Felipe Prestes no Sul21
Felipe da Silva encontrou na Praça da Alfândega e na Rua da Praia o seu sustento. Na mais tradicional via de Porto Alegre, vende bijuterias, lenços e outros badulaques – no inverno, se destacam os gorros e as luvas. Sentado em uma cadeira de praia, aguarda pacienciosamente os transeuntes, ou joga conversa fora com amigos que trabalham por ali. Com os clientes, é monossilábico. Limita-se a responder o que perguntam. Em outra cadeira, a esposa, Rosalina, maneja cipós com uma faca, produzindo pequenos artigos de decoração.
Felipe é líder de uma comunidade caingangue que reúne 35 famílias e cerca de 190 pessoas no bairro Lomba do Pinheiro, na periferia da capital gaúcha. Como ele e a esposa, mais de uma dezena de famílias caingangues vive do comércio de rua no centro da cidade. Nos finais de semana, eles rumam para o Brique da Redenção.
Foi Felipe quem os aglutinou, há cerca de dez anos, em uma comunidade formada por caingangues de diferentes partes do Estado. “Os caingangues se conhecem. Eu fui chamando: ‘Quer morar comigo, meu primo? Quer morar comigo, meu irmão?’”. Felipe atualmente ocupa o posto de vice-cacique. Foi cacique durante bastante tempo, depois entregou o cargo para um de seus oito filhos, Claudir, mais conhecido como Preto. “Temos 23 casas de material, posto de saúde, escola estadual indígena”, gaba-se Felipe.
O vice-cacique veio do extremo norte do Rio Grande do Sul, região que os caingangues já habitavam desde os primeiros contatos com homens de origem europeia, onde ainda hoje vive a maioria deles, que são cerca de 30 mil em todo o sul do Brasil. Felipe nasceu há 63 anos em Tenente Portela e vivia em Nonoai quando decidiu se estabelecer de uma vez em Porto Alegre. Durante cerca de dez anos ele vinha sazonalmente à Capital como ainda fazem muitos caingangues. Na época de Páscoa, por exemplo, muitos dos que vivem em aldeias no norte do Estado viajam para grandes cidades para vender macela e artesanatos. Numa dessas visitas, há cerca de uma década, Felipe resolveu ficar.
“Aqui dá para tirar mais dinheiro”, ele explica. Nas aldeias, o trabalho com o plantio de feijão leva 90 dias para dar algum resultado, conta. Outra alternativa dos caingangues tem sido a criação de galinhas, mas os indígenas não costumam ter capital para que este negócio dê certo.
“Muita coisa mudou e vai mudar mais”
Há quem não concorde com o trabalho dos caingangues no centro de Porto Alegre. Lojistas e integrantes de uma feira de artesanato na Rua da Praia temem que eles “ocupem toda a rua” e clamam por “igualdade”. Isso porque eles precisam regularizar seu trabalho, pagar impostos, mas os indígenas não. Também entendem que os indígenas só devem ter autorização para vender produtos feitos por eles, e não produtos industrializados. “Eles fugiram de suas características, são camelôs. O branco não pode botar uma banca para vender camelô. O índio pode”, diz o feirante Paulo. A prefeitura também tem se movimentado para que os indígenas trabalhem em outros locais que não as concorridas Praça da Alfândega, Rua da Praia e Brique da Redenção.
“Hoje, o índio está quase igual ao branco. Eu tenho que ter relógio para controlar o horário do ônibus, tenho que usar roupa de branco, porque não posso andar quase pelado no meio de vocês”, diz Felipe. Exatamente por este motivo defende que os caingangues não podem ficar apenas vendendo os artesanatos que produzem. “Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado”, diz.
O líder caingangue considera legal o trabalho que faz.“O índio trabalha legalmente. Não assalta bancos, como os brancos fazem”, diz. No comércio está justamente a opção, segundo Felipe, para que ele e seus companheiros tenham uma vida digna. “Leio o jornal todos os dias, sei das malandragens que existem. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha”, exemplifica. Quando diz que “a rua é pública”, Rosalina intervém. “Os índios são os donos do Brasil”.
Apesar da veemência com que defende seu trabalho, o próprio Felipe também fica ressabiado. Quando pedimos para tirar fotos, ele orienta que tiremos apenas dos produtos artesanais feitos por sua esposa, e por dois arcos e flecha que já estavam prontos.
Sérgio, um amigo, negro, que estava batendo papo com Felipe quando chegamos, observa que os artigos de artesanato indígena não sustentam uma família em Porto Alegre, porque o turismo é fraco. “Não há turismo em Porto Alegre, não tem como ficar apenas vendendo flechas. Se fosse no Nordeste, venderiam como água”, projeta. “No interior, os índios têm as terras deles. Na capital trabalham vendendo as coisas deles, mas precisam mais, não é suficiente”, defende.
Em pouco tempo, o comércio deve deixar de ser a única opção para os indígenas que optaram pela vida em uma grande cidade. A universidade já é uma realidade para alguns integrantes da comunidade caingangue da Lomba do Pinheiro. Um dos caingangues que trabalha no comércio de rua estuda enfermagem em uma universidade particular e espera que o trabalho na Rua da Praia seja apenas temporário. Um dos filhos de Felipe cursa Odontologia. Na escola indígena da comunidade, o vice-cacique conta que todos os profissionais são caingangues. “Só o diretor da escola é branco, porque ainda não temos ninguém capacitado”.