Em
um velho prédio numa barulhenta avenida de Porto Alegre, em companhia
da mulher, vive há quatro décadas o ex-governador e ex-ministro Olívio
Dutra. Em três ocasiões, Dutra abandonou seu apartamento: nas duas vezes
em que morou em Brasília, uma como deputado federal e outra como
ministro, e nos anos em que ocupou o Palácio do Paratini, sede do
governo gaúcho. Apesar dos diversos cargos (também foi prefeito de Porto
Alegre), o sindicalista de Bossoroca, nos grotões do Rio Grande, leva
uma vida simples, incomum para os padrões atuais da porção petista que
se refastela no poder.
No
momento em que o PT passa por mais uma crise ética, dessa vez causada
pela multiplicação extraordinária dos bens de ex-ministro Palocci, Dutra
completou 70 anos. Diante de mais uma denúncia que mina o resto da
credibilidade da legenda, ele faz uma reflexão: “Política não é
profissão, mas uma missão transitória que deve ser assumida com
responsabilidade”.
De
chinelos, o ex-governador me recebe em seu apartamento na manhã de
terça-feira 14. Sugeriu que eu me “aprochegasse”. Seu apartamento, que
ele diz ter comprado por meio do extinto BNH e levado 20 anos para
quitar, tem 64 metros quadrados, provavelmente menor do que a varanda do
apê comprado por Palocci em São Paulo por módicos 6,6 milhões de reais.
Além dele, o ex-governador possui a quinta parte de um terreno herdado
dos pais em São Luiz Gonzaga, na região das Missões, e o apartamento
térreo que está comprando no mesmo prédio em que vive. “A Judite (sua
mulher) não pode mais subir esses três lances de escada. Antes eu subia
de dois em dois degraus. Hoje, vou de um em um.” E por que nunca mudou
de edifício ou de bairro? “A vida foi me fixando aqui. E fui aceitando e
gostando”.
Sobre
a mesa, o jornal do dia dividia espaço com vários documentos, uma
bergamota (tangerina), e um CD de lições de latim. Depois de exercer um
papel de destaque na campanha vitoriosa de Tarso Genro ao governo
estadual, atualmente ele se dedica, como presidente de honra do PT
gaúcho, à agenda do partido pelos diretórios municipais e às aulas de
língua latina no Instituto de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “O latim é belíssimo, porque
não tem nenhuma palavra na sentença latina que seja gratuita, sem
finalidade. É como deveria ser feita a política”, inicia a conversa,
enquanto descasca uma banana durante seu improvisado café da manhã.
Antes
de se tornar sindicalista, Dutra graduou-se em Letras. A vontade de
estudar sempre foi incentivada pela mãe, que aprendeu a ler com os
filhos. E, claro, o nível superior e a fluência em uma língua
estrangeira poderiam servir para alcançar um cargo maior no banco. Mas o
interior gaúcho nunca o abandonou. Uma de suas características
marcantes é o forte sotaque campeiro e suas frases encerradas com um
“não é?” “Este é o meu tio Olívio, por isso tenho esse nome, não é? Ele
saiu cedo lá daquele fundão de campo por conta do autoritarismo de
fazendeiro e capataz que ele não quis se submeter, não é?”, relembra, ao
exibir outra velha foto emoldurada na parede, em que posam seus tios e o
avô materno com indumentárias gaudérias. “É o gaúcho a pé. Aquele que
não está montado no cavalo, o empobrecido, que foi preciso ir pra cidade
e deixar a vida campeira”.
Na
sala, com exceção da tevê de tela plana, todos os móveis são antigos. O
sofá, por exemplo, “tem uns 20 anos”. Pelo apartamento de dois quartos
acomodam-se livros e CDs, além de souvenires diversos, presentes de
amigos ou lembrança dos tempos em que viajava como ministro das Cidades
no primeiro mandato de Lula.Dutra aposentou-se no Banrisul, o banco
estadual, com salário de 3.020 reais. Somado ao vencimento mensal de
18.127 reais de ex-governador, ele leva uma vida tranquila. “Mas não
mudei de padrão por causa desses 18 mil. Além do mais, um porcentual
sempre vai para o partido. Nunca deixei de contribuir”.
Foi
como presidente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, em 1975,
que iniciou sua trajetória política. Em 1980, participou da fundação do
PT e presidiu o partido no Rio Grande do Sul até 1986, quando foi eleito
deputado federal constituinte. Em 1987, elegeu-se presidente nacional
da sigla, época em que dividiu apartamento em Brasília com Lula e com o
atual senador Paulo Paim, também do Rio Grande do Sul. “Só a sala
daquele já era maior do que todo esse meu apartamento”.
Foi
nessa época que Dutra comprou um carro, logo ele que não sabe e nem
quer aprender a dirigir. “Meu cunhado, que também era o encarregado da
nossa boia, ficava com o carro para me carregar.” Mas ele prefere mesmo é
o ônibus. “Essa coisa de cada um ter automóvel é um despropósito, uma
impostura da indústria automobilística, do consumismo”. Por isso, ou
anda de carona ou de coletivo, que usa para ir à faculdade duas vezes
por semana.“Só pra ir para a universidade, gasto 10,80 reais por dia.
Como mais de 16 milhões de brasileiros sobrevivem com 2,30 reais de
renda diária? Este país está cheio de desigualdades enraizadas”, avalia,
e aproveita a deixa para criticar a administração Lula. “O governo não
ajudou a ir fundo nas reformas necessárias. As prioridades não podem ser
definidas pela vaidade do governante, pelos interesses de seus amigos e
financiadores de campanha. Mas, sim, pelos interesses e necessidades da
maioria da população”.
O
ex-governador lamenta os deslizes do PT e reconhece que sempre haverá
questões delicadas a serem resolvidas. Mas cabe à própria sigla fazer as
correções. “Não somos um convento de freiras nem um grupo de varões de
Plutarco, mas o partido tem de ter na sua estrutura processos
democráticos para evitar que a política seja também um jogo de
esperteza”.Aproveitei a deixa: e o Palocci? “Acho que o Palocci fez tudo
dentro da legitimidade e da legalidade do status quo. Mas o PT não veio
para legitimar esse status quo, em que o sujeito, pelas regras que
estão aí e utilizando de espertezas e habilidades, enriquece”.E o
senhor, com toda a sua experiência política, ainda não foi convidado
para prestar consultoria? Dutra sorri e, com seu gestual característico,
abrindo os braços e gesticulando bastante, responde: “Tem muita gente
com menos experiência que ganha muito dinheiro fazendo as tais
assessorias. Mas não quero saber disso”.Mas o senhor nunca recebeu por
uma palestra? “Certa vez, palestrei numa empresa, onde me pagaram a
condução, o hotel e, depois, perguntaram quanto eu iria cobrar. Eu disse
que não cobro por isso. Então me deram de presente uma caneta. E nem
era uma caneta fina”, resumiu, antes de soltar uma boa risada.