um sistema variado, dinâmico e rico, mas se reduz à norma culta, que ele congela. Elimina as demais variedades, proclamando que apenas uma variedade é o português, embora nas conversas telefônicas com sua neta, que ouvimos gravadas e reproduzidas pelos telejornais, a norma usada para contratar o namorado dela, mais coloquial, não foi bem a que ele defende.
Da mesma forma, Sarney, o vixe-vixe, protesta com indignação contra a anarquia:
- Voltemos ao sistema tribal: cada um fala como quer”.
Imagina! Que país é esse onde cada um fala como quer e não como os sarneys da vida pretendem impor! Sarney, que passou a vida confundindo a coisa pública com a privada, sobretudo no que se refere à grana, quer privatizar também a língua. Acha que ela é sua e dos seus. Não reconhece que se trata de produção coletiva. Nem sequer suspeita que existam regras no falar popular. Exige que a norma culta seja o padrão de correção de todas as demais variedades, confirmando o que escreveu Roland Barthes:
- A língua não é fascista quando impede de dizer, mas quando obriga a dizer de uma determinada forma.
Cavalgando um burro alazão – tololoc, tololoc – o presidente da ABL Marcos Villaça também atacou o livro. Reduziu a riqueza do idioma a uma reles operação aritmética, com uma visão primária da matemática, dizendo que admitir outras formas de falar “é como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia ou no palácio”.
A mesma imagem foi usada por sua colega, a escritora Ana Maria Machado, que esqueceu o que ensinou quando foi minha professora de Comunicação Fabular e Icônica na UFRJ. Ela reforça essa comparação infeliz: “Equivale a aceitar que dois mais dois possam ser cinco, com a boa intenção de derrubar preconceitos aritméticos”. Trata-se de uma falácia, porque ninguém está reivindicando que 2+2=5, mas a possibilidade de ser 1+1+1+1 ou 3+1 e até 2+2=5-1 e assim por diante, já que o quatro contém o infinito.
Mas quem se superou mesmo em bobagens foi o jornalista Merval Pereira - um projetinho de Sarney - que veio cavalgando uma besta de sela desembestada: tololoc, tololoc. Em sua coluna no Globo concluiu que se o português popular é legitimo, então ele deveria “ser ensinado nas escolas e faculdades”, como se fosse preciso ensinar o que já se sabe. Merval condenou ainda o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo MEC: “Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”.
Os criminosos
Ops! Vocês ouviram o que eu ouvi? Ato criminoso? Pois é. Parece que os xerifes do idioma querem criminalizar a desobediência às regras da norma culta, reproduzindo o que aconteceu na Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia (1832-1840). Bilhetes escritos pelos cabanos, anexados aos processos criminais, foram exibidos nos tribunais durante o julgamento como “prova de seus instintos criminosos”. Um deles assinado por Antônio Faustino, um cabano com a patente de major, diz:
“Axome çem monisão que muntas vezis teno pidido. Çe uver cunfelito aqi não çei o qe soçederá. Estarei em pouçilitado de zequtar qalqer prugetu. Halguns camaradas já çairão daqi pur farta de cumer”. Pontu da Barra, 3 de otobro de 1835. Antonho Fostino, manjor de artilharia.
O outro, que também se encontra no Arquivo Público do Pará, “com uma caligrafia feita de garranchos”, é de um chefe cabano que adverte o presidente da Província:
“…E se V. Exa. Responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e outros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.
Um terceiro documento, escrito pelo tenente-comandante de Soure, é um ofício dirigido ao cabano Eduardo Angelim, que ocupou o cargo de presidente da Província:
“Rogo a V. Exa. Nois quera há-remidiar com algun çal e mesmo harmamentu que estamos mointos faltos deles. O mais V. Exa. verá no Pidido jontu q. faz obegeto tãoben desti ufisio. Deos guarde V. Exa. pur moitos anus. Soure, 13 de Dezembru de 1835”.
Que Deus guarde a ABL, Sarney e Merval pelo período de tempo acima indicado, bem como proteja políticos como o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), para quem o livro adotado pelo MEC “está transformando a ortografia em pornografia gramatical” e até o senador Cristovão Buarque (PDT), ex-reitor da UnB e ex-ministro da Educação, que declarou sobre o livro em questão:
- Claro que o livro deseduca e, pior, mantém o apartheid linguístico. Manter o português errado é um crime, é manter a desigualdade.
Crime? Desigualdade? Segundo Boaventura de Souza Santos, devemos “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”. Não se trata, evidentemente, de adotar as normas dos cabanos, mas de recusar sua criminalização.
A professora Heloisa, que fez um trabalho cuidadoso, está sendo tratada como “criminosa” segundo algumas divisões blindadas da própria Universidade que também entraram em ação. Cláudio Moreno, doutor em Letras, ameaçou no jornal Zero Hora de Porto Alegre:
- O livro tem que ser proibido e as pessoas devem ser punidas.
Não disse que tipo de punição considera mais adequada. Acionado, o pelotão do Ministério Público partiu para o ataque. A procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, cavalgando um jegue – tololoc, tololoc - considerou o livro citado como “um crime contra nossos jovens”, ganhando manchete de página no Globo. “Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público”, avisou a procuradora.
O historiador peruano Pablo Macera comenta que se o Império Romano conseguisse proibir o latim vulgar, como querem agora os xerifes da língua, nós não estaríamos hoje falando espanhol, português, francês, italiano, romeno, catalão – todas elas variantes “erradas” do latim clássico, conhecidas como línguas vulgares na Idade Média.
A troca de ‘l’ em ‘r’, que costuma ser considerada como “atraso mental”, quando alguém fala “pobrema”, “craro” ou “pranta” é um fenômeno fonético presente na formação da língua portuguesa, como esclarece Marcos Bagno. Palavras latinas como “blandu, clavu, flacu, sclavu, obligare” mantiveram o “l” no espanhol, no francês e no italiano, mas ficaram consagrados na norma culta da língua portuguesa com o “r”: “brando, cravo, fraco, escravo, obrigar”, etc.
Os xerifes querem continuar hegemônicos na formulação da política de línguas, autoritária e intolerante. Para isso, manipulam a opinião pública, ignorando a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, aprovada em 1996 em Barcelona, num evento realizado com o apoio da Unesco, recomendando que “os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem” e que as diferenças linguísticas sejam respeitadas.
P.S.: Agradeço os colegas do COMIN e da EST, de São Leopoldo (RS), e os colegas da lista Uerj XXI, com quem pude trocar ideias sobre essa questão. Eles não têm, no entanto, qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pela forma desse texto.
O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
- Oh, vós, que desejais assassinar o idioma. Liquidar-vos-emos. Avante!.
O inimigo é o livro “Por uma vida melhor” da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC, que é apenas a ponta do iceberg. Lá, a autora apresenta a diferença entre falar e escrever e reconhece que na fala existe muito mais variação do que na escrita. O jeito de falar muda bastante, de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. A mesma pessoa fala diferente se está em casa, na feira, no bar, no tribunal ou na igreja.
- Existem várias línguas faladas em português – já disse o escritor José Saramago, prêmio Nobel da literatura.
Nesse sentido, cada um de nós é “bilíngue” na própria língua. Uma dessas línguas é a chamada ‘norma culta’, a de maior prestígio em nossa sociedade, que é usada na sala de aula e está mais próxima da escrita formal. Outras são as variedades populares, regidas por uma diversidade de regras, mas que não chegam a prejudicar a intercompreensão.
Acontece que milhões de brasileirinhos chegam à escola, falando segundo as regras da variedade popular. Por isso, são ridicularizados e humilhados. Dessa forma, são levados a se envergonharem das variedades que a norma culta considera “erradas”, e não se apropriam, nessas condições adversas, da outra variedade considerada “certa”. São reprimidos. Sua fala fica excluída dos espaços públicos, comprometendo o exercício da cidadania.
Esse fato demonstra a incapacidade do Estado, que não encontrou ainda o caminho para permitir que todos os alunos transitem pela norma culta. A autora defende, então, que a alternativa é admitir que a variedade popular existe, tem suas regras e é legítima. As duas normas não se excluem, mas se complementam. O respeito ao jeito de falar do aluno cria um ambiente acolhedor e propício à aprendizagem da norma culta. Só isso.
Mas tal proposta foi suficiente para que os xerifes da língua, que combatem a diversidade, disparassem suas armas alegando, alguns deles, que o MEC quer instituir o “lulês” como idioma oficial. Distorceram – ou no mínimo não compreenderam (será que leram?) - o que está escrito no livro. Eles acham que quem defende o respeito à norma popular quer impô-la ao conjunto da sociedade, como eles o fazem com a norma culta. Por isso, chamam a 7ª. Cavalaria.
As cavalgaduras
A cavalaria veio. Na linha de frente, cavalgando um pangaré manco – tololoc, tololoc - o centurião José Sarney (PMDB, vixe-vixe!), membro da ABL, ex-presidente da República e presidente do Senado. No artigo ‘Fale errado, está certo’ na Folha de SP – com a espada em riste, ele faz aquilo que fez ao longo de sua vida: atribui aos outros seus próprios defeitos. Escreve que o livro em questão pretende “oficializar a burrice”, que “o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente”, quando é justamente o contrário, e que “defender a língua é defender a pátria”.
Sarney, defensor da pátria? Quaquaraquaquá! O que é ‘a língua’ e o que é ‘a pátria’ para ele? Em sua ‘pátria’ não cabem os deserdados, apenas os beneficiados pelo nepotismo. Já a ‘língua’ que defende não é um sistema variado, dinâmico e rico, mas se reduz à norma culta, que ele congela. Elimina as demais variedades, proclamando que apenas uma variedade é o português, embora nas conversas telefônicas com sua neta, que ouvimos gravadas e reproduzidas pelos telejornais, a norma usada para contratar o namorado dela, mais coloquial, não foi bem a que ele defende.
Da mesma forma, Sarney, o vixe-vixe, protesta com indignação contra a anarquia:
- Voltemos ao sistema tribal: cada um fala como quer”.
Imagina! Que país é esse onde cada um fala como quer e não como os sarneys da vida pretendem impor! Sarney, que passou a vida confundindo a coisa pública com a privada, sobretudo no que se refere à grana, quer privatizar também a língua. Acha que ela é sua e dos seus. Não reconhece que se trata de produção coletiva. Nem sequer suspeita que existam regras no falar popular. Exige que a norma culta seja o padrão de correção de todas as demais variedades, confirmando o que escreveu Roland Barthes:
- A língua não é fascista quando impede de dizer, mas quando obriga a dizer de uma determinada forma.
Cavalgando um burro alazão – tololoc, tololoc – o presidente da ABL Marcos Villaça também atacou o livro. Reduziu a riqueza do idioma a uma reles operação aritmética, com uma visão primária da matemática, dizendo que admitir outras formas de falar “é como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia ou no palácio”.
A mesma imagem foi usada por sua colega, a escritora Ana Maria Machado, que esqueceu o que ensinou quando foi minha professora de Comunicação Fabular e Icônica na UFRJ. Ela reforça essa comparação infeliz: “Equivale a aceitar que dois mais dois possam ser cinco, com a boa intenção de derrubar preconceitos aritméticos”. Trata-se de uma falácia, porque ninguém está reivindicando que 2+2=5, mas a possibilidade de ser 1+1+1+1 ou 3+1 e até 2+2=5-1 e assim por diante, já que o quatro contém o infinito.
Mas quem se superou mesmo em bobagens foi o jornalista Merval Pereira - um projetinho de Sarney - que veio cavalgando uma besta de sela desembestada: tololoc, tololoc. Em sua coluna no Globo concluiu que se o português popular é legitimo, então ele deveria “ser ensinado nas escolas e faculdades”, como se fosse preciso ensinar o que já se sabe. Merval condenou ainda o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo MEC: “Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”.
Os criminosos
Ops! Vocês ouviram o que eu ouvi? Ato criminoso? Pois é. Parece que os xerifes do idioma querem criminalizar a desobediência às regras da norma culta, reproduzindo o que aconteceu na Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia (1832-1840). Bilhetes escritos pelos cabanos, anexados aos processos criminais, foram exibidos nos tribunais durante o julgamento como “prova de seus instintos criminosos”. Um deles assinado por Antônio Faustino, um cabano com a patente de major, diz:
“Axome çem monisão que muntas vezis teno pidido. Çe uver cunfelito aqi não çei o qe soçederá. Estarei em pouçilitado de zequtar qalqer prugetu. Halguns camaradas já çairão daqi pur farta de cumer”. Pontu da Barra, 3 de otobro de 1835. Antonho Fostino, manjor de artilharia.
O outro, que também se encontra no Arquivo Público do Pará, “com uma caligrafia feita de garranchos”, é de um chefe cabano que adverte o presidente da Província:
“…E se V. Exa. Responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e outros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.
Um terceiro documento, escrito pelo tenente-comandante de Soure, é um ofício dirigido ao cabano Eduardo Angelim, que ocupou o cargo de presidente da Província:
“Rogo a V. Exa. Nois quera há-remidiar com algun çal e mesmo harmamentu que estamos mointos faltos deles. O mais V. Exa. verá no Pidido jontu q. faz obegeto tãoben desti ufisio. Deos guarde V. Exa. pur moitos anus. Soure, 13 de Dezembru de 1835”.
Que Deus guarde a ABL, Sarney e Merval pelo período de tempo acima indicado, bem como proteja políticos como o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), para quem o livro adotado pelo MEC “está transformando a ortografia em pornografia gramatical” e até o senador Cristovão Buarque (PDT), ex-reitor da UnB e ex-ministro da Educação, que declarou sobre o livro em questão:
- Claro que o livro deseduca e, pior, mantém o apartheid linguístico. Manter o português errado é um crime, é manter a desigualdade.
Crime? Desigualdade? Segundo Boaventura de Souza Santos, devemos “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”. Não se trata, evidentemente, de adotar as normas dos cabanos, mas de recusar sua criminalização.
A professora Heloisa, que fez um trabalho cuidadoso, está sendo tratada como “criminosa” segundo algumas divisões blindadas da própria Universidade que também entraram em ação. Cláudio Moreno, doutor em Letras, ameaçou no jornal Zero Hora de Porto Alegre:
- O livro tem que ser proibido e as pessoas devem ser punidas.
Não disse que tipo de punição considera mais adequada. Acionado, o pelotão do Ministério Público partiu para o ataque. A procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, cavalgando um jegue – tololoc, tololoc - considerou o livro citado como “um crime contra nossos jovens”, ganhando manchete de página no Globo. “Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público”, avisou a procuradora.
O historiador peruano Pablo Macera comenta que se o Império Romano conseguisse proibir o latim vulgar, como querem agora os xerifes da língua, nós não estaríamos hoje falando espanhol, português, francês, italiano, romeno, catalão – todas elas variantes “erradas” do latim clássico, conhecidas como línguas vulgares na Idade Média.
A troca de ‘l’ em ‘r’, que costuma ser considerada como “atraso mental”, quando alguém fala “pobrema”, “craro” ou “pranta” é um fenômeno fonético presente na formação da língua portuguesa, como esclarece Marcos Bagno. Palavras latinas como “blandu, clavu, flacu, sclavu, obligare” mantiveram o “l” no espanhol, no francês e no italiano, mas ficaram consagrados na norma culta da língua portuguesa com o “r”: “brando, cravo, fraco, escravo, obrigar”, etc.
Os xerifes querem continuar hegemônicos na formulação da política de línguas, autoritária e intolerante. Para isso, manipulam a opinião pública, ignorando a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, aprovada em 1996 em Barcelona, num evento realizado com o apoio da Unesco, recomendando que “os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem” e que as diferenças linguísticas sejam respeitadas.
P.S.: Agradeço os colegas do COMIN e da EST, de São Leopoldo (RS), e os colegas da lista Uerj XXI, com quem pude trocar ideias sobre essa questão. Eles não têm, no entanto, qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pela forma desse texto.
O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
"O cerrado é alvo do avanço da monocultura", afirma dom Tomás
Aos
88 anos, o bispo emérito de Goiás, dom Tomás Balduíno, mora no Convento
dos Dominicanos São Judas Tadeu, em Goiânia, mas viaja pelo mundo a
convite de organizações para palestras sobre latifúndio, monocultura e
água. Cofundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), da qual foi presidente, ele defende
uma sociedade mais equilibrada, sem tamanha sede de consumo e conforto a
todo custo. Bem-humorado, manteve sua postura crítica durante as quase
duas horas de entrevista. Confira os principais trechos.
Superamos
um estado de repressão, de desaparecimento, de matança. Eles não
brincavam em serviço. Mas o golpe foi dado prioritariamente para quebrar
a espinha dorsal das organizações camponesas, porque eles achavam que
elas eram a porta de entrada do comunismo internacional. Não sei se os
militares faziam isso (por conta própria) ou se eram orientados pelos
Estados Unidos. Eles generalizavam porque eram partidos de esquerda que
organizavam os trabalhadores. Foi por isso que nasceu a CPT: havia
repressão aos trabalhadores rurais e aos indígenas. Então a Igreja
entrou em cena. O MST nasceu nesse tempo, embaixo do guarda-chuva das
igrejas ligadas às Comunidades Eclesiais de Base, e cresceu com a
abertura lenta e gradual. Assim como as organizações indígenas, que
cresceram muito. Hoje há muitas organizações, autônomas. E isso é que é
bonito: a Igreja com a opção pelos pobres. A gente não discutia com
eles, apoiava.
Os
povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhos e
seringueiros têm outro relacionamento com a terra, com as águas. Por
isso não são levados em consideração pelas políticas, já que o governo
se relaciona com a terra do ponto de vista da produção, do agronegócio. O
cerrado, escolhido para o avanço da monocultura, foi tomado primeiro
pela soja e está sendo dominado pela cana para o etanol e pelo eucalipto
para a celulose, entre outras culturas. Isso preocupa muito porque,
embora seja de grande importância para o equilíbrio ecológico do país e
da América Latina, é um bioma desvalorizado pelo capital, tratado como
área de exploração. Suas plantas funcionam como reservatórios de água do
nosso país. Se o cerrado for arrasado pela monocultura, haverá
desequilíbrio.
Porque
o terreno em geral é plano, com vegetação frágil, tortuosa, pequena,
não dificulta o trabalho das máquinas. O que não acontece na floresta,
onde é mais complicado desmatar em pouco tempo para fazer campos de
monocultura até perder de vista. O desmatamento do cerrado prejudica o
sistema freático. A rama, a copa das plantas, tem o correspondente em
raiz – que funciona como uma esponja, uma caixa d’água, alimentando o
freático e a planta durante a estiagem. Se arrancá-la, o circuito da
água deixa de ser vertical, em direção ao freático, e torna-se
horizontal, causando erosão, assoreamento de córregos e rios.
Há
várias alternativas à destruição da vegetação nativa que vão em direção
oposta à chamada revolução verde (o plantio de eucaliptos em grandes
extensões). Aparentemente são bonitas as grandes extensões verdes, que
produzem o suficiente para alimentar o mundo, não é? Mas isso é um
engano. A revolução verde foi pensada para substituir aquilo que existia
antes, onde entra o trator que corrige a terra, aduba, põe calcário,
semente, tudo de uma forma mecânica, pesada. Embora a cobertura seja
verde, é na verdade um deserto verde. Esse modelo destrói o meio
ambiente, acaba com as nascentes, leva à seca. Na Bacia do São
Francisco, onde há plantação de eucalipto, ficaram secas 1.500 pequenas
vertentes que fluíam para o São Francisco.
Há
mil justificativas para a manutenção desse modelo que destrói o bioma
em troca de dinheiro, divisas. Mas não se buscam alternativas técnicas.
Nós temos em Goiás, Tocantins, Bahia, Minas, grupos extrativistas
organizados, que convivem com o cerrado sem destruí-lo. São todos
desconsiderados. O que realmente interessa ao governo, bem como aos
anteriores, é o agronegócio que passa por cima das pequenas propriedades
mas não mata a fome, porque seu objetivo não é distribuir, mas
concentrar, sobretudo o lucro. Está comprovado que 70% do alimento
consumido no país vem dos pequenos produtores.
Com
a energia é a mesma coisa. Insiste-se no mesmo modelo, seja de usina
hidrelétrica, seja de nuclear. Ficam de lado outras possibilidades, como
a energia solar, que alimenta diversas cidades na Alemanha. O excedente
das casas vai para as redes de distribuição. É claro que isso requer
pesquisas, abertura ao entendimento e resistência às pressões do
mercado. Às vezes, o governo segue uma linha predatória, prejudicial aos
povos indígenas, por exemplo, porque sofre pressão fortíssima de
conglomerados econômicos nacionais e internacionais. Por que tem de
prevalecer a lógica da superprodução?
O
índio se relaciona com a mãe terra de maneira harmoniosa, mística,
afetiva. Não é transformada violentamente, depredada, arrasada,
destruída em nome da produção, do ter cada vez mais. O povo da terra do
semiárido também tem consciência do valor e da riqueza da caatinga, em
oposição ao capital. Durante muito tempo, prevalecia a proposta dos
versos de Luiz Gonzaga, de ir embora dali. Agora eles estão descobrindo
que o semiárido tem água, um total de 37 bilhões de metros cúbicos.
Segundo
técnicos, isso prova o equívoco da transposição do São Francisco, um
investimento caríssimo para levar água ao Nordeste. Mas lá não falta
água, e sim política governamental para distribuir essa água que está
concentrada. Uma vez distribuída, alimenta tudo. Com a transposição do
São Francisco, vão ser levados 3 bilhões de metros cúbicos para uma
região que tem 37 bilhões. Se com 37 bilhões não se resolve o problema
da seca, como é que 3 bilhões vão resolver?
Um
desenvolvimento “de ponta”, né? Bem no momento em que o mundo começa a
repensar esse modelo nuclear para a produção de energia. O Japão, por
exemplo, que na conferência do clima em Cancún lutou para anular o
Tratado de Kyoto e não ter de reduzir as emissões de poluentes nem o
lucro, tem um modelo mundialmente questionado. Suas usinas não
resistiram aos terremotos, têm vazamentos e passaram a ser uma ameaça à
população. Independentemente de estar no Nordeste, no Centro-Oeste,
Sudeste ou Japão, é o modelo que está sendo questionado pelos melhores
técnicos, por todos aqueles que eram a favor e agora são contra. É o
feitiço que se volta contra o feiticeiro. Acredito que brevemente toda a
humanidade estará esclarecida e terá uma consciência contrária a
respeito. Por enquanto são grupos mais seletos, cientistas que começam a
repensar a coisa. A consciência ecológica, aliás, é um ganho para a
humanidade, um avanço como a conquista da igualdade dos direitos da
mulher, que custou séculos para chegar a esse ponto e deve ser
aprimorada, mas é uma conquista.
Isso
mesmo. É necessário tudo isso que se busca? O conforto dos Estados
Unidos pode ser aplicado a uma população de 6 bilhões, mas a terra é
insuficiente, e isso mostra que tem algo errado aí. Como pensar num
mundo e numa humanidade equilibrados e sustentáveis? Produzindo de
acordo com a necessidade. Uma coisa é a necessidade em que todos
participem. Outra, é atender a um modelo superpredador de determinados
países do Primeiro Mundo. Então, volto à pergunta anterior. Não seria a
hora de questionar o modelo vigente e dar a palavra à população
camponesa, ao indígena?
O
Vaticano está muito longe. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), à qual pertence a CPT, é um organismo suficiente para resolver o
problema pastoral, eclesial. A CPT nasceu assim, da Igreja, e não para a
Igreja, a serviço do trabalhador do campo. Como o bom samaritano que se
dá para levantar o caído, dando a ele autonomia para se erguer e um dia
levantar outro caído, tratando-o como sujeito, e não objeto da nossa
ação caritativa. A Pastoral Indigenista segue o mesmo princípio, de dar
todo o auxílio a uma população que sofre repressão, vive em conflito com
o roubo da terra e a expulsão do campo pelas autoridades armadas para
deixar o terreno livre para a monocultura do grande capital. A terra
pode ser de japonês, americano, alemão, desde que seja do capital. Não
pode ser dos índios, dos lavradores, senão vem a polícia e despeja. São
milhares de ações de despejo no nosso Judiciário contra quem ocupa a
terra há vários anos de forma pacífica.
Entre
1985 e 1996, a CPT fez um levantamento sobre os assassinatos no campo
por disputa pela terra. São assassinatos encomendados pelo latifúndio.
Raramente aparece o mandante. Há o pistoleiro que é contratado, faz o
serviço e recebe. Nesses 11 anos do estudo, foram constatados cerca de
mil assassinatos, dos quais só 70 viraram processos levados ao tribunal e
apenas 14 tiveram os pistoleiros condenados. Dos mandantes, só sete
foram condenados e cinco fugiram. Os pistoleiros que escaparam na certa
voltaram a matar. É o quadro da impunidade.
Eu
participei de uma sessão do Supremo Tribunal Federal em que se julgava a
possibilidade de federalizar os crimes contra os direitos humanos. Era
justamente na época do assassinato da Dorothy. Como envolvia vítima
internacional, norte-americana, o estado do Pará agilizou o processo,
que está praticamente concluído. Muito boa a Justiça naquele caso. E nos
demais? E naqueles em que o assassinado não é norte-americano ou
alemão? Isso tem favorecido a manutenção do crime, o que interessa aos
grandes fazendeiros, a muitos detentores do poder, juízes,
latifundiários e parlamentares. E, por falar em parlamentar, a proposta
de confisco da terra onde há trabalho escravo, para fins de reforma
agrária, não caminha. Acho que com esse time que está aí, de
congressistas latifundiários, uma bancada ruralista fortíssima e
numerosa, jamais será aprovada.
É
um desastre, um absurdo diminuir a já pequena cobertura vegetal em
torno dos mananciais, facilitar a devastação da floresta e não oferecer
nenhuma proteção ao meio ambiente. A gente sabe que nem todas as pessoas
no Congresso concordam com isso. Pena que sejam minoria.
É
muito positivo, mas não deixa de ser um continuísmo, um tempo de
inverno para o movimento de reforma agrária. E, com o avanço do
agronegócio, pior ainda. Do ponto de vista do homem da terra, ainda há
retrocesso. Durante a campanha, ela nada falou sobre reforma agrária, o
que pode ser significativo. Embora tapeasse e protelasse, dizendo que ia
cumprir as promessas de campanha, Lula dialogava e não reprimia, ao
contrário de FHC.
Em
compensação, durante os anos FHC os movimentos se fortaleceram, com
todo o grande capital por trás. É que, conhecendo o adversário, isso
fica mais fácil. Tanto que a oposição ao governo tucano foi feita mais
pelos movimentos do que pelo PT. Mais do que enrolar, Lula traiu o
compromisso de fazer a reforma agrária, que acabou ficando por conta dos
movimentos via ocupações e pressões das bases, e não do Incra, cada vez
mais sucateado.
O
transgênico é sério porque atinge a semente, e ela é a força do
lavrador. Em vez de manipular sua semente para plantar, ele tem de ir ao
mercado e pagar (por ela). O pessoal diz que tudo o que é transgênico é
duvidoso, não se tem segurança. Mas nós, da área rural do CPT e os
trabalhadores rurais, consideramos que o principal veneno é o fato de a
semente ser subtraída. Aquilo que é vital para o trabalhador, e é
milenar, ser levado ao monopólio. O trabalhador tem de ter o domínio da
semente e da terra.
Várias
vezes. E tive medo não por mim, mas por outros padres, sacerdotes.
Ninguém vinha direto a mim, mas estimulavam gente maluca. Eu soube de
vários planos de morte, como uma emboscada numa festa em que iria, numa
paróquia, mas fui ao sepultamento do padre Rodolfo e do índio Simão,
assassinados por fazendeiros. Toda noite rezo para o padre Rodolfo, que
me salvou de uma emboscada. Soube também que na ditadura fui vigiado
durante todo o tempo. Pior é quando é pistoleiro, como aquele que atirou
no padre Chicão, um defensor dos sem-terra, que levou tiro de
cartucheira no rosto e ficou cego dos dois olhos. Sei que aquele tiro
era para mim. Mas é complicado matar um bispo. Escapei, e agradeço ao Chicão.
Elementos para a reconstrução do anticapitalismo revolucionário
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