A lógica da transformação
Aos
88 anos, o bispo emérito de Goiás, dom Tomás Balduíno, mora no Convento
dos Dominicanos São Judas Tadeu, em Goiânia, mas viaja pelo mundo a
convite de organizações para palestras sobre latifúndio, monocultura e
água. Cofundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), da qual foi presidente, ele defende
uma sociedade mais equilibrada, sem tamanha sede de consumo e conforto a
todo custo. Bem-humorado, manteve sua postura crítica durante as quase
duas horas de entrevista. Confira os principais trechos.
O que mudou no tratamento do homem do campo da ditadura até hoje?
Superamos
um estado de repressão, de desaparecimento, de matança. Eles não
brincavam em serviço. Mas o golpe foi dado prioritariamente para quebrar
a espinha dorsal das organizações camponesas, porque eles achavam que
elas eram a porta de entrada do comunismo internacional. Não sei se os
militares faziam isso (por conta própria) ou se eram orientados pelos
Estados Unidos. Eles generalizavam porque eram partidos de esquerda que
organizavam os trabalhadores. Foi por isso que nasceu a CPT: havia
repressão aos trabalhadores rurais e aos indígenas. Então a Igreja
entrou em cena. O MST nasceu nesse tempo, embaixo do guarda-chuva das
igrejas ligadas às Comunidades Eclesiais de Base, e cresceu com a
abertura lenta e gradual. Assim como as organizações indígenas, que
cresceram muito. Hoje há muitas organizações, autônomas. E isso é que é
bonito: a Igreja com a opção pelos pobres. A gente não discutia com
eles, apoiava.
Hoje
há mais de 300 conflitos envolvendo indígenas, trabalhadores rurais e
quilombolas. A questão da terra está longe de ser resolvida?
Os
povos indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhos e
seringueiros têm outro relacionamento com a terra, com as águas. Por
isso não são levados em consideração pelas políticas, já que o governo
se relaciona com a terra do ponto de vista da produção, do agronegócio. O
cerrado, escolhido para o avanço da monocultura, foi tomado primeiro
pela soja e está sendo dominado pela cana para o etanol e pelo eucalipto
para a celulose, entre outras culturas. Isso preocupa muito porque,
embora seja de grande importância para o equilíbrio ecológico do país e
da América Latina, é um bioma desvalorizado pelo capital, tratado como
área de exploração. Suas plantas funcionam como reservatórios de água do
nosso país. Se o cerrado for arrasado pela monocultura, haverá
desequilíbrio.
Qual a razão desse interesse no cerrado?
Porque
o terreno em geral é plano, com vegetação frágil, tortuosa, pequena,
não dificulta o trabalho das máquinas. O que não acontece na floresta,
onde é mais complicado desmatar em pouco tempo para fazer campos de
monocultura até perder de vista. O desmatamento do cerrado prejudica o
sistema freático. A rama, a copa das plantas, tem o correspondente em
raiz – que funciona como uma esponja, uma caixa d’água, alimentando o
freático e a planta durante a estiagem. Se arrancá-la, o circuito da
água deixa de ser vertical, em direção ao freático, e torna-se
horizontal, causando erosão, assoreamento de córregos e rios.
Mas há alternativas que garantam maior produção em menor área plantada?
Há
várias alternativas à destruição da vegetação nativa que vão em direção
oposta à chamada revolução verde (o plantio de eucaliptos em grandes
extensões). Aparentemente são bonitas as grandes extensões verdes, que
produzem o suficiente para alimentar o mundo, não é? Mas isso é um
engano. A revolução verde foi pensada para substituir aquilo que existia
antes, onde entra o trator que corrige a terra, aduba, põe calcário,
semente, tudo de uma forma mecânica, pesada. Embora a cobertura seja
verde, é na verdade um deserto verde. Esse modelo destrói o meio
ambiente, acaba com as nascentes, leva à seca. Na Bacia do São
Francisco, onde há plantação de eucalipto, ficaram secas 1.500 pequenas
vertentes que fluíam para o São Francisco.
Há quem defenda que monoculturas como a do eucalipto só ocasionam problemas quando não há manejo correto.
Há
mil justificativas para a manutenção desse modelo que destrói o bioma
em troca de dinheiro, divisas. Mas não se buscam alternativas técnicas.
Nós temos em Goiás, Tocantins, Bahia, Minas, grupos extrativistas
organizados, que convivem com o cerrado sem destruí-lo. São todos
desconsiderados. O que realmente interessa ao governo, bem como aos
anteriores, é o agronegócio que passa por cima das pequenas propriedades
mas não mata a fome, porque seu objetivo não é distribuir, mas
concentrar, sobretudo o lucro. Está comprovado que 70% do alimento
consumido no país vem dos pequenos produtores.
E quanto à energia?
Com
a energia é a mesma coisa. Insiste-se no mesmo modelo, seja de usina
hidrelétrica, seja de nuclear. Ficam de lado outras possibilidades, como
a energia solar, que alimenta diversas cidades na Alemanha. O excedente
das casas vai para as redes de distribuição. É claro que isso requer
pesquisas, abertura ao entendimento e resistência às pressões do
mercado. Às vezes, o governo segue uma linha predatória, prejudicial aos
povos indígenas, por exemplo, porque sofre pressão fortíssima de
conglomerados econômicos nacionais e internacionais. Por que tem de
prevalecer a lógica da superprodução?
O
índio se relaciona com a mãe terra de maneira harmoniosa, mística,
afetiva. Não é transformada violentamente, depredada, arrasada,
destruída em nome da produção, do ter cada vez mais. O povo da terra do
semiárido também tem consciência do valor e da riqueza da caatinga, em
oposição ao capital. Durante muito tempo, prevalecia a proposta dos
versos de Luiz Gonzaga, de ir embora dali. Agora eles estão descobrindo
que o semiárido tem água, um total de 37 bilhões de metros cúbicos.
Segundo
técnicos, isso prova o equívoco da transposição do São Francisco, um
investimento caríssimo para levar água ao Nordeste. Mas lá não falta
água, e sim política governamental para distribuir essa água que está
concentrada. Uma vez distribuída, alimenta tudo. Com a transposição do
São Francisco, vão ser levados 3 bilhões de metros cúbicos para uma
região que tem 37 bilhões. Se com 37 bilhões não se resolve o problema
da seca, como é que 3 bilhões vão resolver?
Os acidentes nucleares no Japão põem em xeque os projetos de construção de usinas atômicas como os previstos no Nordeste?
Um
desenvolvimento “de ponta”, né? Bem no momento em que o mundo começa a
repensar esse modelo nuclear para a produção de energia. O Japão, por
exemplo, que na conferência do clima em Cancún lutou para anular o
Tratado de Kyoto e não ter de reduzir as emissões de poluentes nem o
lucro, tem um modelo mundialmente questionado. Suas usinas não
resistiram aos terremotos, têm vazamentos e passaram a ser uma ameaça à
população. Independentemente de estar no Nordeste, no Centro-Oeste,
Sudeste ou Japão, é o modelo que está sendo questionado pelos melhores
técnicos, por todos aqueles que eram a favor e agora são contra. É o
feitiço que se volta contra o feiticeiro. Acredito que brevemente toda a
humanidade estará esclarecida e terá uma consciência contrária a
respeito. Por enquanto são grupos mais seletos, cientistas que começam a
repensar a coisa. A consciência ecológica, aliás, é um ganho para a
humanidade, um avanço como a conquista da igualdade dos direitos da
mulher, que custou séculos para chegar a esse ponto e deve ser
aprimorada, mas é uma conquista.
Dom Tomás 2 - Pablo de Regino
Qual é o modelo que o senhor defende? Menos produção, consumo e conforto?
Isso
mesmo. É necessário tudo isso que se busca? O conforto dos Estados
Unidos pode ser aplicado a uma população de 6 bilhões, mas a terra é
insuficiente, e isso mostra que tem algo errado aí. Como pensar num
mundo e numa humanidade equilibrados e sustentáveis? Produzindo de
acordo com a necessidade. Uma coisa é a necessidade em que todos
participem. Outra, é atender a um modelo superpredador de determinados
países do Primeiro Mundo. Então, volto à pergunta anterior. Não seria a
hora de questionar o modelo vigente e dar a palavra à população
camponesa, ao indígena?
A CPT conta com apoio do Vaticano?
O
Vaticano está muito longe. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), à qual pertence a CPT, é um organismo suficiente para resolver o
problema pastoral, eclesial. A CPT nasceu assim, da Igreja, e não para a
Igreja, a serviço do trabalhador do campo. Como o bom samaritano que se
dá para levantar o caído, dando a ele autonomia para se erguer e um dia
levantar outro caído, tratando-o como sujeito, e não objeto da nossa
ação caritativa. A Pastoral Indigenista segue o mesmo princípio, de dar
todo o auxílio a uma população que sofre repressão, vive em conflito com
o roubo da terra e a expulsão do campo pelas autoridades armadas para
deixar o terreno livre para a monocultura do grande capital. A terra
pode ser de japonês, americano, alemão, desde que seja do capital. Não
pode ser dos índios, dos lavradores, senão vem a polícia e despeja. São
milhares de ações de despejo no nosso Judiciário contra quem ocupa a
terra há vários anos de forma pacífica.
Como o senhor avalia a impunidade no campo? Dorothy Stang, Corumbiara, Eldorado dos Carajás...
Entre
1985 e 1996, a CPT fez um levantamento sobre os assassinatos no campo
por disputa pela terra. São assassinatos encomendados pelo latifúndio.
Raramente aparece o mandante. Há o pistoleiro que é contratado, faz o
serviço e recebe. Nesses 11 anos do estudo, foram constatados cerca de
mil assassinatos, dos quais só 70 viraram processos levados ao tribunal e
apenas 14 tiveram os pistoleiros condenados. Dos mandantes, só sete
foram condenados e cinco fugiram. Os pistoleiros que escaparam na certa
voltaram a matar. É o quadro da impunidade.
Eu
participei de uma sessão do Supremo Tribunal Federal em que se julgava a
possibilidade de federalizar os crimes contra os direitos humanos. Era
justamente na época do assassinato da Dorothy. Como envolvia vítima
internacional, norte-americana, o estado do Pará agilizou o processo,
que está praticamente concluído. Muito boa a Justiça naquele caso. E nos
demais? E naqueles em que o assassinado não é norte-americano ou
alemão? Isso tem favorecido a manutenção do crime, o que interessa aos
grandes fazendeiros, a muitos detentores do poder, juízes,
latifundiários e parlamentares. E, por falar em parlamentar, a proposta
de confisco da terra onde há trabalho escravo, para fins de reforma
agrária, não caminha. Acho que com esse time que está aí, de
congressistas latifundiários, uma bancada ruralista fortíssima e
numerosa, jamais será aprovada.
O que o senhor acha da atualização do Código Florestal?
É
um desastre, um absurdo diminuir a já pequena cobertura vegetal em
torno dos mananciais, facilitar a devastação da floresta e não oferecer
nenhuma proteção ao meio ambiente. A gente sabe que nem todas as pessoas
no Congresso concordam com isso. Pena que sejam minoria.
Como o senhor vê o fato de termos pela primeira vez uma mulher na Presidência da República?
É
muito positivo, mas não deixa de ser um continuísmo, um tempo de
inverno para o movimento de reforma agrária. E, com o avanço do
agronegócio, pior ainda. Do ponto de vista do homem da terra, ainda há
retrocesso. Durante a campanha, ela nada falou sobre reforma agrária, o
que pode ser significativo. Embora tapeasse e protelasse, dizendo que ia
cumprir as promessas de campanha, Lula dialogava e não reprimia, ao
contrário de FHC.
Em
compensação, durante os anos FHC os movimentos se fortaleceram, com
todo o grande capital por trás. É que, conhecendo o adversário, isso
fica mais fácil. Tanto que a oposição ao governo tucano foi feita mais
pelos movimentos do que pelo PT. Mais do que enrolar, Lula traiu o
compromisso de fazer a reforma agrária, que acabou ficando por conta dos
movimentos via ocupações e pressões das bases, e não do Incra, cada vez
mais sucateado.
E quanto aos transgênicos?
O
transgênico é sério porque atinge a semente, e ela é a força do
lavrador. Em vez de manipular sua semente para plantar, ele tem de ir ao
mercado e pagar (por ela). O pessoal diz que tudo o que é transgênico é
duvidoso, não se tem segurança. Mas nós, da área rural do CPT e os
trabalhadores rurais, consideramos que o principal veneno é o fato de a
semente ser subtraída. Aquilo que é vital para o trabalhador, e é
milenar, ser levado ao monopólio. O trabalhador tem de ter o domínio da
semente e da terra.
O senhor já recebeu ameaças de morte?
Várias
vezes. E tive medo não por mim, mas por outros padres, sacerdotes.
Ninguém vinha direto a mim, mas estimulavam gente maluca. Eu soube de
vários planos de morte, como uma emboscada numa festa em que iria, numa
paróquia, mas fui ao sepultamento do padre Rodolfo e do índio Simão,
assassinados por fazendeiros. Toda noite rezo para o padre Rodolfo, que
me salvou de uma emboscada. Soube também que na ditadura fui vigiado
durante todo o tempo. Pior é quando é pistoleiro, como aquele que atirou
no padre Chicão, um defensor dos sem-terra, que levou tiro de
cartucheira no rosto e ficou cego dos dois olhos. Sei que aquele tiro
era para mim. Mas é complicado matar um bispo. Escapei, e agradeço ao Chicão.
- Cida de Oliveira da Revista do Brasil